Doutores da propina
Foto: Arquivo Secom PMSL/ 2012/Divulgação
Em Colinas, cidadezinha de 2,4 mil habitantes situada em meio a uma cadeia de montanhas no Vale do rio Taquari, não há trânsito nem filas, os moradores se conhecem pelo nome, o silêncio impera. Emancipados de Estrela nos anos 1990, os colinenses têm uma das mais altas taxas de expectativa de vida do país, 78,2 anos – e 20% dos nativos têm mais de 60. Como ali não há indústrias e a estrutura de serviços e comércio é mínima, 90% da população, que decresce a cada ano, vivem da agricultura e nunca tiraram férias. Nesse lugarejo colonizado por alemães e que ostenta o selo de “Cidade Jardim”, no entanto, não são apenas a qualidade de vida e as extensas plantações de flores ornamentais que vicejam. Uma investigação do Ministério Público descobriu uma rede de corrupção comandada de dentro da prefeitura, que nos últimos anos vinha mantendo a população refém da cobrança por todo e qualquer serviço de saúde – de exames a cirurgias – prestados pelo SUS.
Há dois anos, o município, que a não ser por pequenas ocorrências, se orgulhava de não ter registro de crimes nas últimas décadas, foi invadido por policiais do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaecco), na Operação Colapsus, que envolveu a Procuradoria de Prefeitos, o Ministério Público e o Tribunal de Contas. A prefeitura, a secretaria e o posto de saúde foram lacrados diante de uma pequena multidão apavorada com tanto policial e armamentos nas ruas. Computadores, documentos e dinheiro foram apreendidos e quatro mandados de prisão foram cumpridos. O prefeito, Gilberto Keller (PMDB), que estava de férias com uma filha em Miami, ficou sabendo da devassa por telefone. Foram presos a mulher dele, nomeada secretária de Saúde, Cristiane Keller e sua assistente, a vereadora Ana Cristina Kohller.
Igor Sperotto
O caso é investigado em dois inquéritos do Ministério Público. Uma ação criminal apura o envolvimento de médicos e do Hospital de Estrela no esquema. Como o caso está sob segredo de Justiça, o MP não revela a identidade dos médicos e demais agentes de saúde que deverão ser indiciados na conclusão da investigação. Uma ação de investigação judicial eleitoral por abuso de poder político, já que as denúncias ocorreram em meio à campanha eleitoral, acabou revelando os envolvidos. A iniciativa pede à Justiça Eleitoral a cassação dos registros ou diplomas dos agentes públicos envolvidos no esquema e que foram reeleitos em outubro de 2012.
De acordo com o promotor eleitoral Daniel Cozza Bruno, escutas telefônicas e documentos apreendidos – há listas de serviços médicos com os respectivos valores cobrados dos pacientes, gravações de conversas telefônicas entre a secretária, servidores e médicos – evidenciam que procedimentos como a emissão de receitas médicas ou simples atestados, assim como exames laboratoriais, consultas e cirurgias eram feitos pelo SUS e tinham custos tabelados que eram cobrados “por fora” dos pacientes. Um dos médicos supostamente envolvidos no esquema forneceu o endereço do prefeito na hora de informar a localização do seu consultório a um Plano de Saúde.
Antes de ser presa, a secretária de Saúde cometeu um ato falho ao atender o telefonema de um servidor que informava sobre a operação: “Não vai me dizer que vazou aquele caso da propina”, reagiu Cristiane Keller. Por uma estratégia dos promotores, o celular da secretária não foi recolhido no momento da prisão. Na cela da delegacia, Cristiane fez diversas ligações ao prefeito, que estava nos Estados Unidos, para informar que o esquema fora descoberto e também orientar servidores a destruírem as provas.
Igor Sperotto
O prefeito afirma que pacientes do SUS eram atendidos no Posto de Saúde juntamente com pacientes particulares e conveniados de planos de saúde. “Fizemos convênio com o laboratório, que manda uma equipe aqui toda semana fazer exames, pois esse serviço não existe no município. Fizeram uma tremenda confusão. Nunca houve cobrança. O que temos é um convênio para viabilizar serviços de saúde e cirurgias pagos pela prefeitura dentro de um convênio com o Hospital de Estrela porque, se Gilberto Keller, prefeito de Colinas: “O SUS é uma ficção. Somos nós que bancamos a saúde” Foto: Igor Sperotto Ministério Público: transcrição de Foto: MP/Divulgação Foto: Igor Sperotto depender do SUS, a saúde vai à falência nos pequenos municípios como este. Aqui a União é uma cção jurídica. A população bate à minha porta e eu, diariamente, tenho que decidir entre a vida e a morte”, defende-se Keller, que foi reeleito e obteve uma liminar na Justiça para ser diplomado.
