EDUCAÇÃO

Aluno-cliente, aluno tirano

Por Luiz Carlos Barbosa e Jacira Cabral da Silveira / Publicado em 6 de março de 1998

Numa tarde de 1967, um menino de nove anos assobiava uma marchinha enquanto fazia xixi no banheiro de uma escola pública de Canoas. Ao sair para o corredor foi repreendido com energia pela diretora que passava e ouviu o barulho. Ela foi severa e intolerante. E assim era a escola naquela época e o menino, inocente, não entendeu o pito e nem sabia que uma ditadura militar governava o país com o general Costa e Silva.

“Aí, cala a boca, já estou passada, para de me incomodar”, pronunciou com arrogância, num dia do final de 1997, uma adolescente do colégio particular Província de São Pedro, de Porto Alegre, indignada com a professora Márcia, que reclamara da sua conduta ao lançar uma lata de refrigerante ao cesto de lixo sem se levantar da carteira. A professora reagiu com cautela à humilhação e foi demitida por justa causa. E todos sabem que o Brasil tem um regime democrático, comandado por um intelectual, o professor aposentado da Universidade de São Paulo (USP) Fernando Henrique Cardoso.

Trinta anos separam as duas cenas. Mas o paradoxo é só aparente, faz parte da mesma história que revela a ambivalência da democracia possível no Brasil e a degradação de valores. O professor passou de “mestre” a empregado subalterno como se fosse um balconista. A educação, pública e privada, deixou de ser um alicerce de cidadania e Nação para se converter em mercadoria. A escola transformou-se num agente de mercado sempre em competição. E, claro, nesta disputa, quem leva a pior é a escola pública – leia matéria Lógica de mercado no ensino público.

No entanto, havia um tempo em que a escola era um lugar sóbrio, sagrado como a igreja; exigia silêncio, concentração e respeito aos ritos. Quando o assunto era disciplina, as escolas públicas não eram muito diferentes das escolas de confissão, escolas particulares. E na sala de aula reinava todo poderoso o professor, temido, mitificado, idolatrado ou odiado.

Sob as lentes grossas do óculos, o olhar inquiridor da professora de Matemática provocava arrepios. O professor de Português causava desarranjo até nos alunos mais atrevidos. Atrevido, aliás, era um adjetivo que qualificava bem aqueles alunos que arriscavam a mais banal reação às verdades, desejos ou mesmo caprichos dos professores. O poder era deles e os alunos tinham a única alternativa de respeitar.

A escola era autoritária como o país. Entretanto, o professor não era apenas uma referência tirana. Ainda que ao estilo impositivo da época, era também portador de valores humanos universais. As cartilhas de então, como o famoso Programa de Admissão ao Ginásio – extinto em 1971, com a Reforma do Ensino -, traziam textos que enunciavam princípios educacionais baseados no binômio instrução-moral. A instrução era o conhecimento técnico propriamente dito, a moral dizia respeito à formação do caráter no âmbito ético, moral, cívico. Os valores em questão correspondiam aos interesses da ditadura militar. Porém, de qualquer forma, alguns princípios eram legítimos, como noções de nacionalidade, de bem público.

Nos últimos 30 anos, o Brasil se modificou. Veio o milagre econômico, a recessão, a redemocratização, o vexame Collor de Mello, protagonizado pela elite nacional e, a sua expiação, com a conversão e a síntese disso tudo afinal num projeto representado por Fernando Henrique Cardoso. A escola da era Real, do plano econômico e da ideologia, é outra, tão pragmática quanto o preço da carne de galinha e o patamar político do Congresso Nacional. O paradigma essencial é a mercadoria e o preço. A venda, a negociação e o marketing são os termos fundamentais nesta lógica comum ao exercício da política e da educação.

