Os 100 anos de Pedro Raymundo e a invenção do gaúcho
No princípio era verbo e um violão, depois veio a gaita, assim era o cancioneiro nativo. O guasca saía pampa afora em busca de trabalho, mulher e um trago – não necessariamente nesta ordem. De estância em estância atrás de um trabalho, e, à noite, nas rodas de fogo de chão, entre um mate, um naco de carne e um gole de canha, cantar vantagens. Eram histórias de conquistas amorosas, batalhas que muitas vezes eram verdadeiras carnificinas e assim levava a vida, até o dia em que ela o levasse de uma vez. Seria este um possível perfil de um ancestral do músico gaúcho? Em 2006 muitas personalidades da história e da cultura do Rio Grande do Sul têm celebrado seus respectivos centenários de nascimento, de Mario Quintana a Radamés Gnatalli, passando por Pedro Raymundo (1906-1973) – esse nasceu catarinense e morreu como um dos gaúchos mais autênticos, no Rio de Janeiro. Mas também pobre e esquecido, na velha tradição do “cesto de caranguejos gaúchos, onde um puxa para baixo o outro que quer sair”, conforme afirmou algumas vezes Bebeto Alves. Mas uma coisa é certa, o Centenário de nascimento de Pedro Raymundo suscita uma releitura do que seria mesmo a tal de música gaúcha.
Em 1914, a primeira gaita de Pedro Raymundo
Um pouco da história de Pedro Raymundo e da música gaúcha pode-se conferir neste espaço. Ou ainda, como escreveu Arthur de Faria: “Se a gente for atrás das tais raízes da música gaúcha – e, com todo o respeito, ao cacófago, é a primeira e última vez que se fala aqui em música gaúcha –, chega-se apenas a meados do século anterior” (¹).
Em 1914, Pedro Raymundo, com mais ou menos sete anos e já órfão de mãe, ganha do pai uma gaita de oito baixos. Dez anos depois, por volta de 1924, faz parte da formação da Banda do Amor à Ordem, isso tudo ainda na terra onde nasceu, em 1906, Imaruí, então pertencente ao município de Laguna (SC).
NESTA REPORTAGEM
Um ano depois, após algumas complicações extraconjugais, acaba chegando a Porto Alegre. Na capital gaúcha, em 1930, nasce seu filho Joecy Hedy Raymundo, o casal Pedro e Luíza Nunes já havia perdido dois filhos anteriormente.
Em Porto Alegre, Pedro Raymundo consegue emprego na Companhia Carris. O motorneiro Pedro também integra o conjunto de jazz da empresa, e, de quebra, toca no Mercado Público para engordar a renda familiar, afinal já tinha dois filhos para sustentar, isto em 1933.
A partir de 1938 passa a trabalhar, como concursado, no contínuo do Arquivo Público Estadual. Um ano depois, envolve-se outra vez com sua velha paixão, a música, e forma o Quarteto dos Tauras. Desta formação, dois integrantes mais tarde, a dupla Zé Bernardes e Osvaldinho, que interpretando composições de Lauro Rodrigues, contribuiriam para o início de uma afirmação da música regionalista no Estado (²).
Um gaúcho na era do rádio
O Brasil sintonizado e contemporâneo não poderia ficar de fora da Era do Rádio. Em Porto Alegre, três emissoras despontavam e disputavam a audiência do distinto público: Rádio Gaúcha, Rádio Farroupilha e a Rádio Difusora, isso tudo durante os anos 30, 40 e 50 do século passado.
Logo os talentos musicais seriam contratados para formar o cast das respectivas rádios, juntamente com radioatores, conjuntos musicais, incluindo orquestras, apresentadores de programa de auditório e assim por diante. Havia espaço para muita gente competente.
Em 1945, Pedro Raymundo chegava às ondas do rádio. Na verdade seriam os tempos de sua consagração, uma vez que, desde 1943, ele e seu grupo vinham fazendo sucesso e se firmando no novo veículo. A partir da recriação de canções do folclore gaúcho, como O boi Barroso e Prenda minha, o Quarteto dos Tauras segue em excursões pelo interior do Rio Grande, Santa Catarina e Paraná, cantando e encantando a todos.
