Mais de 80% já pagaram o imposto sobre grandes fortunas na Argentina
Foto: Central dos Trabalhadores da Argentina Foto: Central dos Trabalhadores da Argentina
A tributação temporária de grandes fortunas, aprovada em dezembro do ano passado pelo parlamento argentino, alcança 12 mil pessoas físicas e jurídicas que declararam ativos acima de US$ 2,2 milhões. Desses, 10 mil pagaram no prazo, 16 de abril, totalizando cerca de US$ 2,4 bilhões. Mais de 200 recursaram à Justiça e outros estão sendo notificados a atualizar dados e pagar os tributos e multa. Chamada de Aporte Solidário, a Lei 27.605 se refere a uma contribuição única para minimizar os efeitos da pandemia. A alíquota varia de 2,25% a 5,25%, dependendo do tamanho da fortuna e se os patrimônios são mantidos localmente ou no exterior.
Nesta entrevista, o deputado Hugo Yasky conta como foi o processo de aprovação da lei, quais setores resistem à proposta e por quê e avalia como a América Latina, região mais desigual do planeta, onde 41% da riqueza está nas mãos do 1% mais rico, pode se mobilizar para mudar essa realidade.
Com uma carreira ligada ao sindicalismo na área da Educação, Yasky foi dirigente do Sindicato de Los Educadores de La Matanza, Província de Buenos Aires, vice-presidente Regional Sul da Confederação de Educadores Americanos (CEA) e Secretário-geral da Confederação de Trabalhadores da Educação (2004//2006). Também ocupa a função de secretário-geral da Central dos Trabalhadores da Argentina desde 2006, preside a Internacional da Educação para América Latina (IE-AL) e é membro do Conselho Consultivo da Organização dos Estados Iberoamericanos (OEI).
Extra Classe – O que foi decisivo para aprovação, em dezembro de 2020, da lei que tributa as grandes fortunas?
Hugo Yasky – O fato de havermos implementado o imposto sobre as grandes fortunas pessoais em caráter extraordinário numa única vez e no contexto de o Estado arrecadar recursos para enfrentar a pandemia. A parcela única facilitou a aprovação. Apesar disso, o partido político do ex-presidente Maurício Macri (Juntos por el Cambio) votou contra, do mesmo modo como outros blocos pequenos da oposição. O bloco governista Frente de Todos não tem maioria própria na Câmara de Deputados. Nossa capacidade de manobra, muitas vezes, é condicionada a possibilidade de somar votos de alguns pequenos blocos e o fato de que esse imposto seria extraordinário permitiu que os pequenos blocos acompanhassem, ou não seria possível sua aprovação no parlamento.
EC – Qual o papel da pandemia nesse cenário?
Yasky – Imprescindível. Se não estivéssemos nesse contexto, a Frente de Todos não teria colocado a proposta no início da sua gestão e discutido um tema que é repulsivo para os setores do poder concentrado. Foi justamente o enfrentamento da pandemia, uma vez que o Ministério da Saúde havia sido dissolvido pelo governo de Maurício Macri, o Sistema da Saúde havia sido desfinanciado e não contávamos com a quantidade mínima imprescindível de hospitais para evitar um colapso, como vimos em países vizinhos. A pandemia desnudou as aberrações e injustiças do modelo neoliberal, que reduziu os orçamentos públicos destinados para a saúde, ciência, tecnologia, educação, favoreceu a possibilidade de avançar nesse debate. Aliás, não apenas favoreceu, mas foi determinante para fazer o debate, aprovar a medida e fazer que começasse a se pagar o imposto.
EC – Como a população recebeu essa medida?
Yasky – Em todas as pesquisas de opinião, realizadas nos quatro meses, do anúncio do projeto de lei até a aprovação, o apoio sempre foi majoritário. Quando se perguntava sobre a tributação dos possuidores de grandes riquezas para enfrentar a pandemia a aprovação nunca baixou de 60% a 70%. Isto tem um valor mais significativo se consideramos que os grandes meios de comunicação, como o Clarín, que seria similar ao O Globo no Brasil, mais os grandes canais de televisão e os diários de direita, sempre atacaram e trataram de gerar uma opinião contrária a sanção do imposto. Em alguns casos trataram de semear incertezas de como reagiriam os mercados, defendendo que seria um sinal para intimidar investidores, etc. Mesmo com tudo isso contra, o apoio popular se manteve sempre alto.
EC – Como o bloco governista avalia o volume de pagamentos até o momento?
Yasky – Cerca de 80% dos que devem pagar, cumpriram com a lei e a população viu com muito bons olhos. Avaliamos de forma muito positiva, especialmente frente à campanha de desprestígio dos meios de comunicação que vaticinavam que apenas 10% pagaria esse imposto.
EC – Os que buscaram à Justiça para não pagar são majoritariamente de quais setores e o que isso revela?
Yasky – O núcleo duro da oposição ao governo Frente de Todos é composto justamente por estes setores que hoje estão rebeldes, tratando de recorrer à Justiça para que anule o imposto. Esses grupos são os que estão vinculados de forma majoritária às grandes multinacionais do agronegócio, aos latifundiários representados na sociedade rural, aos grandes grupos de capitais financeiros e donos de multimeios. Esse é o núcleo de empresários que co-governou durante os quatro anos do governo Macri e por isso tem permanentemente uma atitude hostil reativa ao governo e a qualquer iniciativa que pretenda modificar o quadro que herdamos do governo anterior em relação à distribuição da renda nacional. Defendem com unhas e dentes cada centímetro de esquema de desigualdade que favoreceu os mais ricos e que herdaram do governo do qual foram parte.