ECONOMIA POLÍTICA – Simplificando às noções clássicas do marxismo, enquanto instrumento de dominação e reprodução ideológica da classe dominante, a escola de 1997 responde exatamente às expectativas do grau e modelo de desenvolvimento do capitalismo sob a vigência do neoliberalismo. O leitor mais ingênuo ou mais posicionado poderá pensar que este raciocínio não passa da antiga retórica da velha esquerda. Mas pode não ser, como sustenta um psicólogo e economista chileno que prefere não se identificar. Para ele, as noções de qualidade total, globalização e competição revelam que o capitalismo no estágio atual trabalha com duas lógicas complementares, a da expansão do mercado e a da produtividade, através da economia na operação gerencial.

“Ora, se o capital precisa economizar na gerência e aumentar ganhos na expansão de mercado para fazer crescer a lucratividade, a lógica é formar poucos quadros dirigentes e muitos consumidores”, esclarece, completando: “antes as estruturas de gestão eram complexas e exigiam uma estrutura mais horizontalizada, com cargos intermediários de chefia; hoje bastam poucos executivos supercompetentes, alguns técnicos e máquinas sofisticadas em termos de automação”.

A escola contemporânea faz exatamente isso. Forma muitos técnicos especializados, com restrito conhecimento geral e capacidade de gestão, habilidades reservadas aos poucos quadros dirigentes que o mercado requer e o que explica a disputa e os polpudos salários pagos aos executivos com essas aptidões.

O psicanalista José Luiz Caon, pesquisador do GEEMPA e professor no Departamento de Psicanálise e Psicopatologia e no Pós-graduação em Psicologia do Desenvolvimento do Instituto de Psicologia da UFRGS, atenta para a ausência de nitidez entre produção e consumo também no âmbito da escola. “Talvez aí haja uma conexão relevante entre economia política e psicanálise”, pondera, questionando até que ponto o professor e o aluno são produtores ou consumidores de conhecimento. “O conceito de mercadoria adquiriu uma diversidade impressionante, inimaginável por Marx, como é o caso da mercadoria virtual, antes sob o domínio da Igreja que, inclusive, hoje também recorre ao marketing. Neste sentido, hoje mais do que nunca é preciso ler Marx, mas ler de verdade”, enfatiza o psicanalista, convencido de que a escola está absolutamente tragada pela hegemonia do consumo e não da produção. “Não se está produzindo conhecimento e conhecedores, apenas consumindo o conhecimento dado. Tanto é que se recorre a novas maneiras de transmitir conhecimento. O bufo de hoje é a palmatória de antigamente”, compara, referindo-se ao estilo de ensinar com “graça” inaugurado pelos cursinhos de pré-vestibular.

CONSPIRAÇÃO – Há 30 anos seria impensável um anúncio publicitário como o que o Sinepe, o sindicato das escolas particulares do Rio Grande do Sul, está veiculando. Porém, hoje não causa escândalo a assertiva Escola particular: uma questão de qualidade. Há quem sustente até que a própria massificação da escola pública foi responsável pela queda na qualidade do seu ensino. É o que afirma o economista Claudio de Moura Castro no artigo O sonho do ministro, publicado na seção Ponto de Vista da revista Veja de 4 de fevereiro. Conclusão, só foi possível oferecer escola para muitos com a inevitável queda da qualidade.

Ou seja, o governo, a mídia e boa parte da opinião pública conspiram contra o ensino público. Imperam os conceitos de qualidade total, globalização, que quer dizer, competição, disputa de mercado e privatização do Estado. Sob o argumento da modernização, a escola pública já era, para quem tem dinheiro. Ela está de portas abertas para os pobres, mas com raríssimas exceções, sempre com migalhas de orçamentos e professores humilhados, aviltados. E mesmo assim, os modernos governantes dizem que é preciso disputar qualidade. Segundo o psicanalista José Luiz Caon, a produção de profissionais em escala chega ser vil e corrupta. Um mesmo curso chega a ter oito turmas “Há uma corrupção da educação e o curso de graduação em Psicologia é escandaloso e o Ministério da Educação não controla. Se há corrupção na formação, imagine depois, na medida em que está em jogo o ganho, a expansão.” Para ele, “a vilania do ensino particular” não se justifica porque o ensino público está maltratado. “Na verdade, a diferença entre o ensino público e o privado é que neste corre dinheiro.”