Com cara e coragem, o grupo chega ao Rio de Janeiro e na Rádio Mairynk Veiga emplaca a toada Gaúcho alegre, agora já devidamente pilchado, isto é: chapéu quebrado na testa, bombacha, guaiaca, botas e esporas.
Logo ele passa a ser identificado como o Gaúcho Alegre do Rádio. Não demorou muito para que viesse o primeiro grande sucesso Adeus, Mariana, em 78 rpm, pela gravadora Continental.
Da então capital da república para todo o Brasil, Adeus, Mariana estourou. Nos anos seguintes tudo seria uma consequência de Adeus, Mariana. Foram muitos discos, ainda em 78 rpm. Chegou a excursionar ao lado de um grupo, para lá de eclético, formado por Ary Barroso, Luz Del Fuego e Jararaca e Ratinho.
Sucesso diminui no Brasil moderno
Talento e popularidade seguiram o artista até meados da década de 60, mas ainda em 1959 um antigo problema o afligia: de tanto tocar seu instrumento, seu dedo – o polegar acidentado anos antes – começava a causar problemas. Foi operado por Luthero Vargas – filho do presidente-fã –, e o resultado: dois anos sem poder tocar. Para quem era popular por se apresentar quase sempre ao vivo nas rádios, era uma temporada de risco. Ao mesmo tempo, começava a se firmar um novo veículo, a televisão, Anos JK, Bossa Nova, a concorrência era pesada, o Brasil se modernizava.
Sobre uma das novidades da época, o artista teria se queixado: “Simplesmente porque nunca fui solicitado a atuar em programas de televisão”, respondendo a uma pergunta sobre por que não se apresentava na telinha.
Mesmo assim segue gravando, agora em discos de long-play, mas sem o mesmo apelo e procura de antes. “Eu me tornei um artista por vocação e não por conveniência. Assim sinto-me inteiramente realizado. De tudo, a única coisa que tenho a reclamar é a falta de coleguismo que existe. As minhas composições só pararão no dia da minha morte”, declarava Pedro Raymundo à revista Cena Muda, em 1964.
Em 1967, José Mendes estoura com o sucesso Pára, Pedro que vende 600 mil cópias. Sinal de alerta para Pedro? Talvez, mas em 1971 retorna ao rádio, em Porto Alegre, Rádio Gaúcha, com o “Programa Pedro Raymundo”. Já não enxergava direito, os amigos e colegas preocupam-se, é caso de um solidário Teixeirinha que se compadece com a situação do artista, que vinha de ônibus toda a semana de Santa Catarina para apresentar o programa. Ainda em 1973 recebe algum reconhecimento, título de Cidadão Honorário de Laguna. Neste mesmo ano, morre de câncer, em um hospital do Rio de Janeiro, onde dois anos antes recebera o título de Cidadão Honorário do então Estado da Guanabara.
Neste meio tempo, florescia a Califórnia da Canção de Uruguaiana e, em 74, morria precocemente José Mendes, o cara do Pára, Pedro.
Ele abriu caminho para a afirmação de uma tradição
Paixão Côrtes é a estátua viva do Laçador – da qual foi o modelo para a obra de Antonio Caringi – e faz de seu apartamento, localizado no bairro Independência, em Porto Alegre, um galpão para receber a imprensa e largar sua prosa sábia e cheia de conhecimentos. Jovem, quase um guri, conheceu Pedro Raymundo quando este tocava sua gaita com um grupo de outros músicos, nos botecos mais populares da volta do Mercado Público, “depois passavam o pires”, lembra.
Não é difícil sorver a história, como numa roda de chimarrão, e, aos poucos, vão se colocando alguns pingos nos is. “Tchê, eu sou, talvez, dos poucos da geração atual que tenham convivido com o Pedro”, atesta. Foi, ainda segundo o folclorista, durante a década de 40 seu primeiro contato com Pedro Raymundo, ouvindo os seus primeiros discos.
