Recuperação da economia não chega aos mais pobres
Foto: Tânia Rêgo/ Agência Brasil
Após um ano e meio de pandemia e em um contexto no qual o mercado financeiro e grandes instituições têm elevado sucessivamente as projeções para o crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) do país, a lógica seria a de que, finalmente, a população teria também sua própria recuperação econômica. Não é isso, contudo, que se avizinha no horizonte. O que a maioria expressiva da sociedade sente é inflação em alta, combinada com menos oportunidades de trabalho e diminuição na renda mensal. O cenário em que a economia do país cresce, ao mesmo tempo em que a população sente sua condição econômica piorar e a desigualdade aumenta pode parecer contraditório, porém tem um sentido. Economistas e analistas assinalam que, para além da pandemia e seus desdobramentos, a mudança no modelo de desenvolvimento brasileiro explica a situação atual.
Conforme o cientista social e diretor técnico do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), Fausto Augusto Júnior, no que se refere à covid-19, a sociedade aceitou a existência de cerca de 2 mil mortos ao dia e busca uma normalização da economia, o que justifica o crescimento.
No entanto, ressalva o diretor, parte da expansão, cerca de 3%, ocorreria de qualquer forma, porque é estatística, decorrente da recuperação sobre a compressão que houve no ano passado. E, além disso, ela não é uniforme entre os setores. “O mais importante, contudo, que nos ajuda a compreender por que a economia cresce, mas a população sente o contrário, é a guinada no modelo de desenvolvimento que vínhamos construindo desde o Plano Real. Nos últimos 30 anos, apostamos em um modelo embasado na ampliação de direitos sociais e na diminuição da desigualdade. O modelo em implantação hoje é o oposto”, diz.
Foto: Roberto Parizotti/ Dieese
O exemplo utilizado pelo diretor é o do sistema público. “Há um movimento no sentido de garantir serviços públicos básicos, como saúde e educação, só para quem precisa muito, ou seja, somente para os muito pobres. Quando o sistema público vai sendo reduzido e serviços são transferidos para o setor privado, são transferidos também, para uma larga fatia de famílias, os custos. Ao mesmo tempo, o encolhimento dos serviços públicos permite a diminuição da carga tributária sobre os mais ricos. É a velha fórmula do ‘esperar o bolo crescer para depois dividir’, aplicada durante os governos da ditadura”, elenca.
“Podemos fazer uma analogia com uma frase cunhada pelo presidente Médici nos anos 1970: ‘A economia vai bem, mas o povo vai mal’. Voltamos a essa situação. A economia vai indo bem, setores econômicos agregados estão indo bem, só que a grande parte dos setores econômicos ainda não reagiu, e essa grande parte é a que contempla setores com alta empregabilidade”, compara Fausto.
Desigualdade e descontrole de preços
Foto: Igor Sperotto
“Em dois anos, além da queda na expectativa de vida, ficará muito claro o impacto do que estamos vivenciando sobre a desigualdade de renda”, aponta o economista e professor da Escola de Negócios da PUCRS, Gustavo Inácio de Moraes. Ele admite que o cenário é pouco animador, mas observa que não surpreende. “Porque, quando a pandemia chegou na América Latina, já existiam políticas econômicas em posições muito ruins, que acabaram se somando à falta de coordenação em políticas sanitárias”, resume.
Já existe um conjunto de indicadores robustos a demonstrar como, na prática, o crescimento não está ‘chegando na ponta’, ou seja, à maior parte da população. Na última semana de junho, pela décima vez consecutiva, o relatório Focus do Banco Central (BC), que, semanalmente, coleta as expectativas do mercado, aumentou a projeção de crescimento do PIB brasileiro em 2021 para mais de 5%. Ao mesmo tempo, porém, a expectativa para a inflação só cresce. Apesar da desaceleração do IGP-M em junho, o índice acumula alta de 35,75% em 12 meses. E, após o anúncio do reajuste da bandeira vermelha 2 na energia elétrica, o mercado elevou a projeção do IPCA de 2021 para, no mínimo, 6%.
Moraes lembra que, além de a distribuição setorial da recuperação econômica ser bastante heterogênea, produtos como alimentos e itens de higiene, os quais representam uma fatia maior do orçamento de famílias mais pobres, pressionam com força os preços desde o ano passado.
