ECONOMIA

Pandemia espalha doença e fome

Em mais de um ano de crise sanitária no país, 55 em cada 100 domicílios visitados registravam algum tipo de insegurança alimentar, diz estudo de universidades do Brasil e da Alemanha
Por Flavio Ilha / Publicado em 20 de maio de 2021

Foto: Igor Sperotto

Foto: Igor Sperotto

Como no poema de Solano Trindade (veja nesta matéria), o Brasil da covid-19 e do governo Bolsonaro parece dizer: tem gente com fome. E não é pouca gente com fome. Um levantamento coordenado pelo Grupo de Pesquisa Alimento para Justiça, da Universidade Livre de Berlim (Alemanha), em parceria com pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e Universidade de Brasília (UnB), mostrou que 55 em cada 100 domicílios visitados registravam algum tipo de insegurança alimentar durante a pandemia.

Em números absolutos: 116,8 milhões de brasileiros viviam algum tipo de receio, desde preocupações leves até de grave impacto, com o pão nosso de cada dia em novembro do ano passado. As informações foram coletadas entre os dias 5 e 24 dezembro de 2020, em amostra representativa de 2.180 domicílios das cinco regiões brasileiras, em áreas rurais e urbanas.

Daqueles 116,8 milhões de brasileiros com algum tipo de insegurança alimentar, cerca de 43 milhões (20%) não contavam com alimentos suficientes para nutrir suas necessidades (insegurança alimentar moderada) e 19 milhões (9%) passavam fome (insegurança grave). Mais: nos lares com crianças até quatro anos, a fome bateu em 20% deles.

“Sim, a fome voltou ao Brasil”, lamenta a coordenadora do estudo, Renata Motta, professora de Sociologia da Universidade Livre de Berlim. E em níveis nunca vistos desde 2013, quando a ONU tirou o país do Mapa da Fome. Naquele ano, os indicadores mostravam menos de 5% dos domicílios brasileiros em insegurança alimentar grave. Em menos de uma década, o índice mais que triplicou.

“Há pelo menos cinco anos vemos o aumento sistemático da fome no Brasil. Isso quer dizer que uma criança pobre nascida em 2013 passou a primeira infância inteira em situação de insegurança alimentar moderada ou grave”, completa Motta.

A situação já vinha se agravando antes da pandemia, quando os indicadores de insegurança alimentar haviam passado de 23% em 2013 para 37% em 2018. Agora, com os 55% medidos pela pesquisa, a situação é dramática.

Brasileiro cada vez mais pobre e desnutrido

Os dados levantados pelos pesquisadores são chocantes: 44% dos entrevistados reduziram o consumo de carnes nos últimos 12 meses, e 41% passaram a comer menos frutas durante a pandemia. No Nordeste, a média nacional de 59% de insegurança alimentar aumentou para 73%; no Norte do país, para 67%.

Beneficiários do Bolsa Família são os que enfrentam os maiores níveis de insegurança alimentar, com 88,2%. Desse contingente, 35% literalmente passam fome e outros 23,5% convivem com um nível moderado de insegurança alimentar.

Também há desigualdade entre áreas rurais e urbanas: enquanto a média nacional para as regiões densamente povoadas é de 55,7%, nas zonas agrárias chega a 75%. Se o único responsável pelo domicílio for uma mulher negra, a insegurança alimentar sobe para 74%, em média – 11% na classificação grave.

“Há um contingente imenso de famílias vulneráveis, não somente pela pandemia. E essa vulnerabilidade não se expressa apenas pela falta de comida, mas pela perspectiva futura: não sei como vai ser amanhã, essas pessoas pensam. Isso é devastador para a vida das pessoas”, diz Tereza Campello, da Faculdade de Saúde Pública da USP e que também participou da pesquisa.

Para Campello, a pandemia acelerou rapidamente um processo que já estava acontecendo no país. “A crise da covid-19, com a falta de auxílio por parte do governo, tornou evidente no Brasil uma tendência da má alimentação, consumo de ultraprocessados. Alimentar-se corretamente é uma questão de saúde, de política pública. Não é simplesmente não ter arroz, porque está caro, e substituir pelo macarrão. A fome também está desestruturando o prato a que o brasileiro está acostumado, e isso vai ter impactos econômicos”, explica a professora da USP.