E foi naquela mesma década, relembra, então recém-chegado de Uruguaiana: “Como não existiam músicos e nem músicas do Rio Grande do Sul, todas as músicas que nós recebíamos eram impressas e gravadas no Rio ou em São Paulo por nordestinos e pessoas de outras regiões…”. Foi aí que Pedro Raymundo surgiu cantando daquela forma, “foi um grande sucesso, uma coisa estranha à época”, esclarece.
Raymundo foi pioneiro
Antes disso tudo, gravações realizadas aqui no Sul somente foram produzidas na segunda década do século passado, lá pelos anos de 1913 e 1914. Havia um imigrante italiano, Savério Leonetti, que fundara a casa A Elétrica. A fábrica ficava localizada onde hoje fica o Bairro da Glória, lugar em que foram gravados os primeiros títulos regionais – Disco gaúcho, entre os quais, uma versão instrumental de Trovas do boi Barroso.
“Até então, nunca tinha se gravado. Era a segunda fábrica do Brasil e a segunda da América do Sul que gravava e prensava”, fala o pesquisador militante, João Carlos D’Ávila Paixão Côrtes. Toda essa função de gravar e prensar durou até 1924, “foi quando apareceram os primeiros músicos, os primeiros cantores, as primeiras composições, as primeiras orquestras, os primeiros conjuntos, as primeiras bandas. Terminado isso, encerrou-se tudo, um grande hiato”, segue em sua exposição.
Paixão lembra também que Pedro Raymundo fez parte da jazz band Cruzeiro, criada por incentivo dos norte-americanos que dirigiam a Companhia Carris (isso é uma outra história: entre 1928 e 1954, o controle acionário do transporte de bonde de Porto Alegre pertenceu à Eletric, Bond & Share – até ser encampada pelo então prefeito Leonel Brizola, em 1954*). Pedro Raymundo, já se sabe, trabalhou um período como motorneiro da Companhia, vai daí que para integrar a tal jazz band foi um passo de valsa.
Mais tarde, por volta de 1941, 1942, Paixão Côrtes já acompanhava a carreira de Pedro Raymundo na Rádio Gaúcha: “Ele fazia o espetáculo vestido de gaúcho”. Com sua inseparável e peculiar gaita, feita de encomenda para poder executá-la, mesmo com a limitação de seu polegar direito, podia acompanhar os trovadores que se apresentavam. Este programa, segundo Côrtes, fazia um grande sucesso na época.
Vargas era seu fã
Neste período, foi apresentado pessoalmente a um grande fã, Getúlio Vargas – que em 1948 ainda não havia voltado aos braços do povo. Segue apresentando-se Brasil afora, literalmente de Norte a Sul, incluindo Minas Gerais e o Amazonas. O reconhecimento veio em 1950: foi capa da Revista do Rádio, antes de Cauby Peixoto, só para se ter uma ideia do sucesso do Gaúcho Alegre do Rádio.
Outro efeito notável de Pedro Raymundo, em 1971, em uma das antológicas entrevistas do Pasquim, Luiz Gonzaga, o Gonzagão, disse que foi por influência da pilcha de Raymundo que o Lua, pai do Gonzaguinha, passou a se “fardar de cangaceiro”, com direito a “chapéu de couro e gibão”, além da inseparável sanfona, que é a gaita dos nordestinos”. O gaúcho com aquela espora, bombacha, chapelão. O caipira tinha lá seu chapéu de palha. O carioca tinha a famosa camisa listrada… Por que é que o nordestino não tem a sua característica? Eu tenho que criar um troço. Só pode ser Lampião. Apanhei por causa de Lampião”.
Indumentária era forma de resistência
No quesito indumentária, Paixão avalia que Pedro Raymundo carregava nas cores e no tipo de tecido. Porém, esta estilização não era apenas fruto de desconhecimento. Voltemos um pouco à história do Brasil. Houve uma época em que todo e qualquer símbolo regional estava vetado pelo governo central. Vigia o Estado Novo, a partir de um golpe de Getúlio Vargas, em 10 de novembro de 1937. “O primeiro e muito solene ato do Estado Novo foi a queima das bandeiras dos Estados, dia 19 de novembro. Entre elas, a do Rio Grande, vitoriosa na Revolução de 1930 e carregada de tradições e densidade histórica” (**). Esta situação durou até a deposição de Vargas, em 1945, consequência do final da Segunda Guerra (1939-1945) e da redemocratização do país.