Suas alegações perdem a consistência quando confrontadas com o volume de provas e depoimentos em poder da promotoria, rebate o promotor Cozza Bruno. Um dos depoimentos mais contundentes foi dado pela assistente social Camila Maria de Oliveira, que trabalhou por seis anos na Secretaria de Saúde e informou que o esquema funcionava havia pelo menos uma década e gerava “muito dinheiro”. “Só exames laboratoriais eram mais de mil por semana. Quando ousei questionar essas cobranças passei a sofrer ameaças e assédio de forma explícita por parte da secretária”, revela. Em nota, a direção do Hospital de Estrela negou envolvimento no esquema e alegou que nem todos os médicos que usam sua estrutura fazem parte do corpo clínico. A promotoria localizou notas fiscais referentes a dois repasses, um de R$ 3.388,00 e outro de R$ 2.783,00, feitos em 2010 pela prefeitura ao hospital. “A instituição mantém convênio aprovado pela Câmara de Vereadores que complementa valores de atendimentos que faltam nas suas unidades básicas do município e que são faturados e pagos pela prefeitura”, justifica Adriana Siqueira.
MP/Divulgação
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AIHs falsas e simulação de procedimentos
No Planalto Médio, o caso do Consin, um “consórcio” formado pelas prefeituras de 14 municípios da região de Pontão, emitia boletos bancários dos valores pagos por pacientes para furar a fila do SUS e até parcelavam o pagamento. Nos últimos quatro anos, teriam sido realizadas mais de 2 mil cirurgias nas dependências de hospitais municipais, pelo SUS. Os médicos embolsavam até R$ 1 mil por procedimento. “Foram centenas de cirurgias e isso está comprovado pela polícia e pelo Ministério Público. Os médicos não agiam sozinhos. Eles tinham contatos na rede municipal de saúde para aliciar pacientes. Foi apreendida uma agenda na qual há registros de 8 a 12 procedimentos por semana no Hospital dos Trabalhadores de Ronda Alta, uma instituição que já foi referência em saúde pública no país”, lamenta Saul Barbosa (PT), que foi prefeito e vereador em Pontão – município de 3,8 mil habitantes, localizado no norte do estado.
Após uma audiência pública na qual apareceram denúncias que nunca foram formalizadas, o caso chegou ao Ministério Público no início do ano passado, por iniciativa de Nersa Batista, 45 anos, assentada da Fazenda Annoni. Ela conta que procurou a polícia depois de constatar que a cirurgia pela qual tinha pago estava coberta pelo SUS. Devido a constantes hemorragias, buscou atendimento médico em Pontão e foi informada que deveria ser submetida a uma histerectomia (cirurgia para extração do útero). Na Secretaria de Saúde, um funcionário ligado à direção do Hospital dos Trabalhadores informou que o cirurgião de Ronda Alta não atendia pelo SUS e que o procedimento teria de ser feito em Passo Fundo. Pior: a espera seria de até três anos. “Disseram que eu poderia fazer a cirurgia em Ronda Alta sem entrar na fila, desde que pagasse R$ 810,00 ao Consin. Entrei em desespero porque não podia pagar um valor desses nem esperar por três anos no estado em que me encontrava. O funcionário reduziu para R$ 300,00. Após as consultas e exames, na hora de pagar, ainda tentaram cobrar o valor inicial, alegando que o hospital precisava pagar o anestesista”, explica Nersa, que acabou convencendo o médico a manter o desconto. O valor foi dividido em três parcelas lançadas em boletos. “Paguei, agradecida e estava muito feliz, até que recebi uma correspondência informando que a cirurgia tinha sido pelo SUS.” A Carta-SUS – questionário enviado pelo Ministério da Saúde a pacientes que passaram por cirurgias em hospitais públicos – informava que o procedimento custara R$ 700,00 ao SUS. “Me senti enganada, humilhada e decidi denunciar”, diz a agricultora.
“Durante a campanha eleitoral as investigações tiveram que ser interrompidas, pois os envolvidos tentaram colocar a população contra as testemunhas, como é de praxe”, relata o titular da Promotoria Cível Especializada de Passo Fundo, Paulo da Silva Cirne, que instaurou uma ação de improbidade contra os acusados – eles respondem ainda a uma ação criminal no MP. “A irregularidade dessa situação está perfeitamente demonstrada por meio de provas e depoimentos e o Ministério Público assegura que irá adotar todas as medidas para viabilizar a punição dos responsáveis pelo Judiciário”, adverte Cirne. A partir deste mês, a promotoria irá intimar dois cirurgiões, citados nos depoimentos, assim como o ex-prefeito Delmar Maximo Zambiasi (PSB) e agentes de saúde. No dia 20 de março, o MP ouviu a ex-presidente do Conselho Municipal de Saúde sobre o caso.