EC – O sistema tributário detalhado no Brasil faz com que a população desconheça que os mais pobres pagam proporcionalmente mais impostos que os ricos. Como ocorre no seu país?
Yasky – Como no Brasil, o tema tributário é ocultado ou é distorcido. A imprensa hegemônica mantém a falsa tese que a carga de impostos é excessiva. Encobrem que os que pagam a maior proporção dos impostos arrecadados pelo Estado são os setores da classe média e os mais pobres. Na Argentina se arrecada majoritariamente pelo imposto sobre o consumo, praticamente não existem impostos que tributam a riqueza como esse que aprovamos por única vez. Por isso, a oposição foi tão forte e em vários artigos e editoriais publicados naqueles dias se opunham ao tributo mesmo por única vez porque poderia gerar uma situação favorável para estabelecer este imposto de caráter permanente ou outro similar.
EC – O que esse debate acrescentou?
Yasky – Permitiu desvelar a forma particularmente cuidadosa com que a imprensa econômica encobre ou distorce o tema tributário fazendo os pobres crerem que a carga impositiva que sentem no seu bolso é a mesma que sentem os mais ricos, quando sabemos que não é assim. A carga está invertida, pagamos mais os que menos temos.
EC – Como a especulação financeira e a ameaça de fuga de investidores se coloca neste cenário?
Yasky – Estamos tratando de retirar o véu de ocultação de ativos fora do país. Destaco que a Argentina tem o triste troféu de ser o país com mais fuga de capitais colocados nos paraísos fiscais. Isso, sem dúvida, significa uma grave perda de recursos e um obstáculo ao objetivo de gerar uma economia com menos desigualdade. A especulação financeira, a corrida cambial, a desvalorização dos proprietários de dólares – que com uma só desvalorização acrescentam grandes fortunas de forma inusitada –, todos esses são como cânceres para a economia produtiva do país. Sei que esse esquema, em menor medida, existe nos demais países da região, como Brasil e Colômbia por exemplo. Os especuladores dizem que qualquer mudança fará como um cardume que se assusta e muda de rota, e o capital busque outro destino, sobretudo os especulativos.
EC – Que estratégias podem ser adotadas frente à migração do capital especulativo quando se implementam tributos como este?
Yasky – O argumento que sempre esgrimam é que o capital financeiro busca os lugares com mais vantagens, por isso de deslocam, fogem. Reivindicam que não haja qualquer tipo de política de controle ou que signifique tributá-los com o argumento de que qualquer imposto que se ponha ao capital financeiro faz com que ele desapareça e busque lugares onde tenha maior rentabilidade. Isto em parte é certo, mas também é certo que especulam permanentemente com este tipo de questão para dar-lhe racionalidade para que mantenhamos velhos esquemas tributários que alentam a desigualdade e a injustiça.
EC – Como a articulação entre os diferentes países pode apurar meios fiscais para identificar as fortunas e tributá-las frente a migração especulativa?
Yasky – Creio que seria importantíssima a articulação das políticas econômicas e as estratégias parlamentares para regular e impedir essas práticas. Do mesmo modo, gerar instrumentos que desalentem a fuga permanente desse capital especulativo depositado fora do país. Isso requer inevitavelmente uma coordenação política regional. É fundamental essa coordenação e creio imprescindível que voltemos a ter governos populares que possam sincronizar suas ações no tema do capital especulativo. A entrada e saída de capital que tanto prejudica o equilíbrio da economia produtiva deve ser tratada no marco regional. Um só país é impotente frente à ‘deslocalização’ do capital financeiro na atualidade.
EC – A vitória e anúncios do presidente Joe Biden tendem a influenciar o bloco latino-americano na tributação de grandes fortunas?
Yasky – O triunfo de Joe Biden e sobretudo o discurso que fala do Estado e da Nação, anunciando a necessidade de tributar os ricos para enfrentar a pandemia tiveram um forte impacto nos meios locais. A direita ficou sem poder explicar como o próprio presidente dos EUA, que eles sempre colocam como exemplo, acabava de propor mais impostos para os mais ricos. Foi pelo menos um elemento propício na disputa discursiva para a argumentação de que nos propusemos a modificar os esquemas que mantém e acrescentam as desigualdades na distribuição da riqueza.
EC – Qual a possibilidade de tornar esse tributo permanente?
Yasky – Creio que essa discussão se dará no marco de uma reforma tributária que está projetada como parte do programa para desenvolvimento em breve, após a eleição que teremos em outubro. Se definirá se a correlação de forças se modifica a nosso favor na Câmara de Deputados ou se mantém igual ou pior. Se não somarmos mais deputados será muito difícil que se tenha espaço para essa reforma tributária. Vamos ver a força da direita e seu rechaço ao imposto, saindo a mentir que a Argentina cobra comparativamente muitos mais impostos que seus vizinhos da região. Será uma grande disputa que seguramente fará parte dos debates das eleições. Desde já, a vontade da Frente de Todos é que ocorra a reforma tributária baseada no princípio da justiça fiscal, ideia que sustentamos sempre no movimento popular e esquerda. Que paguem mais os que mais têm.