Trabalho infantil avançou em Porto Alegre

A FASC identificou 1.110 crianças e adolescentes em situação de trabalho infantil nas ruas de Porto Alegre no final de 2020. Dessas, 300 exerciam atividades na rua pela primeira vez

Foto: Igor Sperotto

A FASC identificou 1.110 crianças e adolescentes em situação de trabalho infantil nas ruas de Porto Alegre no final de 2020. Dessas, 300 exerciam atividades na rua pela primeira vez

Foto: Igor Sperotto

O resultado dessa situação, principalmente a fome em lares com crianças e jovens, é direto. A Fundação de Assistência Social e Cidadania (FASC) de Porto Alegre identificou 1.110 crianças e adolescentes em situação de trabalho infantil nas ruas da cidade no final de 2020, especialmente vendendo mercadorias em sinaleiras ou coletando material reciclável. Uma forma de elevar a renda e driblar a perspectiva da fome.

Dessas, 300 exerciam atividades na rua pela primeira vez. As 12 equipes do Serviço de Abordagem Social/Ação Rua, que fazem a busca ativa de crianças e adolescentes em situação de trabalho infantil, tiveram de ser reativadas pela FASC. Elas haviam sido suspensas por falta de demanda.

Há cinco anos, a mesma Fundação, em parceria com a UFRGS, havia detectado apenas 14 crianças nessa situação na capital gaúcha. Entre 2006 e 2012, a cidade recebeu por três vezes o selo Prefeito Amigo da Criança pelos programas de proteção a jovens em situação de vulnerabilidade. O prêmio é uma parceria da Fundação Abrinq com a ONU.

Segundo a FASC, o incremento de crianças e adolescentes nas ruas é consequência direta do fechamento do Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos (SCFV), mantido no turno inverso das aulas, devido à necessidade de distanciamento social. O trabalho de acolhimento, com a pandemia, passou a ser virtual e individualizado.

“O formato de crianças e jovens reunidos em um espaço de convivência coletivo acabou criando um vácuo no atendimento durante a pandemia, já que esses locais tiveram de ser fechados. A vulnerabilidade dessa população aumentou muito”, conta a presidente da FASC, Cátia Lara Martins.

Sinal está fechado para os miseráveis

população adulta nas ruas aumentou 40% em um ano. A ONG Centro Social da Rua estima mais de 4 mil pessoas em situação de rua na capital gaúcha

Foto Igor Sperotto

A população adulta nas ruas aumentou 40% em um ano. A ONG Centro Social da Rua estima mais de 4 mil pessoas em situação de rua na capital gaúcha

Foto Igor Sperotto

Além de vender produtos e coletar material reciclável, a FASC também identificou crianças ajudando no trabalho de mendicância. Muitas delas são aliciadas por adultos, às vezes da própria família, em troca de comida. “É um reflexo direto da situação econômica, da nossa miséria”, disse Martins.

O aumento de crianças nas ruas de Porto Alegre é reforçado pela população adulta, que aumentou 40% em um ano. Conforme a FASC, 1.075 pessoas reforçaram o contingente que vive sem teto na cidade durante a pandemia. São pessoas, na sua maioria, que perderam o emprego e não tiveram mais como pagar um aluguel.

No cômputo geral, de acordo com a Fundação, o número varia de 3.200 a 3.800 adultos na rua – a flutuação se deve à alta mobilidade dos indivíduos, em sua maioria homens entre 25 e 45 anos de idade. A ONG Centro Social da Rua, entretanto, estima esse contingente em mais de 4.000 pessoas.

“Nossa observação empírica indica que o número de pessoas na rua dobrou nos dois últimos anos. E, além disso, mudou de perfil: hoje, observamos a presença de mais famílias na rua, que era um fenômeno bem raro antes da pandemia”, afirma a coordenadora-adjunta da ONG, Letícia Andrade. Em 2019, o número flutuava em cerca de 2.100 sem-teto.

Para Andrade, as crianças estão voltando para as ruas em busca de comida. Nos últimos anos, segundo a ONG, elas haviam desaparecido. “A presença maior nas ruas tem uma razão: a fome”, diz a coordenadora-adjunta.

A coordenadora do coletivo Mães da Periferia de Porto Alegre, Letícia Nascimento, classificou a situação como desesperadora. O grupo tem cerca de 3.500 famílias cadastradas, mas deixou de fornecer cestas básicas devido ao número insuficiente de doações.