Independente do discurso ideológico e da propaganda, que o publicitário Norton Flores considera até bem pouco tempo tímida – leia Escolas recorrem à publicidade -, a concepção de mercado no cotidiano da escola particular, principalmente, alcançou patamares que se aproximam da irresponsabilidade. “A competição entre as escolas chega a ser nojenta”, classifica Caon, lembrando que a publicidade das escolas de Brasília é idêntica a de um supermercado, transformando a educação em uma mercadoria como qualquer outra. “Enquanto fornecedora de mercadoria, a escola precisa de clientes e esses clientes, os alunos, são os verdadeiros patrões, que tornam o professor um mero empregado, como se fosse um atendente”, assinala o psicanalista.

A professora Márcia relata que no Província de São Pedro vigora o princípio de que o aluno sempre tem razão e só a direção manda. A repreensão da aluna que fez uma lata de refrigerante atravessar a sala de aula representou a sua demissão por justa causa três semanas antes de terminar o ano letivo. A aluna não refreou o ímpeto nem mesmo numa reunião com o coordenador do segundo grau. Gritou com a professora, foi embora e no dia seguinte o pai dela foi tranquilizado pela direção da escola com a dispensa da professora que, há três anos, foi convidada a integrar o corpo docente pela própria diretora da escola.

Márcia, que tem licenciatura plena em Artes Plásticas e é especialista em Psicopedagogia, confessa que foram três anos difíceis lecionar na escola. Segundo ela, cada sala de aula, desde o jardim de infância, tem um computador – muito mais para passar o protetor de tela do que ser usado adequadamente – mas a escola não tem biblioteca. “Eles fazem as coisas mais mirabolantes apenas por marketing”, acusa. A demissão por justa causa de Márcia e de outras três professoras da Sociedade Educacional Província de São Pedro está sendo contestada na justiça pelo Departamento Jurídico do Sinpro/RS. A direção da escola foi procurada em 18 de fevereiro para se manifestar, mas uma pessoa que se identificou como Marta informou que a diretora não poderia dar entrevista porque estava viajando.

Escolas recorrem à publicidade

Surpreendentemente, o publicitário Norton Flores avalia que até bem pouco tempo as escolas eram muito tímidas em termos de marketing. “Era falta de hábito”, atribui o diretor da Blanke Comunicação, há seis anos realizando trabalho de publicidade e propaganda para o Sinepe, o Sindicato das escolas particulares. Mas ele revela que nos últimos cinco anos tem crescido o número de escolas recorrendo à agências de publicidade para divulgar seu trabalho. Ele acredita que esta procura ocorre por uma mudança de mentalidade.

Segundo ele, na medida em que as escolas particulares enfrentam uma nova realidade de mercado, onde existe uma escola pública de má qualidade e um aumento de demanda na rede privada, é importante para a escola particular buscar informar aos pais as diferenças de sua oferta para subsidiar a escolha. Entretanto, na opinião de Flores, esta mentalidade enfrenta uma barreira pedagógica. “É difícil para uma instituição escolar considerar a nova realidade de mercado e não se limitar aos conteúdos pedagógicos”, explica.

O publicitário classifica em três tipos a propaganda realizada pelas escolas. Em primeiro lugar, cita a propaganda séria, realizada por uma agência que parte de um trabalho amplo de pesquisa junto ao mercado, para melhor assessorar seu cliente a diferenciar seu produto da concorrência e a encontrar a melhor forma de informar seu público alvo. Existem também aquelas agências que baseiam seu trabalho em futilidades e apoiado apenas na mídia, como se bastasse a criação mal feita de textos com pobres trocadilhos. Por fim, descreve a propaganda doméstica, aquela em que as próprias escolas elaboram faixas, que são afixadas nas fachadas das escolas, tumultuadas de informação que, além de não permitir uma leitura completa para aquele que passa, cai no ridículo do acúmulo de ofertas de atividades diferentes para as crianças.

