Sob a batuta ideológica do neoliberalismo, o concerto iniciado por Collor de Mello em 1990, executado provisoriamente, sem muita convicção por Itamar Franco, e consagrado por Fernando Henrique Cardoso nos últimos quatro anos, está restaurando o darwinismo social no país, empurrando as relações de trabalho para os patamares do século XVIII. O presidente Fernando Collor de Mello assumiu em 1990 e na marra convenceu o Brasil que a saída era internacionalizar a economia, enxugar o Estado e reformar a Constituição de 1988. Itamar Franco pegou o resto do mandato e tentou fazer a reforma constitucional mas não teve disciplina e habilidade suficientes para fazer o Congresso Nacional votar seus projetos. Os então ministros Ciro Gomes e Fernando Henrique Cardoso foram pavimentando o caminho das mudanças econômicas que garantiram a eleição do segundo presidente. Tudo que Collor não teve tempo de fazer e Itamar não conseguiu, Fernando Henrique implantou com o amparo da maioria governista no Congresso Nacional, sempre bem contemplada nas suas demandas setoriais. Oito anos depois deste processo que pariu conceitos como o Custo Brasil, reinventou o significado da palavra modernidade e assimilou a ideia de Estado mínimo, as relações capital-trabalho retrocedem aos patamares do século XVIII. Os trabalhadores brasileiros estão diante da barbárie que revoga direitos históricos como contrato de trabalho, cláusulas sociais e um poder judiciário especializado em consagrar a máxima de que é preciso proteger os mais fracos. Cada vez menos benefícios, cada vez menos salário, cada vez menos postos de trabalho.
A “modernidade” bate à porta do trabalhador brasileiro através de modificações que estão sendo introduzidas nas relações de trabalho pelo Ministério que trata do assunto.
Mas quais são essas mudanças e o que representam na vida do trabalhador? Segundo um relatório do MTb, a receita passa pela desregulamentação ou flexibilização das relações de trabalho, pela instituição da pluralidade sindical, pela extinção do poder normativo da Justiça do Trabalho e pela adoção da arbitragem privada na solução dos conflitos de natureza econômica.
NESTA REPORTAGEM
Mas dirigentes sindicais, políticos de oposição, juízes do trabalho e profissionais especializados asseveram que, por trás do discurso da modernidade e, sob o pretexto de combate ao desemprego, está escondida a retirada de direitos históricos que se consagraram a partir deste século.
Num quadro em que o paradigma social dominante é o mercado e suas leis, ressurge a doutrina do darwinismo social. Afinal, só os fortes, em condições de concorrer e vencer a competição, vão sobreviver. Todos os outros serão excluídos.
“É a barbárie”, classifica Miguel Rossetto, 38 anos, 20 de militância sindical, eleito deputado federal em 94 pelo PT e candidato a vice-governador na chapa de Olívio Dutra neste ano. “O movimento em curso é de completo desrespeito à legislação, é a lógica da exploração brutal”, explica.
Pedro Ruas, 42 anos, advogado trabalhista há 20 e candidato ao senado nestas eleições pelo PDT, também concorda que “a flexibilização é um retrocesso cruel ao século passado”.
Segundo ele, o projeto governamental esvazia direitos específicos e as camadas protetoras, que são os sindicatos e a Justiça”. Ruas foi o único candidato a tocar no tema durante o horário de propaganda eleitoral gratuita.
O professor Antonio David Cattani, coordenador regional da Fundação Interuniversitária de Estudos e Pesquisas Sobre o Trabalho (Unitrabalho), constata que “o capitalismo está voltando ao final dos século XVIII, porque flexibilização significa redução de direitos conquistados há mais de 200 anos”.
E avisa que, ao contrário do que prega o Palácio do Planalto e seus defensores no Congresso, o projeto não trará mais emprego. Pelo contrário, agravará a situação, porque a redução de direitos e salários significa redução de mercado. “Numa lógica estritamente econômica, é menos salário circulando, portanto, menos consumo”, ensina.