A estratégia adotada foi transformar as 10 cestas básicas recebidas na última semana em 100 quentinhas para alimentar pessoas no Morro Santana, zona leste de Porto Alegre, onde o grupo surgiu. As quentinhas passaram a ser distribuídas todos os sábados.

“O agravamento da pandemia sem um programa de renda mínima e sem um programa de vacinação em massa tende a agravar a fome nas periferias. As famílias, que já tinham vínculos de emprego precários, agora sofrem também com a carestia. Está mais difícil conciliar o preço da moradia com as contas de alimentação”, compara Nascimento.

Cestas básicas insuficientes e ajuda que não chega

Estudante da rede municipal recebendo cesta básica durante ação da SMED

Foto: Anselmo Cunha/PMPA

Estudante da rede municipal recebendo cesta básica durante ação da SMED

Foto: Anselmo Cunha/PMPA

A FASC informou que distribuiu 130 mil cestas básicas durante o período da pandemia, para 74 mil famílias de Porto Alegre. O custo das cestas chegou a R$ 31,7 milhões, bancados com recursos federais direcionados pelo fundo da covid-19.

Dados da ONG Centro Social da Rua levantados com 805 pessoas em situação de rua de Porto Alegre constataram que 18,8% deles estavam sem teto há menos de nove meses, ou seja, foram diretamente afetados pela pandemia com a perda de renda ou do emprego.

Quase metade da população entrevistada também declarou que não recebeu qualquer auxílio financeiro do governo, seja federal ou estadual. Sete em cada dez pessoas disseram que a situação de rua é permanente, sem eventuais retornos para a casa de suas famílias.

Como diz o poema de Trindade, escrito em 1944 e censurado por duas ditaduras, “trem sujo da Leopoldina/correndo correndo/parece dizer/tem gente com fome/tem gente com fome/tem gente com fome”.

Na imagem, Solano Trindade em agosto de 1967. Nascido em Recife, Pernambuco, Francisco Solano Trindade foi poeta, teatrólogo, pintor, ator e cineasta. O artista esteve na vanguarda de movimentos artísticos no Brasil e tomou parte como um dos fundadores do Teatro Folclórico Brasileiro, em 1944, e do Teatro Popular Brasileiro – TBP, no ano de 1950, instituições fundamentais na história da dramaturgia do país. Solano Trindade foi autor de obras como “Poemas de uma Vida Simples”, de 1944; “Seis Tempos de Poesia”, de 1958; e “Cantares ao meu Povo”, de 1961, suas contribuições poéticas para a literatura brasileira.

Arte de FAbio Edy Alves sobre foto do Arquivo Nacional

Na imagem, Solano Trindade, em agosto de 1967. Nascido em Recife, Pernambuco, Francisco Solano Trindade foi poeta, teatrólogo, pintor, ator e cineasta. O artista esteve na vanguarda de movimentos artísticos no Brasil e tomou parte como um dos fundadores do Teatro Folclórico Brasileiro, em 1944, e do Teatro Popular Brasileiro – TBP, no ano de 1950, instituições fundamentais na história da dramaturgia do país. Solano Trindade foi autor de obras como “Poemas de uma Vida Simples”, de 1944; “Seis Tempos de Poesia”, de 1958; e “Cantares ao meu Povo”, de 1961, suas contribuições poéticas para a literatura brasileira.

Arte de FAbio Edy Alves sobre foto do Arquivo Nacional

O que é segurança alimentar

Segurança alimentar é quando a família tem acesso permanente a alimentos em quantidade e qualidade suficientes sem comprometer as necessidades essenciais.

A insegurança alimentar leve é quando há uma preocupação ou incerteza quanto ao acesso a alimentos suficientes no futuro. Isso leva à qualidade inadequada dos alimentos, visando a não comprometer a quantidade. Ou seja, a família escolhe opções mais baratas de modo que não falte alimento no final do mês.

A insegurança alimentar moderada é quando ocorre uma redução significativa de alimentos entre os adultos ou uma ruptura nos padrões de alimentação, cortando ou pulando refeições devido à falta de alimentos.

A insegurança alimentar grave é quando atinge as crianças, isto é, elas irão comer menos quantidade e pular as refeições.

Arte: FAbio Edy Alves (Bold Comunicação)

Arte: FAbio Edy Alves (Bold Comunicação)

 

 

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