FRAUDE – Eles são acusados ainda de falsificar Autorizações de Internação Hospitalar (AIHs) e simular cirurgias – em que o paciente é anestesiado, “aberto” e “fechado” sem que a cirurgia seja efetivada. Uma comissão de vereadores de Pontão apurou que entre 2009 e 2012, a prefeitura arrecadou R$ 50,8 mil destinados ao pagamento de serviços hospitalares a prestadores de serviços de saúde contratados. Um processo por danos morais contra o cirurgião Edmundo Reategui foi arquivado pela Justiça por falta de provas, pois o médico que constatou a suposta cirurgia simulada negou-se a depor contra o colega. “Lobo não come lobo”, lamenta o advogado que perdeu a ação.
Achaque a caminho da cirurgia
Colinas não é caso isolado. A pretexto de furar a fila do SUS e realizar cirurgias que, alegam, levaria meses e até anos pelo sistema público, esses médicos induzem os pacientes a pagar para agilizar o procedimento em um hospital público. Depoimentos mostram que em alguns casos o médico “achaca” o paciente até mesmo no acesso ao bloco cirúrgico, às vezes baixando o valor de R$ 1 mil para R$ 300,00 diante da argumentação do paciente. “Por alguns trocados, há médicos que rasgam o código de ética”, define uma testemunha. “As denúncias se multiplicam, mas é um crime muito difícil de comprovação”, diz o presidente do Conselho Estadual de Saúde, Paulo Humberto da Silva, que remete a questão ao campo da ética médica: “as escolas de Medicina precisam repensar os seus currículos”, sugere.
O professor do Departamento de Psiquiatria e Medicina Legal da Ufrgs, Gerson Ávila, afirma que a Universidade oferece aos alunos experiências e oportunidades para que eles identifiquem modelos em conduta técnica, moral e ética, e também referenciais teóricos, como a legislação vigente, que diz respeito ao exercício da Medicina, com ênfase nas disciplinas de Relação médico-paciente, Deontologia e Medicina Legal. “As decisões que eles tomam na sua vida profissional, no entanto, são pessoais”, argumenta.
AUDITORIAS – De acordo com o Departamento Nacional de Auditorias do SUS (Denasus), no Rio Grande do Sul são feitas 90 auditorias por ano, o que equivale a auditar menos da metade das denúncias de fraudes recebidas pelo MP e pela Polícia Civil, que demandam a abertura desses procedimentos. Atualmente, Denasus tem 224 auditorias abertas no RS. “A fiscalização do sistema público de saúde, que deveria começar no âmbito dos municípios, muitas vezes esbarra no aparelhamento dos Conselhos Municipais de Saúde pelas prefeituras. No RS, apenas 16 municípios têm sistemas formais de controle”, aponta o chefe do Denasus no estado, Stênio Rodrigues.
Cremers raramente pune
O Conselho Regional de Medicina (Cremers) não divulga resultados das sindicâncias, embora elas envolvam médicos acusados de crimes contra o sistema público de saúde. Ao encaminhar uma representação, o procurador do Conselho Estadual de Saúde, Rodrigo Finkelsztein, foi surpreendido com a exigência de uma procuração para acessar o caso. A eficiência do Cremers no julgamento de médicos pode ser medida em uma nota divulgada pelo seu ex-presidente, Cláudio Franzen: dos 274 médicos acusados entre 2004 a 2009, foram absolvidos 159 e condenados 125. Desses, cinco tiveram seus registros cassados.
O médico corregedor do Cremers, Régis Porto, diz que foram instauradas 12 sindicâncias em 2012. Um dos investigados, João Delmar Buhler, de São Leopoldo, sequer foi localizado para apresentar sua defesa. O secretário estadual de Saúde, Ciro Simoni, não se manifestou. Sobre as cobranças, sua assessoria informou que o estado possui mecanismos de controle e fiscalização da prestação de serviços de saúde pública, mas atribui a responsabilidade aos conselhos de Saúde.
Centro cirúrgico é balcão de vendas
Igor Sperotto
Em São Leopoldo, o cirurgião João Delmar Buhler foi denunciado pelo familiar de um paciente ao cobrar R$ 2,5 mil para furar a fila do SUS e realizar uma cirurgia no seu plantão no Hospital Centenário, em novembro passado. Numa gravação, o médico propõe um desconto sobre a tabela de R$ 4 mil já que a internação seria pelo SUS.