Indicativos do desemprego
Já a juíza do trabalho Jurema Reis Oliveira Guterres, que responde pela presidência da Associação dos Magistrados do Trabalho (Amatra), informa que ela e seus colegas estão “intranquilos” com as modificações apresentadas ao mundo do trabalho. “Entendemos que as soluções para as questões econômicas e políticas não se resolvem com a flexibilização”.
Segundo ela, não se pode falar em negociação entre as partes “quando o desemprego está ali na janela, esperando pelo trabalhador”.
Contrato por prazo determinado e banco de horas são duas inovações apresentadas pelo MTb, pelo então ministro Paulo Paiva, que estão se introduzindo nas relações de trabalho. O ex-ministro apontou como vantagens na adoção do contrato por prazo determinado a redução real de custos e encargos: a contribuição do empregador para o Sistema S (Sesi, Senai, Sesc, Sebrae…) passa a ser 50%; a alíquota do recolhimento para o Fundo de Garantia cai de 8% para 2% e é dispensado o pagamento da multa rescisória (40% do FGTS).
O banco de horas foi apresentado por Paiva como uma importante novidade que, diante da variação no nível de atividade, por exemplo, permite a opção pela redução ou incremento da jornada de trabalho de forma compensatória, sem acréscimo de custos. “Trata-se, em resumo, de um conjunto de medidas com o objetivo claro de fomentar a oferta e a preservação de empregos”, diz o documento assinado pelo ministro, à disposição na Internet.
O contrato por prazo determinado tem duração máxima de dois anos, tem data de início e término pré-fixadas e a empresa, após o fim da vigência, tem de aguardar o intervalo de seis meses para um novo contrato com o mesmo trabalhador. É diferente do trabalho temporário, usado para atender à necessidade transitória de substituição de pessoal ou acréscimo de serviço.
Taxas de juro
“Uma característica marcante da economia brasileira tem sido sua acelerada transformação. Estamos deixando para trás uma economia fechada, ineficiente, que promovia a desigualdade e era marcada por sérios desequilíbrios macroeconômicos. No lugar, estamos construindo uma nova: aberta, estabilizada, onde se redesenham os papéis do Estado e da iniciativa privada, onde o emprego e desemprego são temas de grande relevância”, informa o “Relatório da Força Tarefa Sobre Políticas de Emprego”, do MTb, sob a coordenação do secretário de Políticas de Emprego e Salário, Jorge Jatobá.
Lançado pouco antes da crise nos mercados internacionais deste ano – quando o governo federal recorreu à elevação da taxa de juros para tentar evitar a fuga de capitais especulativos para fora do país – o documento do MTb prevê que “a redução das taxas de juros, a normalização do quadro econômico e as iniciativas já dotadas de estímulo à construção civil e de combate aos efeitos negativos da seca devem contribuir para a redução do desemprego ainda em 98”.
Diz mais: “a expectativa é de que, em 1998, a taxa de desemprego seja superior à média do ano passado. Essa previsão decorre do fato de que fenômenos estruturais subjacentes ao crescimento do desemprego continuarão atuando enquanto o ajuste do mercado de trabalho às transições não se completarem”.
Diante desse prognóstico, fica a dúvida se o governo não contava e não tinha capacidade de prever a crise mundial ou se gerar empregos não é uma prioridade na política econômica nacional. O Ministério não terá muito tempo para responder a essa questão, mas os trabalhadores sentirão os resultados após as eleições, como vem alertando a imprensa de todo o país.
Mais adiante, o documento apresenta recomendações para a modernização da Legislação Trabalhista, “tendo em vista a necessidade de dotar o país de uma legislação atualizada, que contribua para abreviar o período de transição econômica”.
A proposta de reforma constitucional modifica os artigos 8 (substituição da unicidade sindical pela liberdade sindical e institui novo sistema de financiamento sindical, de caráter não compulsório) e 114 (suprime o poder normativo da Justiça do Trabalho).
Propõe a suspensão provisória do contrato de trabalho, como alternativa à demissão, com programa de qualificação profissional; alteração da legislação do trabalho rural, de modo a instituir o contrato coletivo e aprimorar o contrato de safra, pena de advertência na fiscalização do trabalho, redução do FGTS, caso adotada, na negociação coletiva, cláusula de garantia de emprego.
