ECONOMIA

A Reforma Tributária que foi deixada para trás

Mudança na tributação sobre consumo no país foi aprovada em julho pela Câmara dos Deputados. Mas a reforma parou aí: alterações nos impostos sobre renda e patrimônio ficaram para o retorno do recesso
Por Fernanda Simoneto / Publicado em 14 de setembro de 2023
Reforma Tributária na pauta dos presidentes do Senado Rodrigo Pacheco e da Câmara Arthur Lira e do ministro da Fazenda Fernando Haddad

Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Os presidentes do Senado, Rodrigo Pacheco (esq.), e da Câmara, Arthur Lira (dir.), com o ministro da Fazenda, Fernando Haddad

Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Parada na Câmara dos Deputados há mais de 30 anos, a pauta da Reforma Tributária foi abraçada pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, ao assumir o cargo em janeiro de 2023.

O ex-prefeito de São Paulo chamou Bernard Appy para assumir o cargo de secretário extraordinário para Reforma Tributária, criado especialmente para o economista, que trabalhava no tema desde o segundo mandato de Lula, ainda em 2008.

NESTA REPORTAGEM
Quatorze anos depois, Appy voltou a Brasília – e concluiu parte da missão. Em julho, o governo conseguiu a aprovação, com ampla maioria, de um projeto de reformulação dos impostos sobre consumo.

Uma vitória importante para o primeiro semestre após o retorno do PT ao poder, mas incompleta. Para uma segunda fase, ficou aquilo que economistas consideram o flagelo central do sistema tributário brasileiro: as taxações sobre renda e patrimônio.

“A Reforma Tributária sobre consumo é importante, mas não é o mais urgente, porque não altera a regressividade tributária”, afirma Rosa Chieza, professora de Economia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e membro do Instituto de Justiça Fiscal (IJF).

Falta aprovado do Senado para as novas normas entrar em vigor até o final do ano

Foto: Roque Sá/Agência Senado

Expectativa do governo é de que, após aprovação no Senado, as novas normas entrem em vigor até o final do ano, com mudanças progressivas até a plena implementação em 2032

Foto: Roque Sá/Agência Senado

O artigo 18, da PEC 45/2019, aprovada por deputados federais em julho, determinou que, dentro do período de 180 dias após a promulgação do texto do projeto, o Poder Executivo deve encaminhar projeto de lei que promova mudanças sobre a tributação de renda no país.

Em entrevista ao Extra Classe, o deputado federal Reginaldo Lopes (PT-MG), coordenador do Grupo de Trabalho sobre o Sistema Tributário Nacional, afirmou que o próximo passo “vai depender de alinhamento político”, e não garantiu que o projeto fosse enviado no prazo pretendido por Haddad.

O que ocorreu no final de agosto, junto com a Medida Provisória (MP) que corrigiu o valor do salário mínimo e a tabela do IR – a isenção passou a ser para quem ganha até R$ 2.640 –, foi o envio da medida para taxação dos fundos exclusivos, aqueles que contam com um único cotista.

Até então, os chamados fundos dos “super-ricos” que têm apenas 2,5 mil acionistas no país e somam patrimônio de R$ 756,8 bilhões, eram taxados somente no momento do resgate.

Com a mudança, devem ser tributados duas vezes ao ano, com uma alíquota de 15% a 20%.

A intenção é injetar mais dinheiro no orçamento, já que a ampliação da faixa de isenção do IR irá retirar R$ 3,2 bilhões da conta em 2023.

Além disso, o Executivo também enviou um projeto de lei para taxação dos offshores, que são empresas abertas fora do país de residência, geralmente em lugares onde a tributação é reduzida.

CONSUMO – Até agora, as alterações aprovadas incluem mudanças na taxação sobre o consumo.

A PEC simplificou tudo aquilo que incide sobre o que o cidadão compra, desde leite, feijão, arroz, pão, até roupas e materiais para construção civil, por exemplo.

A principal mudança é a unificação de tributos federais, estaduais e municipais, que busca resolver a sopa de letrinhas (e de números) que vigora no país.