Promoção da violência

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Enquanto o Estado empurra a escola pública para parcerias impróprias com a iniciativa privada, sua precariedade reduz a autoridade dos professores e promove a indisciplina, a evasão e a marginalização dos estudantes pobres. Na escola particular não é a precariedade que promove a indisciplina. É a abundância, o poder aquisitivo dos alunos de famílias de classe A e B que os tornam indisciplinados porque, aos 14, 15, 16 anos, são os donos da escola, os verdadeiros patrões de uma empresa onde o professor foi alçado à condição de atendente, mero empregado, subordinado à logica onde tudo é mercado, oportunidade de negócios.

“Neste contexto mercadológico vigora a antiga lei do provérbio em que o cliente tem sempre razão”, analisa Renato de Oliveira, cientista político, professor na UFRGS e presidente da Adurgs. Essa mentalidade, segundo Oliveira, faz com que, na escola privada, sempre que existe uma crise entre aluno e professor, principalmente em instituições de primeiro e segundo graus, quem acaba levando a pior é o profissional. Isso porque o aluno, como cliente, sempre tem razão.

Oliveira lembra ter vivido uma situação semelhante, no ano passado, no Colégio João XXIII, onde estuda sua filha de 14 anos. À certa altura do ano letivo a menina teve um problema com a professora de Português. Ele foi à escola para se inteirar do assunto do ponto de vista da instituição e refletir junto com a escola. Mas quando procurou a coordenação pedagógica, não conseguiu nada. “Eles estavam constrangidos em discutir com um freguês”, comenta, “assim como qualquer dono de supermercado se sentiria constrangido em admitir uma falha de uma caixa frente a um cliente”. No final do ano, sua filha chegou em casa dizendo que a professora havia sido demitida. Agindo desta forma, Renato Oliveira acredita que a escola desfaz um elemento essencial na formação da consciência da cidadania que é a questão dos limites, a noção dos direitos do outro.

Noutro tradicional colégio de Porto Alegre, frequentado por filhos da elite econômica, de!central6.jpg (14683 bytes) escalões superiores do governo e de políticos, dois episódios escandalizaram uma professora que prefere não se identificar. No primeiro deles, alunos que costumam consumir copos de refrigerante durante a aula, se rebelaram pela falta d’água na escola. Ao pedido de calma da professora, argumentando que deveria ser um conserto na rede hidráulica, responderam que seus pais pagam muito bem a escola. “E hoje nós queremos água, porque não fazem o conserto no fim de semana?”. Um período depois, a mesma professora foi advertida pela direção do colégio: uma aluna que, ao invés de participar das atividades de aula, costumava pintar as unhas reclamara que as “aulas eram muito cansativas e sem didática”.

BARBÁRIE – Casos como esses são rotineiros, mas os professores receiam denunciar temendo represálias. Contudo, embora o professor seja a vítima imediata, trata-se de um fenômeno de caráter psicossocial com implicações políticas sérias. Afinal, pais, direções de escolas e autoridades públicas deveriam refletir sobre as consequências do poder entregue a jovens de 15 anos. A escola tradicional que puniu o assobio de um menino de nove anos passava valores e limites num tempo em que a família também o fazia sistematicamente. Hoje, a família e a escola abdicaram disso e o resultado pode ser mais catastrófico do que o arremesso de uma lata de refrigerante ou a rebelião pela falta d’água.

Não seria de se pensar que a ausência da família e da escola na formação ético-moral está formando bárbaros? Será que o aluno que provoca a demissão de um professor não é o mesmo que integra uma gang e usa drogas? Será que o perfil deste aluno não corresponde ao dos jovens que espancaram um rapaz até a morte na praia de Capão da Canoa? Ou daqueles que incendiaram um índio pataxós em Brasília, pensando que se tratava de um mendigo?

“Não há dúvida, é justamente isto que ocorre quando os valores de alguém se colocam acima do que a gente tem de pacto numa convivência coletiva”, assinala a educadora Sofia Cavedon, secretária substituta da Educação do Município de Porto Alegre. “Isso é produto de uma mentalidade descomprometida com uma coletividade e seus regramentos básicos”, acrescenta Sofia.