Por fim, foi editada uma Medida Provisória que regulamenta o contrato de trabalho a tempo parcial; aumenta para um ano o período de compensação do banco de horas; faculta a extensão do benefício do vale-alimentação para demitidos e para quem tenha o contrato suspenso; revoga artigos da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), do Título de Organização Sindical, não recepcionados pela Constituição de 1988.
“Dotar o país de uma moderna e flexível legislação trabalhista é essencial para que se assegure, no médio e longo prazos, uma maior capacidade de geração e de manutenção de postos de trabalho pela economia. Nesse sentido, a Força Tarefa recomenda que o Governo Federal encaminhe ao Congresso Nacional a reforma das relações de trabalho no Brasil, pois a mudança é necessária para o ajuste aos novos padrões de negociação entre o capital e o trabalho”, sentenciam os pensadores do Mtb.
Extinção da justiça do trabalho
A extinção da Justiça do Trabalho está inserida na Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 43, que delega a outros órgãos a resolução dos conflitos entre empresas e trabalhadores. “Os juízes do trabalho estão intranquilos com estas alterações, pelo que representa para o mundo do trabalho”, revela Jurema Reis de Oliveira Guterres, da Amatra.
A preocupação virou tema de um encontro entre magistrados trabalhistas do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná que se realizará dias 9, 10 e 11 de outubro, em Florianópolis. “Vamos discutir as mudanças na legislação trabalhista, a extinção do poder normativo e a própria extinção da Justiça do Trabalho, temas que estão em andamento”. As conclusões do encontro serão publicadas e encaminhadas ao Congresso Nacional.
Jurema lembra a tese de que o princípio tutelar e a própria Justiça do Trabalho, “conhecida como justiça dos pobres”, buscam estabelecer a igualdade entre as partes. A intervenção da justiça trabalhista sempre foi encarada como parcial pela patronal, “o que não é verdade”.
A juíza desconstitui o discurso governamental de que as inovações vão resolver o problema do desemprego, afirmando que “isso é uma falácia”, porque “além da extinção, a proposta de modificação prevê criação de comissões de conciliação prévia dentro da fábrica. Mas como um trabalhador pode participar de uma comissão dentro da fábrica, se lá fora tem uns dez querendo a vaga dele? Que tipo de liberdade é essa?”, questiona.
Para Jurema, o fim de benefícios trabalhistas, aliado à extinção da Justiça do Trabalho e ao fim da unicidade sindical conduzirá a uma sociedade dirigida pela lei do mais forte. “Hoje se fala na revogação de direitos trabalhistas”, sentencia, completando que tais medidas indicam que a organização jurídica do país – a partir de um plano político/econômico – tende a fragilizar os sindicatos e, ocorrendo isso, fragiliza o próprio trabalhador.
“Através da nossa Associação pretendemos resistir a esses ataques à legislação trabalhista e à Justiça do Trabalho, porque essa é a forma de garantir a cidadania”, afirma.
Questão de direitos humanos
Acabar com os benefícios dos trabalhadores e suas instituições protetoras – sindicatos e justiça trabalhista – significa uma brutal instabilidade nas relações de trabalho e na ampliação das relações autoritárias e desqualificação da produção. Quem afirma isso é Miguel Rossetto.
Para ele, essas inovações construídas num ambiente de desemprego e péssimas condições de trabalho no Brasil, transforma o que está acontecendo numa questão de direitos humanos. “Para nós, é impensável entrar no século XXI com essa onda do século XIX”.
Pedro Ruas, que é conselheiro federal da OAB, também acredita que toda essa discussão tem a ver com os conceitos de direitos humanos, de civilização e de cidadania. Ele estranha a euforia teórica em torno da flexibilização que, por não ser um conceito novo, foi testada e reprovada em outros países.
“Ela surgiu inicialmente na Espanha, mas foi um fracasso e aquele país abandonou a ideia. Depois, foi a vez do Chile, com a desculpa de diminuir o desemprego, mas os índices se mantiveram”.