No modelo atual, sobre cada produto comprado no Brasil incidem três impostos federais (IPI, PIS e COFINS), um estadual (ICMS) e um municipal (ISS).

A nova proposta cria o Imposto sobre Valor Adicionado (IVA) dual. Uma parte será destinada à União, chamada de Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), e a outra destinada a estados e municípios, nomeada de Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), além de criar impostos seletivos.

O texto seguiu para aprovação no Senado, e a expectativa é de que entre em vigor até o final do ano, com mudanças progressivas até a plena implementação em 2032.

Os mais pobres continuam pagando mais…

Apesar de resolver um importante problema da tributação no país, a primeira etapa da Reforma Tributária deixa de fora mudanças sobre renda e patrimônio, responsáveis pela geração de desigualdades históricas no país.

“O problema da tributação no Brasil é o excesso de incidência sobre o consumo, e pouca incidência sobre renda e propriedade”, alerta Chieza.

Na prática, isso significa que o país, historicamente, optou por impostos que afetam igualmente toda a população, sem distinção de renda – proporcionalmente, são os mais pobres que pagam mais impostos. É o chamado sistema tributário regressivo.

Dados divulgados pela Receita Federal indicam que, em 2020, no Brasil, os impostos sobre bens e consumo representavam cerca de 44% do total da arrecadação no país, enquanto a média para os países-membros da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE, também chamada de “clube dos países ricos”) era de 31,5%.

Enquanto isso, a taxação de rendas, lucros e dividendos tem relação inversa: a contribuição em comparação ao total arrecadado nos países-membros da OCDE tinha média de 39,1%.

No Brasil, ficava em 28,8%.

Em outras palavras: de cada 100 reais arrecadados com impostos, 44 vêm das compras diárias da população, e menos de 29 vêm de taxações sobre a renda.

Um cidadão cuja renda é de três salários mínimos, por exemplo, destina a maior parte do orçamento – quando não a integralidade dele – para pagar as contas de alimentação, água, gás, etc.

Em paralelo a isso, pessoas com renda de trinta salários mínimos raramente vão destinar 100% da sua renda para compras no supermercado e gastos domésticos, justamente por terem um orçamento maior.

Uma vez que a tributação no Brasil incide principalmente sobre o consumo, o cálculo da carga tributária (tudo que se paga sobre tudo que se ganha) dos mais pobres é maior.

A questão, portanto, seria reequilibrar o orçamento do país.

“O conflito é a respeito de quem vai financiar o fundo público e sobre quem vai recair o ônus da tributação”, explica Evilásio Salvador, doutor em Políticas Sociais e professor da Universidade de Brasília (UnB).

… e os mais ricos esbanjam isenções

Uma das pontas que ficaram soltas na primeira etapa da Reforma é a correção da Lei nº 9.249, uma herança do início do mandato de Fernando Henrique Cardoso, em 1995.

Na ocasião, o Brasil acabou com a taxação de lucros e dividendos para pessoas físicas no país – uma mudança que, três décadas mais tarde, segue vigente e provocando críticas de especialistas e políticos.

“É imoral alguém receber lucros e dividendos e não pagar Imposto de Renda, enquanto quem ganha 1,5 salário mínimo está pagando”, argumenta o deputado Reginaldo Lopes.

Atualmente, Brasil e Estônia são os únicos países do mundo que ainda isentam essa forma de renda.

Por aqui, esses valores representam 36% do total de isenções do sistema tributário brasileiro.

“É algo que fere o princípio da isonomia, porque trata as pessoas de forma desigual. Fere também o princípio da generalidade, porque está isentando a renda do capital e não isentou a renda do trabalho”, critica Rosa Chieza.

Em 2021, o total de lucros e dividendos declarados para a Receita atingiu o valor de R$ 555,7 bilhões – cerca de 74% desse total, um montante que supera os R$ 410 bilhões, ficou nas mãos do 1% mais rico da população.