O advogado Carlos Raymundo Gonzalez, baseado na experiência profissional, apresenta duas hipóteses complementares para a conduta violenta entre os jovens de classe média e alta. “Os pais, ilegítima e inconsequentemente, delegam aos filhos um poder que adolescente não têm condições de lidar”, explica. A segunda interpretação do advogado é a de que os pais gozam através da atitude dos filhos o que eles próprios não puderam gozar no seu tempo. “É como um desrecalque, seja em termos de condições econômicas, seja em termos de liberdades”, esclarece Gonzalez. Ou então, como diz o psicanalista José Luiz Caon, “os pais são incapazes de se impor porque pertencem a uma geração que foi tratada com repressão e se infantilizou. São pais adolescentões, que sofrem duplamente. Sofreram a ditadura de seus próprios pais e agora sofrem a ditadura dos bebês”, resume o psicanalista.

O cientista social Ruben George Oliven, autor, entre outros, de Cultura e Violência no Brasil, coordenador do Programa de Pós-graduação em Antropologia Social da UFRGS, se reporta aos políticos de Brasília para analisar a questão dos limites. Ele entende que, por deterem poder, transmitem aos filhos a ideia de que para eles tudo é possível. Para Oliven, o caso do índio assassinado em Brasília por filhos de políticos encerra uma justificativa abominável. “O argumento de que imaginavam tratar-se de um mendigo, evidencia a proliferação de uma consciência de que o outro, por ser pobre, pode ser eliminado”, explica.

Oliven entende que episódios como este são reveladores de um Brasil perverso. De um lado, grande parte da população recebe uma educação de pouca qualidade por falta de investimentos e problemas como repetência e evasão. De outro, uma parcela da Nação tem condições de frequentar as melhores escolas pela condição econômica da família e, por isso, acredita que pode fazer o que quer. “É uma elite mal formada, que não tem capacidade cívica”, define.

O luto da adolescência

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O psicanalista José Luiz Caon sustenta que a delinquência entre os adolescentes tem um caráter psicossocial evidente. Para ele, a marginalidade na classe alta e na classe baixa não é diferente; o que muda é o tratamento, a primeira tem advogado, psicólogo, a segunda a polícia e os institutos de recuperação. “Na classe alta é uma questão de oportunidade, porque na adolescência o gozo imediato acima de tudo se impõe até porque o jovem teme passar por bobo”, analisa Caon, ensinando que a essência da mente do adolescente é uma explosão de inteligência, onde o reino da possibilidade e o reino da exequibilidade se confundem. “Se é possível, é exequível. A inteligência do adolescente não aceita as restrições sociais.”

Neste sentido, argumenta Caon, a psicanálise pode colaborar para que a sociedade compreenda que não se deve abandonar o esplendor da juventude. Para ele, o adolescente precisa ser provocado para tarefas que dêem conta de sua inteligência transbordante e estabeleça sanções no convívio social. “Desta forma, o adolescente conseguirá entrar no outono da sua inteligência”. Segundo o psicanalista, se o jovem não é orientado, não re-cebe grandes desafios, grandes viagens, ele sabe procurá-las sozinho e os traficantes também sabem disso”, adverte. Ele chama a atenção para a negação do gozo, ponderando que quando a escola se recusa a enfrentar não a droga, a camisinha, mas o que se pode fazer com ela – “o papa não é contra a camisinha é contra o que se faz com ela” -, está se esquivando de debater o gozo. “No entanto, todos sabem quem usa droga, quem são os traficantes, mas não se pode tirar as fraldas que aparece o coco fedido”, dispara.

Assim como os pais que não vivenciaram a adolescência na plenitude, os professores que recalcaram esta experiência humana também enfrentam dificuldades na sala de aula. “O professor que não fez o luto de sua adolescência já perdeu frente ao adolescente. Aposto todas a fichas no jovem”, enfatiza o psicanalista, acrescentando: “para quem tem sonhos irrealizados é difícil lidar com o adolescente, porque tende a se manter esperando a realização dos sonhos que já são inviáveis”. Segundo Caon, um professor assim não suporta a adolescência que está à sua frente. “O rancor deste professor é a defesa contra a sua grande melancolia porque sua adolescência se foi, agora é dos outros”.

