Adulcina da Silva Souto está aprendendo a ler e escrever aos 66 anos. “Estou bem velhinha aprendendo a ler e ainda quero ir muito longe”, festeja. Este é o retrato do Prazer de ler e escrever de verdade, princípio do projeto que está sendo realizado pelas Organizações Não-Governamentais (ONGs) Themis – Assessoria Jurídica e Estudos de Gênero e o Grupo de Estudos sobre Educação, Metodologia da Pesquisa e Ação (GEEMPA), junto com o Ministério da Educação. O objetivo é alfabetizar mil mulheres até o final deste ano, em duas fases de três meses cada uma.
Segundo Maria da Glória Koop, da coordenação da Themis, a proposta surgiu após a Conferência da Organização das Nações Unidas (ONU), realizada em Pequim, em 1995, quando os governos se comprometeram com a eliminação das desigualdades entre homens e mulheres. O Programa de alfabetização de mil mulheres em Porto Alegre decorre de uma solicitação do MEC ao GEEMPA, que garante o aporte didático-pedagógico para o trabalho, evitando assim, o freqüente fracasso da maioria destas iniciativas, explica Maria Luiza Moreira Coelho, coordenadora didático-pedagógica do projeto.
Em 25 turmas, desde o final de abril, 467 mulheres têm três aulas semanais, de 2 horas e 30 minutos, ministradas em salas de escolas e de associações, em quatro zonas da cidade: Leste, Restinga, Grande Cruzeiro e Partenon. “Escolhe-se locais perto da moradia ou do trabalho, para facilitar o acesso das alunas.”, comenta Maria Luiza, relatando que a Themis entrou na parceria exatamente pela experiência e o conhecimento da clientela e sua localização. Ela refere-se ao trabalho sistemático da entidade, que já envolveu 100 mulheres em um curso de cinco meses nas regiões que possuem Conselhos Tutelares. Trata-se da capacitação de lideranças comunitárias em direitos humanos e das mulheres, nas Promotoras Legais Populares (PLPs), que, após a preparação, atuam no Serviço de Informação à Mulher (SIM), junto à comunidade.
ALUNAS – A divulgação do programa foi feita pelas próprias PLPs nas regiões. Isso levou cerca de 800 mulheres ao GEEMPA, onde foram testadas, pois a meta é atingir somente as analfabetas. Destas, 500 puderam se matricular. “Para a expressiva maioria, a sílaba não faz qualquer sentido, 40% estão no nível denominado pré-silábico um e dois. No pré-silábico um, a pessoa escreve desenhando (por exemplo, desenha uma xícara e considera que escreveu a palavra xícara); no dois, estão aquelas que ainda não relacionaram a fala à escrita. Outras 40% estão no nível silábico, porque associam um símbolo a uma sílaba sonora”, explica Maria Luiza. “As 20% restantes estão na fase denominada silábica-alfabética ou intermediária três, que são aquelas pessoas que sabem que as letras estão associadas às sílabas, mas ainda compreendem que uma única letra é suficiente para formar uma sílaba; quer dizer, ainda não sabem como escrever convencionalmente”.
“Em Porto Alegre existem muitos analfabetos, principalmente mulheres e mais entre as negras”, revela a educadora, citando levantamento feito nas comunidades. Outra constatação foi a de que um número significativo de mulheres vítimas da violência doméstica são analfabetas.
Além de facilitar a tomada de decisões, aprender a sair da vila, arrumar emprego, ser alfabetizada também significa superar o sentimento de humilhação. “As mulheres analfabetas percorrem um espaço muito reduzido, o doméstico”, afirma Maria da Glória. O programa de alfabetização oferece outros incentivos, como transporte, lanche e alguns materiais didáticos. Além disso, há ainda a bolsa-escola de R$ 100,00, um prêmio oferecido no final para as alunas sem nenhuma falta e que conseguiram se alfabetizar.
SALA DE AULA – A biblioteca da Escola Estadual de 1º grau incompleto Madre Maria Selima, na Vila São Miguel, em Porto Alegre, é a sala de aula de 22 mulheres que, empenhadas, manuseiam papéis, lápis, grandes e coloridas letras do alfabeto. Três alunas são de uma mesma família. Ana Lice Fátima da Silva, 23 anos, faz a tarefa com Fernanda no colo, a filha de 5 meses. Ao seu lado, a prima, Romilda Fátima Camargo, 25 anos, também acompanhada da filha, de 5 anos, e a tia Lúcia Eloá Oliveira, 39 anos.
Vanilda Menezes Machado, 34 anos, tem dois filhos. O de 8 anos está na primeira série e o de 10 na terceira. “Estão dando apoio, o marido também”, conta. As crianças não só aprovam, como estudam junto e auxiliam a mãe. “Eu não sei nem explicar, não acho as palavras, de tão bom”.
Diva Mello da Silva, 61 anos, viúva, aposentada, temia a vergonha, acreditava que só as jovens participavam do programa de alfabetização. Mas agora comemora o encontro com mais mulheres da sua faixa etária.
A professora Valdirene Matos, 27 anos, diz que os resultados deste desafio para ela e para as alunas “está sendo maravilhoso”. Entusiasma-se, enumerando algumas características do proposta construtivista utilizada, mostrando o ambiente alfabetizador da sala de aula, com textos produzidos pelas alunas e expostos na parede.
A relação do que acontece entre Valdirene e suas alunas é um exemplo do que escreve Paulo Freire no seu último livro publicado (Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa, editora Paz e Terra, 1996): “(…) desde os começos do processo, vá ficando cada vez mais claro que, embora diferentes entre si, quem forma se forma e reforma ao formar e quem é formado forma-se e forma ao ser formado”. Solidariedade é outro princípio da pedagogia freiriana presente entre as alunas de Valdirene: “Uma delas ficou preocupada com a tosse de uma colega, preparou um xarope caseiro e trouxe para ela”, relata a professora.