Em resumo, a inflação para os que já gastam parte significativa de sua renda com esses insumos acaba sendo maior do que para quem tem renda mais alta. “O auxílio emergencial tenta sustentar um nível mínimo de consumo. Isso concentra o consumo em insumos básicos e acaba trazendo aceleração de preços nesses itens. A ampla fatia de trabalhadores menos qualificados, que depende mais de alimentos, de energia, vai ter uma grande carestia. Vai gastar mais com insumos básicos, ao mesmo tempo em que vê sua renda caindo”, adianta o professor.
Foto: ANPr/ Divulgação
A política de regulação dos preços dos combustíveis, vinculada às flutuações do mercado internacional, que faz com que os valores continuem a subir, e o aumento nas tarifas de energia elétrica decorrente da crise hídrica para a qual não havia planejamento ajudam a deteriorar o cenário. A subida constante dos combustíveis (e, por tabela, do gás de cozinha) e, agora, a do preço da luz formam uma combinação em que o resultado é o impacto generalizado no preço de insumos e, em consequência, no de produtos em geral.
“Para completar, vamos manter uma taxa de desemprego muito alta, e com tendência de crescimento. Porque, além da lenta retomada de setores com alta empregabilidade, uma parcela das pessoas que havia saído do mercado e deixado de procurar emprego agora volta a fazer isso. E uma parte da taxa de desemprego é definida pela busca ativa. Entre desempregados e os que estavam fora do mercado sem procurar trabalho, estamos batendo nos 20 milhões de pessoas. Mais dia, menos dia, este número vai aparecer”, alerta Fausto Júnior.
Pelo menos, três levantamentos divulgados ao final do primeiro semestre deste ano corroboram o entendimento de que o crescimento econômico se dá combinado com uma reconcentração de renda, a qual tende a afetar negativamente o desenvolvimento do Brasil nos próximos anos.
Elite dos 1% mais ricos concentra quase metade da renda
Foto: José Cruz/Agência Brasil
Na penúltima semana de junho, o relatório Riqueza Global, publicado anualmente pelo banco Credit Suisse, apontou que, em 2020, quase metade da riqueza do país (49,6%) ficou concentrada com o 1% mais rico. Na comparação com 2019, a concentração aumentou: naquele ano, o 1% mais rico ficava com 46,9% do bolo. Em um ranking com 10 das maiores economias do mundo, como Estados Unidos, Índia, Alemanha e China, o Brasil só perdeu, em concentração de renda no ano passado, para a Rússia.
Na metade do mês, o centro de estudos e pesquisas FGV Social já havia concluído o levantamento ‘Bem-Estar Trabalhista, Felicidade e Pandemia’, em que analisou microdados da Pnad Contínua do IBGE desde 2012. O estudo concluiu que a renda média per capita do trabalho no país caiu ao menor nível desde o início da série. Pela primeira vez, ela ficou abaixo de R$ 1 mil, além de apresentar uma queda de 11,3% no comparativo entre os primeiros trimestres de 2021 e de 2020. Nos primeiros três meses de 2020, essa renda era de R$ 1.122. Porém, no período equivalente de 2021, baixou para R$ 995,00.
O mesmo estudo demonstrou que a média das rendas individuais do trabalho caiu 10,89%, na comparação entre os primeiros trimestres de 2021 e de 2020. Mas, na metade mais pobre, o tombo foi bem maior: queda de 20,81%. Por fim, o levantamento abordou indicadores subjetivos, como o de satisfação com a vida. O resultado foi aumento da desigualdade de felicidade: a diferença de satisfação com a vida, que era de 7,9% entre os extremos de renda em 2019, saltou para 25,5% em 2020.
Na segunda quinzena, a Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD), da ONU, divulgou que o Brasil caiu da sexta para a 11ª posição entre os principais destinos de investimentos no mundo.
O recuo na atração de investimentos chegou a 62%. Foram, conforme os dados da ONU, US$ 65 bilhões em investimentos diretos em 2019. Porém, no ano passado, eles despencaram para US$ 24,6 bilhões, um patamar equivalente ao de duas décadas atrás. A falta de medidas sociais de controle da pandemia foi indicada como uma das causas da retração. E, ainda de acordo com o órgão da ONU, a penúria pode se manter em 2021 e 2022, em função das incertezas sobre a turbulência política e as questões sanitárias.