Luiz Carlos Moraes lembra mais um país, a Argentina, que também se aprofundou no processo de flexibilização. “Chegou-se à conclusão de que o problema do desemprego não foi resolvido, ao contrário, precarizou o emprego existente e permanecem os mesmos índices de desemprego, que são altíssimos”.
Para sindicalistas, advogados trabalhistas, juízes do trabalho e professores especializados, o tripé que está colocado é amparado no desemprego aberto e por pessoas desesperadas por trabalho.
O pacote trabalhista antecipa a agenda do poder executivo e do Congresso para as relações de trabalho e a Previdência Social. Um documento do PFL, entregue ao presidente da República pelo senador Antônio Carlos Magalhães e Jorge Bornhausen, presidente do partido, recomenda a privatização da Previdência Social, nos moldes do sistema chileno.
Por essa proposta, batizada de reforma – 2, em lugar do sistema atual seria criado um sistema privado de fundo de pensão, sob a forma de poupança individual capitalizada, onde cada segurado, desde que cumprida a carência de 35 ou mais anos, e descontada a taxa de administração do fundo, teria sua aposentadoria afixada com base no valor acumulado.
“Esse pacote nos remete para a absoluta incerteza da aposentadoria”, revela Rossetto. A previdência social pública foi assegurada entre os benefícios conquistados pelos trabalhadores organizados neste século. “Com ela, a vida do trabalhador é garantida na doença e na velhice”, completa Ruas, motivo que os leva não só à desconfiança, mas à denúncia do que está contido nas modificações.
Documento de trabalhador
Ao mesmo tempo em que o desemprego assusta, outra preocupação do trabalhador é com a sua carteira de trabalho, ou seja, que direitos adquiridos ao longo dos anos serão afetados. “A carteira de trabalho é um documento importante, simboliza a relação de trabalho e significa vínculo formal de emprego, as regras são asseguradas”, explica Miguel Rossetto. Segundo ele, o que está ocorrendo hoje é o estímulo à informalização.
“O ambiente econômico é de crescente desemprego. Vejam os boias-frias, os camelôs nas grandes cidades, a exploração do trabalho infantil e vislumbrem o futuro anunciado pelos governantes”. Rossetto pondera que, não bastasse isso, a propalada Agenda do Século XXI anunciada pelo governo “é espelhada no século XIX, com brutal instabilidade das relações de trabalho, ampliação das relações autoritárias, desqualificação e péssimas condições de trabalho”. Acrescenta que a Agenda XXI concluirá com a contrarreforma da Previdência “e o resultado é a absoluta incerteza da aposentadoria, a destruição dos serviços públicos, com a queda da estabilidade”.
Pedro Ruas é taxativo ao afirmar que “o governo estuda uma maneira de acabar com a carteira de trabalho”. Anuncia que há um estudo do Ministério do Trabalho, desde a época de Paulo Paiva, de substituição desse instrumento. “Isso é feito de uma forma indireta, pois aceita-se a relação informal como maneira de desestimular a assinatura em carteira. “A redução de custos para aumentar postos de trabalho é uma mentira”, sentencia.
“Com essa proposta desregulamentadora, a ideia deles é que tu tenhas o mínimo, com menos garantias possível”, atesta o advogado Luiz Carlos Moraes. Ele está certo de que, se Fernando Henrique Cardoso for reeleito, o processo se aprofunde.
“Com seu discurso de modernidade, amparado na ideia de que o país, com a internacionalização do capital, a globalização da economia, o próprio Mercosul, tem de criar condições de competitividade junto ao mercado externo, alegando que, para ser competitivo, tem de reduzir custo”.
Moraes reconhece que esse é um discurso forte: “falam que o custo do trabalho no Brasil é muito alto e isso é um elemento que impede a competitividade internacional, mas na verdade, o custo do nosso trabalho é extremamente baixo, se comparado a países como França, Itália e Alemanha”.
Antonio David Cattani é outro que aponta como “falácia” a argumentação de que as modificações reduzem custos e trazem mais emprego.