Escola comprometida na formação do cidadão

Mas o inspetor salesiano da região Sul (RS, SC, PR) não abre mão de uma escola comprometida com valores morais que orientem os jovens a tomar decisões a partir de princípios éticos. O padre Marcos Sandrini trabalha com educação há trinta anos. Atualmente ele é responsável indireto pela formação de mais de 11 mil crianças e jovens, atendidos por escolas e obras formadoras do grupo salesiano no Brasil. Para ele, a questão essencial é o desenvolvimento moral do indivíduo.

Ele adota a concepção de um autor espanhol para as fases de desenvolvimento da conduta humana. A primeira é a anomia, que quer dizer sem lei e corresponde à crianças de três anos. Elas não sabem o que é certo e o que é errado e fazem as coisas conforme tem aprovação ou não das pessoas. A segunda fase é a chamada heteronomia, referente a crianças entre 7 e 8 anos que sabem o que é certo ou o que é errado não por elas mesmas, mas pela pessoa significativa que está com elas (pai, mãe, avós, professora). Na terceira fase, a da socionomia, ainda continua a importância das pessoas significativas, mas os grupos dos coetâneos (da mesma idade) começam a ter uma força muito grande. “É quando temos com frequência a resposta fiz assim porque todo mundo faz assim. Por último é a fase da autonomia, quando o jovem passa a fazer as coisas por convicção própria.

Com base nesta abordagem, Sandrini diz que a educação verdadeira é aquela que faz passar por todas estas fases. Por isso a necessidade de serem trabalhados determinados valores nas escolas para que o jovem, ao tomar suas decisões, o faça com base nestes valores.

O cientista político Renato de Oliveira assinala que o processo de formação de um cidadão é, fundamentalmente, um processo de aprendizado da existência e do significado das instituições não como algo impositivo, mas algo que permite a sua relação de sociabilidade. “E é através da escola que a criança aprende a existência da instituição, porque é ela a primeira instituição do mundo público da qual a criança faz parte. A criança sai de seu mundo privado, de suas relações imediatas, e vai para as relações públicas que se dá no espaço público”. Para ele, é nesta mudança de ambiente que a criança precisa encontrar limites, saber que vai encontrar nesta relação pública problemas que não vai resolver com uma atitude privada, do tipo “eu não quero mais esta professora porque ela não me serve”. “Ela terá de respeitar uma forma de deliberação pública, de debate, de negociação, de explicitação dos pressupostos – porque que eu quero assim, porque que não quero e até que ponto posso não querer”, esclarece Oliveira.

Para Sofia Cavedon, a escola tem como superar o quadro desolador de mercantilismo ao construir um espaço de vivência da cidadania. É fundamental ter uma proposta pedagógica que embase como um todo o fazer na escola. Neste caminho, o objetivo primeiro da escola é compreender a realidade onde está inserida para poder interferir nela. Ao mesmo tempo deve construir conceitos de coletividade que vão permitir a existência de uma sociedade mais saudável, com menos diferenças sociais. “Esta é a nossa utopia”, enfatiza Sofia, quando se refere ao projeto de Escola Cidadã, desenvolvido pela Secretaria Municipal de Educação de Porto Alegre, a Smed.

O projeto, que teve início em 1993, com a criação da escola por ciclos, onde não há reprovação e os alunos são promovidos conforme seu aprendizado, quer em classes normais ou nas turmas de progressão, vem ano a ano conquistando mais escolas municipais. Isto porque a nova concepção de escola não é imposta às direções, esclarece a secretária substituta. Mas tal transformação implica não só uma mudança estrutural como também em um aprofundamento teórico por parte dos professores. “A rede vem rompendo com antigos conceitos do tipo o bom professor é aquele que reprova. Achamos, ao contrário, que o bom professor é aquele que garante a aprendizagem”. Das 46 escolas de ensino fundamental da rede municipal, 29 já adotaram o ensino por ciclos, conta Sofia.