O neurocirurgião Eduardo Mello Rodrigues chegou a ser preso em 2011, acusado de negar atendimento a pacientes do SUS no Centenário e induzi-los a ir ao seu consultório particular. Detido em julho, durante a operação Hipócrates, que envolveu três delegados e 30 agentes da Polícia Civil de Novo Hamburgo e São Leopoldo, comandados pelo titular da 1ª DP de São Leopoldo, Marco Antonio Duarte de Souza, o médico ficou apenas um dia na cadeia e foi libertado por habeas corpus. À época, o então presidente do Cremers, Fernando Weber Matos, interpelou o governo do estado, pedindo explicações sobre a prisão, que qualificou de “show” e “pirotecnia”.
O barulho feito pela classe médica no caso Buhler fez com que outro caso envolvendo um médico do Centenário em cobranças “por fora” passasse a ser investigado pela Polícia Fazendária, do Deic, e não pela polícia local. A polêmica, que jogou polícia contra polícia e até gerou uma repreensão por parte do Judiciário, envolve um assíduo frequentador das colunas sociais, um obstetra que foi indiciado no desfecho da Operação Cosa Nostra, deflagrada pela Polícia Civil, Polícia Fazendária e Promotoria Pública. O caso se tornou público em setembro e obteve do Judiciário uma inusitada decretação de sigilo. Assim, mesmo depois de indiciado e de ampla cobertura da imprensa, o médico não pode ser identificado. À época, alegou ter sido vítima de uma armadilha política.
Ele foi acusado pelo ex-assessor, Gilberto Andrade, o Betinho, que levou o caso ao MP: utilização da estrutura do SUS para cirurgias particulares e falsificação do Cartão SUS para forjar o domicílio de pacientes em São Leopoldo. Andrade admitiu que participava do aliciamento de pacientes. “Pegava a conta de água ou energia e colocava o nome da pessoa no computador mesmo. De 2003 a 2011 passaram mais de 300 pessoas, mas foram muito mais. Vinham três carros lotados toda semana de Novo Hamburgo, com pacientes pra fazer ligaduras e cesarianas. Elas eram operadas no consultório particular e no Hospital Centenário como se fosse pelo SUS, mas ele (o médico) cobrava das pacientes”, relata Andrade. “Esse e outros médicos dominam a saúde pública e transformaram o hospital em um balcão de negócios”, confidencia. Os médicos, a direção do hospital e a prefeitura não retornaram os pedidos de entrevista.
O depoimento de uma vítima do esquema revela que a suposta cobrança era feita dentro do hospital. A paciente, protegida pelo sigilo, contou que antes de ser encaminhada para o bloco cirúrgico pagou R$ 2,8 mil por uma cesárea. “Dias depois descobrimos que o médico era plantonista, o anestesista também era do hospital e o quarto onde eu fiquei internada era um quarto normal do SUS”, relatou. Já em uma conversa informal com colegas, o médico sintetizou: “Tu tens que arrancar o dinheiro quando o cara está na emergência, na maca, gemendo de dor, senão já era…”.
Crime indefensável
− Dificultar o acesso do paciente ao serviço público de saúde, ameaçar ou cobrar valores dos usuários ou familiares são condutas vetadas pelo Código de Ética Médica e passíveis de penalidades administrativas, sanções civis e penais.
− A cobrança “por fora” é passível de multa, devolução do valor cobrado, suspensão de pagamentos pelo SUS e de repasses de recursos do estado e exclusão do SUS, conforme a Lei 11.867, de 2002, que cria os procedimentos administrativos do Sistema Estadual de Auditoria.
− O promotor público Paulo Cirne diz que as pessoas lesadas devem, na medida do Foto: Igor Sperotto Onde denunciar: Disque Saúde: 136 Ouvidoria do SUS no RS: (51) 3288.7912 Denasus/Seaudi RS: (51) 3213.2018 Ministério Público: (51) 3295-1601 ouvidoria@mp.rs.gov.br possível, gerar provas. “O paciente que se sentir constrangido a pagar por atendimento pelo SUS deve exigir recibo ou nota fiscal ou pagar com cheques pré-datados e denunciar à polícia ou ao MP”.
− As auditorias do Ministério da Saúde podem ser acompanhadas em http://sna.saude. gov.br
ONDE DENUNCIAR:
Disque Saúde: 136
Ouvidoria do SUS no RS: (51) 3288.7912
Denasus/Seaudi RS: (51) 3213.2018
Ministério Público: (51) 3295-1601
ouvidoria@mp.rs.gov.br