“A mão-de-obra no Brasil representa muito pouco no custo. Isso não vai resolver o problema do desemprego, pelo contrário, vai agravar, porque redução de direitos e salários significa redução de mercado”, sentencia.
De acordo com ele, numa lógica estritamente econômica, é menos salário circulando na economia, portanto, menos consumo.
Retrocesso histórico
Para o governo federal e seus defensores no Congresso Nacional a flexibilização significa modernidade, para a oposição, a proposta representa a volta ao século XIX, quando os trabalhadores não tinham nenhum direito e produziam até morrer, sem qualquer amparo. A flexibilização do direito do trabalho é uma tese surgida há alguns anos que, na verdade, proporciona a informalização do trabalho.
“Isso dentro de um contexto maior chamado projeto neoliberal, que propõe a volta aos princípios do século XIX, que tinha relação absoluta e cruel com as forças de trabalho”, explica Pedro Ruas. Flexibilização é uma expressão bonita para algo ruim, acrescenta.
Para Cattani, a proposta não chega a ser a volta ao escravagismo, porque o capitalismo não quer e não precisa de mão-de-obra escrava. “Mas não está muito longe disso, porque é uma nova forma de subordinação, um retrocesso à degradação”. O professor acrescenta, que, concretamente, é a desigualdade. Segundo ele, na verdade, o Brasil já adotou a flexibilização há muito tempo. “Os direitos integrais são para muito pouca gente”.
O século XX foi marcado pela evolução das relações de trabalho, quando é criada a chamada relação de emprego: cumprem-se ordens, horários, tarefas. A partir da primeira metade do século, começam a ser adquiridos direitos como férias, hora extra, indenização por tempo de serviço, aviso prévio nas demissões, adicionais salariais (insalubridade, periculosidade), proteção ao trabalho noturno, da mulher, do menor. Há a criação do 13º salário. Também no Brasil a criação da Justiça do Trabalho, do salário mínimo, da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), Previdência Social.
Ruas argumenta que essa relação foi formalizada com o objetivo principal de dar proteção ao trabalho, uma tese embasada nas teorias socialistas do século XIX. “Tudo isso está dentro do contexto que se conceitua evolução; não sou eu que digo isso, porque foram dadas aos trabalhadores garantias com restrições aos direitos do capital, que deixou de ter direitos absolutos”.
Cattani avalia que o processo econômico que foi se gestando no século XX representou uma promessa de integração, em que todos estariam integrados à esfera produtiva, tida como relativamente homogênea. “Mas essa homogeneização não interessa ao capitalismo”, diz o professor, explicando que, na imagem de alguns empresários, esse modelo engessa o capitalismo.
COLLOR – A partir dos anos 80, com a chamada reestruturação produtiva, que se confunde com a ofensiva liberal, em termos ideológicos, há uma tentativa de reverter esse modelo em todo o mundo. “Eles chamam de recuperar a liberdade do capital para fazer o que bem entendem”. A ordem é produzir como se quer, sem restrições por parte dos sindicatos ou por parte do Estado. “Tudo o que está acontecendo significa ter o direito de explorar e, para buscar essa liberdade de exploração, é preciso reduzir o Estado; então, essa onda neoliberal de privatizações, de flexibilizar os direitos dos trabalhadores”.
Miguel Rossetto lembra das conquistas trabalhistas pós-ditadura, asseguradas na Constituição que, para ele, significam avanço e liberdade. “Foi o período de ascensão do movimento popular, quando se conseguiu um conjunto de leis importantes, o crescimento de uma sociedade que lutou por direitos trabalhistas, que qualificou o trabalho e repartiu a renda”. Em 89, com a vitória de Fernando Collor, começa o ciclo regressivo, com a desconstituição de direitos fundamentais. Um processo, afirma, que se estendeu nos governos Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso.
“Esse processo é acompanhado de uma adesão à nova ordem econômica, que cobra o preço da redução da força de trabalho e do valor da mão-de-obra. Há também o avanço do caráter opressor do Estado. Por isso eu digo que não é correto afirmar que há um afastamento do Estado nessa questão por que, para contrapor essa visão, basta ver a repressão ao direito de greve”, analisa o parlamentar. Ele argumenta que esse movimento é construído num ambiente ideológico e político de absoluta desvalorização e redução da renda do trabalho.