Na proposta da Smed, o professor é um dos principais sujeitos, porque com ele vem a responsabilidade de dar conta de como é que se constrói o conhecimento, de todas estas questões que vão romper com verdades defendidas até então de que o conhecimento tinha de ser especializado. O professor tem de ser mais generalista, afirma Sofia, precisa dar-se conta de que sua matéria faz sentido na medida em que ele consegue estabelecer relações com outras disciplinas. É dentro desta concepção de descentração, o professor saindo do isolamento de sua disciplina e o aluno de seu ambiente privado para o convívio com o outro, que a escola passa a constituir-se como um espaço de aprendizado público.

Lógica de mercado no ensino público

 

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“Há muito tempo avaliamos que, para os governos neoliberais, a educação deixou de ser um direito e passou para a esfera do mercado, da força do poder econômico”. Esta é a opinião de Luís Roberto da Silva, diretor de cultura e sindical do Cpers, quando analisa a conduta do governo estadual com relação aos projetos de lei 313 e 314 – o primeiro cria um novo plano de carreira com achatamento salarial e critério de produtividade empresarial e o segundo transfere responsabilidades da esfera estadual para os municípios e avaliza parcerias com a iniciativa privada. Segundo ele, além de quebrar o sentido de categoria, os projetos aprovados na Assembleia Legislativa em janeiro último, distanciam o professor da comunidade onde trabalha, ao mesmo tempo que o sobrecarrega de responsabilidades que são do sistema de ensino e não do professor.

O sindicalista entende que ambos os projetos levam a escola pública para a esfera do ensino privado enquanto disputa de mercado. Para tanto, o 313 cria um novo Plano de Carreira instituindo uma mentalidade para atingir pontuações segundo critérios de um modelo empresarial empregado pelo conceito de qualidade total. Ao mesmo tempo repassa ao professor responsabilidades que são do Estado. No final de cada ano será computado pontos positivos a favor do professor, caso ele tenha conseguido manter um maior número de alunos durante todo o ano. Ou seja, que ele assegure um número máximo de alunos matriculados em sua turma e que dê conta de garantir que eles não se evadam entre março e dezembro, seguindo a mesma lógica de uma empresa que busca a fidelidade do cliente.

Conforme o diretor do Cpers, o projeto 314 consolida o abandono da escola pelo Estado, ao repassar o gerenciamento de recursos públicos para empresas que venham a estabelecer parcerias com as escolas. Entretanto, segundo ele, o perigo maior está nos poderes conferidos aos novos parceiros do setor privado. “Eles também poderão opinar sobre questões pedagógicas”, alerta o sindicalista.

ESTRATIFICAÇÃO – “Esta estrutura que passa a existir na educação do Estado, que flexibiliza as relações de trabalho, jornada e conteúdos, acaba criando escolas diferenciadas e um sistema com uma base mínima de qualidade”, adverte o professor. Ele ilustra a situação com uma reflexão do professor Miguel Arroio, que define dois tipos de educação: a chamada filé mignon, boa para passar no vestibular, e a educação chuchu, que é aquela ideal para a marmita do trabalhador. “Com isso, vai haver uma estratificação cada vez maior das escolas e é esta noção de competição que acaba com o sentido solidário dentro da escola”, conclui.

Para Sofia Cavedon, a atitude do Estado é de adequação a objetivos de mercado e de competição: “estabelece políticas de avaliação externa que têm parâmetros para avaliar e para estabelecer competição entre escolas, e assim, mais uma vez, excluir um número maior de escolas e investir em algumas que vão se adequar aos objetivos de um mercado competitivo e individualista. Ela salienta que o problema da reprovação é da escola que se descolou totalmente da vida, das necessidades e interesses do aluno. Sofia também respalda sua análise nas ideias de Miguel Arroio, quando ele compara a ação da escola a uma peneira. De acordo com o autor, a escola sempre vai peneirar, seja qual for o aspecto que ela tome aos nossos olhos. Dentro desta escola de peneira, continua Sofia, as séries são quadradinhas, com um tempo “x” para aprender, onde as respostas devem ser dadas igual ao que se ensina, ou seja, as verdades estão prontas. “Tem uns que vão responder e outros que não vão responder. E quem diz que isso é aprender?”