Voltando ao Paixão e a Pedro Raymundo: “Era proibido usar bota e bombacha, tomar chimarrão, pala, eram proibidas estas coisas”. Ele levava a roupa e se vestia na rádio: “Rio Grande, querência amada (Paixão Côrtes cantando), meu querido rincão…”.
Pedro se apresentava de bombacha, “uma bombacha listrada, esta eu me recordo, de um brim de algodão bem feito, com a guaiaca, um revólver, uma camisa tipo xadrez, de cores bem vivas. Depois botava o pala – jogado para trás para poder tocar e usava um pinguelim (espécie de relho) bem pequeno”. Côrtes também lembra que Raymundo era um sujeito de um bom porte, moreno com bigode, a cabeleira vasta. O figurino se completava com um lenço “dominantemente branco, e o chapéu, pendurado no barbicacho, para tocar e cantar com mais liberdade”, completa o quadro.
Nestes tempos, Pedro Raymundo acompanhava os trovadores que se apresentavam. “Havia gaiteiros, mas ele fazia questão de acompanhar, numa segunda voz da gaita, porque as gaitas daquela época eram de botão, e a dele já era uma apianada (com teclado). Aquela gaita, além de bonita, era feita especialmente para ele”, esclarece Paixão. Outro detalhe, o pala de seda, às vezes “um tirador que não era de couro, um tecido que imitava couro”, relata.
A influência americana
Em meio a isso tudo, começava no Brasil a influência da cultura e costumes norte-americanos. Os Estados Unidos haviam vencido a Segunda Guerra Mundial, e no embalo aproveitavam para divulgar e multiplicar o seu american way of life.
Por isso tudo é que o modismo impunha atitudes quase hostis às pessoas que “andavam de gaúcho”. Havia uma avalanche: música, revistas, cinema, rádio, comidas, bebidas, “tudo era norte-americano”.
ROMPIMENTO – Para Paixão Côrtes, ao vestir-se daquele jeito, Pedro Raymundo rompeu, “abriu um eito, neste estilo de mostrar as coisas do Sul”. Porque eram tempos em que: “Havia um receio do povo, que menosprezava as pessoas simples e autênticas”, explica. Daí a influência sobre a criação do cangaceiro Luiz Gonzaga.
Ainda segundo Paixão, o estilo Pedro Raymundo seria seguido e levado adiante por nomes que mais tarde também fariam muito sucesso, como Gildo de Freitas e o próprio Teixeirinha.
Para encerrar a “aula”, Paixão recorre a um dos inúmeros livros publicados, frutos de suas pesquisas, muitos deles escritos a quatro mãos, ao lado do amigo e companheiro de sempre Luis Carlos Barbosa Lessa (1929-2002).
No livro, Danças e andanças da tradição gaúcha (Editora Garatuja, Porto Alegre, 1975), Paixão, lendo: “Estilo Conjunto Farroupilha, Estilo Irmãos Bertussi, Estilo Teixeirinha – que é do Pedro Raymundo, com seu jeito largado de gritar as tradições gaúchas”. Depois, ainda segundo Paixão, vem o Estilo da Califórnia da Canção.
Para Cortês, esse festival, o da Califórnia da Canção Nativa, a partir de 1971, em Uruguaiana, tem sua importância por ser um aglutinador. “Até então, músico era músico, compositor era compositor, instrumentista era instrumentista, cantor era cantor e poeta era poeta”, e conclui: “Poeta não falava com compositor, músico não falava com letrista, nem nada”.
Para Paixão, a Califórnia foi o momento em que houve uma interligação com todos estes artistas.
De lá para cá muitos artistas e tendências surgiram na história da música no Rio Grande do Sul, mas a base está lá e faz parte dela, sem dúvida, o legado de Pedro Raymundo.