Sindicato é o terceiro alvo das mudanças
Além da retirada de benefícios trabalhistas e da extinção da Justiça do Trabalho, as mudanças no modelo sindical formam o tripé que embasa a reviravolta no mundo do trabalho apregoadas pelo governo. A ordem é acabar com a unicidade. Hoje, um dispositivo constitucional assegura apenas um sindicato por categoria na mesma área de representação. “Certamente, virá um proposta de pluralidade – que era uma reivindicação dos sindicalistas – mas que vem num momento de crise do movimento. Na verdade, o que vai ocorrer é a pulverização dos sindicatos; vem o sindicato por empresas, que é outra ideia do governo: quebrar a negociação por categoria”, justifica o advogado Luiz Carlos Moraes.
O discurso que ampara essa tese é de ser impossível comparar a empresa “x” com a empresa “y”, porque têm sistemas de produção diferentes, uma tem tecnologia maior, há mais ou menos empregados. O outro fator apregoado é a própria sustentação das entidades sindicais. “Claro que muitas não têm razão de ser, mas estamos sendo vítimas de um sistema que foi criado”, diz.
“O governo não tem de se meter nessa história. De novo, é ele que se arvora no direito de definir o que é bom e o que não é para os trabalhadores. Tudo que é ministro do Trabalho, nem esquentou a cadeira ainda e já sai pontificando regras para a organização sindical”, critica o professor Cattani. Para ele, se o sindicalismo brasileiro não conseguiu defender os trabalhadores, aglutinar forças e buscar direitos universais, são os próprios trabalhadores que tem de encontrar soluções, não um canetaço de gabinete.
Mesmo sem saberem bem o que está se passando, as múltiplas categorias de trabalhadores já estão sentindo o poder de pressão pelas modificações nos dissídios coletivos. Por exemplo, há uma ofensiva nas negociações em curso para inserir o banco de horas nos acordos. “Quase nenhum acordo fechou esse ano por causa disso”, comenta Moraes. Os trabalhadores estão desconfiados do fato de a empresa estabelecer uma jornada a partir da necessidade empresarial: se há momento de pico na produção, exige-se jornada máxima; se há pouca demanda, reduz-se o tempo de trabalho.
A pessoa não é mais contratada para trabalhar oito horas por dia ou 44 semanais, mas sim para trabalhar tantas horas por ano ou por mês e se distribui isso de acordo com as necessidades, para não pagar hora extra, para reduzir custos. O contrato temporário não paga aviso e há a possibilidade de ser reduzida a alíquota do Fundo de Garantia. Moraes informa que poucas empresas estão se utilizando do expediente do contrato temporário por cuidado, porque a legislação brasileira deixa uma série de pontos obscuros que poderiam gerar demandas trabalhistas.
Moraes ainda aponta que a Justiça do Trabalho, nesse momento, é um dos agentes mais importantes no processo de flexibilização. Segundo ele, estão sendo estabelecidos requisitos tão altos que é muito difícil ajuizar dissídio coletivo hoje em dia. “Existe uma norma do TST (Tribunal Superior do Trabalho) exigindo que sejam esgotadas as negociações para que o dissídio seja instaurado. Se eles entenderem que não esgotou totalmente, extinguem o dissídio. As garantias vão todas por água abaixo”.
A Justiça do Trabalho aprofundou mais ainda a tendência de flexibilização. O TST cancelou precedentes normativos, como ter uma hora para amamentar, hora do caixa, acidente de trabalho, desconto assistencial, contrato de experiência e admissão, adicional noturno (nesse aspecto, já havia entendimento de ser pago 60% e hoje voltou para 20%). Esses são dispositivos que “engordaram” nos dissídios, e que agora voltam ao padrão da lei, ou seja, em percentagens mais baixas. A hora extra, que chegou a alcançar 100% e até 150%, volta ao que diz a lei: 50%.