O cientista social Rubem Oliven, mais ponderado ao expor suas ideias, é bastante enfático quanto à obrigatoriedade do Estado oferecer educação e saúde de qualidade à população. Ele não se opõe às parcerias com o setor privado para investimentos nas escolas, mas não concorda que se delegue a este setor a função pedagógica da escola. No entanto, não acredita que o empresário e a indústria brasileiros vão ter interesse em fazer doações para o ensino no país.

Para ele, a mentalidade do empresário brasileiro está muito longe de fazer doações, como ocorre em outros países. “O empresário brasileiro tem dificuldade de pagar seus impostos quanto mais praticar doações que não pode abater do imposto de renda”, acentua.

Mais contundente, Renato de Oliveira alerta que o estado está destituindo a escola pública como espaço público e estimulando coisas piores. Segundo o professor, existem empresas montando escolas anexas para atender aos filhos de seus trabalhadores. Cita o caso da Azaleia, em Novo Hamburgo, que construiu uma escola para os filhos de seus empregados. O problema, segundo Oliveira, é que a empresa vai estar colocando sua ideologia dentro da escola, vai estar transmitindo para os alunos uma visão empresarial de mundo e não uma perspectiva democrática e plural.

Oliveira admite as parecerias, desde que isto não represente o repasse da gerência do sistema escolar para a empresa. “Parceria é bom”, diz ele, “devemos aplaudir aqueles que quiserem doar recursos do setor privado para a manutenção das escolas, mas a gestão do sistema tem de ser pública, e esse dinheiro não deve ser substitutivo do orçamento público, do compromisso estatal de manutenção da escola”, ressalta.

Salesiano rejeita mercantilização

Para o padre salesiano Marcos Sandrini uma escola sem proposta pedagógica entra no sistema de cliente. Para ele, os profissionais da educação são os responsáveis pela teorização da educação a ser levada pela escola com base na realidade do aluno. “Uma escola que se dobra para se transformar numa prestadora de serviço e o aluno em um cliente é uma instituição que não tem uma postura educativa correta”, salienta.

Mesmo estando afastado da responsabilidade direta com alguma escola salesiana, Sandrini faz questão de documentar o trabalho que ajudou a realizar no Colégio São Luiz, em Porto Alegre. Segundo ele, o São Luiz é um exemplo de como é possível atender a uma demanda de mercado sem tornar-se mercadoria e ao mesmo tempo trabalhar na formação de crianças e jovens segundo valores de promoção social.

Era uma escola que não tinha mais perspectivas de sobrevivência desde que o bairro Boa Vista tornou-se zona nobre e não foram renovados antigos convênios com a Prefeitura, bolsas do Estado e o salário educação. Restaram apenas as famílias de classe média, que não eram o suficiente para manter a escola. Foi aí que um grupo de professores, frente à eminência do fechamento da escola, pediu à mantenedora um tempo para que preparasse uma proposta para reverter a situação. Durou aproximadamente um ano e meio este preparo e estudo de proposta.

A partir de então, o São Luiz se propôs a atender a uma demanda familiar que corresponde a um perfil atual das relações sociais. Somado à necessidade dos pais de terem quem cuide dos filhos no período oposto ao da aula regular, cerca de 70% dos alunos do São Luís tem pais separados, o que dificulta ainda mais a questão de com quem deixar as crianças.

“Mudamos por uma proposta pedagógica que correspondesse a uma nova realidade social e sua demanda. Vou atender bem meu aluno não porque ele é meu cliente mas porque lhe quero bem. Vou querer que ele permaneça na minha escola porque tenho uma proposta para ele que acredito ser necessária para a vida dele”, encerra orgulhoso.

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