 Dep. Reginaldo Lopes (PT - MG)

Foto: Cleia Viana/Câmara dos Deputados

O Dep. Reginaldo Lopes (PT – MG) pontuou que a aprovação dessas mudanças depende de “capacidade de negociação e mediação”, sem estabelecer um prazo para chegar lá

Foto: Cleia Viana/Câmara dos Deputados

E, quanto mais se sobe na pirâmide da renda, mais isenções parecem estar à disposição dentro do sistema em vigor atualmente: o 0,01% mais rico do país tem 95% de suas rendas não tributadas ou submetidas a regimes especiais.

Trata-se de um grupo de apenas 2.342 pessoas, cuja renda média anual varia de R$ 20 milhões a R$ 22 bilhões.

“Ao aumentar a arrecadação de lucros e dividendos e fundos exclusivos, você passa a ter condições de aumentar a isenção do Imposto de Renda para Pessoa Física, o IRPF”, afirma Reginaldo Lopes.

Essa, aliás, foi uma das bandeiras de campanha do presidente Lula: aumentar a faixa de isenção para R$ 5 mil, um compromisso que já havia sido feito pelo antecessor, Jair Bolsonaro, e que não foi colocado em prática nos quatro anos anteriores.

Hoje, a isenção beneficia apenas quem ganha até R$ 2.640,00 mensalmente. E a maior alíquota, de 27,5%, incide para quem ganha acima de R$ 4.664,68.

Foi um problema que se agravou ao longo das décadas: em 1996, a faixa de isenção cobria quem ganhava até oito salários mínimos, e hoje não chega a dois.

O IRPF, intocado na primeira fase da Reforma Tributária, prejudica quem ganha menos não apenas nas taxações sobre consumo: também é um sistema ineficiente em termos de política social, já que faz o país arrecadar menos através do tributo sobre a renda.

Enquanto a alíquota máxima no Brasil fica em 27,5%, a média da América Latina está em 34,1%, e nos países da OCDE, chega a 44,6%.

Colocando em termos simples: imagine que todo o PIB brasileiro pudesse ser concentrado em R$ 100.

Nesse universo, o que é arrecadado em Imposto de Renda no país representa apenas R$ 2,14.

Se esse mesmo cálculo é aplicado à média da OCDE, esse valor é quadruplicado, chegando a R$ 8,55.

Ou seja, ao tributar de maneira regressiva e desigual os brasileiros, o Estado abre mão de dinheiro que poderia financiar a saúde e a educação públicas – justamente políticas que beneficiariam os mais pobres (e mais taxados).

O que vem agora

“Se o maior problema do sistema tributário é a regressividade, por que não começar combatendo isso?”, questiona Evilásio Salvador, professor da UnB.

Para ele, a explicação estaria na composição do Congresso Nacional, que impediu uma Reforma Tributária mais ambiciosa – e, talvez, barre as mudanças mais profundas que são prometidas para uma segunda fase.

“A PEC 45/2019 é de uma organização da sociedade civil, financiada por grandes empresas, e que tem seus representantes no Parlamento”, explica.

Mas para taxar lucros e dividendos e efetuar mudanças no IRPF, a história é outra.

“Como sabemos, os trabalhadores, os mais pobres, não têm maioria parlamentar. Não têm força de pressão”, afirma Salvador.

Tentativas de governos anteriores mofaram no Congresso Nacional. O projeto de lei 2337/2021 definia alíquota de 15% para tributação de lucros e dividendos. Foi aprovada pela Câmara dos Deputados, mas aguarda, até hoje, apreciação do Senado.

Ao Extra Classe, o deputado federal Reginaldo Lopes pontuou que a aprovação dessas mudanças depende de “capacidade de negociação e mediação”, sem estabelecer um prazo para chegar lá.

“Deve ter alteração no Imposto de Renda de pessoa jurídica, não sei se teremos no de pessoa física. Mas ainda não está tudo definido, estamos estudando as ações”, explica Lopes.

O parlamentar afirma que já existem projetos sobre renda e patrimônio na Câmara dos Deputados. A questão, para ele, é o que o Congresso vai escolher.

“Para equilibrar regras primárias, nós vamos tirar os mais pobres do orçamento ou nós vamos colocar os mais ricos no sistema tributário?”, indaga. A resposta deve ser conhecida nos próximos meses.

Comentários