EDUCAÇÃO

O pensador da Cibercultura

Nize Pellanda / Publicado em 21 de maio de 2000

O mês de maio é marcado por um evento significativo para o debate filosófico sobre as questões que envolvem cibercultura e o futuro do pensamento na era da internet. O que acontece é o duplo lançamento do livro Ciberespaço: um Hipertexto com Pierre Lévy. O próprio Lévy, que é um dos autores e também objeto da obra estará presente tanto no lançamento que ocorrerá na Universidade de Santa Cruz do Sul, onde realizará uma palestra sobre o tema, no dia 25, como em Porto Alegre, no dia 26 na Livraria Siciliano do Moinhos Shopping. A publicação é da Editora 34 e será distribuída no estado pela Artes e Ofícios. Os textos da obra Ciberespaço: um Hipertexto com Pierre Lévy foram organizados pela professora do departamento de Educação da Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc), Nize Maria Campos Pellanda, e pelo professor de Jornalismo On Line da PUC-RS, Eduardo Campos Pellanda, contando com escritos inéditos de Lévy e de outros 16 autores. Temas como o próprio saber, a construção de um novo ciberespaço, a autocriação, o cotidiano em sala de aula, a periferia oprimida, a produção de novos dispositivos estão presentes na obra. Leia a seguir artigo inédito de Nize Pellanda sobre a obra de Pierre Lévy.

Cada cultura tem uma zona oculta, um subjacente tal como acontece com os seres humanos com a presença de um inconsciente. É, de certa forma, aproveitando-se deste espaço subjacente, que os dominadores se apropriam para dominar. A partir da Revolução Industrial, mas principalmente nos seus desdobramentos no século 19 com a intensificação da exploração humana no capitalismo, é que a necessidade de desvelamento destes subterrâneos e das grandes linhas de força que configuram uma época começam a emergir. Foram os “grandes mestres da suspeita” – Marx, Nietzsche e Freud – que começaram um exercício sistemático de leitura deste oculto. Marx pensou um inconsciente de revolução industrial, de desprezo brutal pelos direitos humanos e como isto se dava no ocultamento. Nietzsche pensou uma sociedade hedonista e cínica do “fin de siècle” a partir de Viena. Freud, de certa forma, seguiu na esteira de Nietzsche e descobriu o inconsciente.

Hoje existe uma espécie de insconsciente tecno-informacional no sentido em que as profundas transformações do mundo do trabalho, da vida cotidiana, dos modos como nos comunicamos, como pensamos, como agimos como pessoas tem a ver com a cibercultura porque aí estão implicados funcionamentos cognitivos. Temos que estar muito atentos para que este espaço, o ciberespaço, não seja apropriado de maneira ainda mais sutil e brutal por uma classe que representa o capital, como vem acontecendo nestas últimas décadas com a sociedade, mas que seja, isso sim, apropriado de forma emancipatória pelos trabalhadores. Pois bem, alguns estudiosos pensaram este inconsciente info-comunicacional: seus riscos e potencialidades humanas. Entre eles G.Deleuze, F. Guattari, Pierre Lévy. O que eles fizeram foi desvendar as formas mais sutis e perversas do capitalismo hoje e mostrar o potencial de liberação que tem a virtualidade. Eles vêem na cibercultura possibilidades para aberturas de ser, para abertura de novos mundos. O que eles trazem à tona para discussão é a grande questão paradigmática: determinismo ou construção, opressão ou emancipação.

Neste sentido, podemos refletir um pouco sobre o fato de que não há tecnologia em si mesma. Tem havido no pensamento da modernidade uma tendência a naturalizar as coisas. As tecnologias são produtos de relações sociais, são constructos culturais e não algo natural. O novo paradigma científico tem a ver com relações, com processo, com ações e não com substância. Ou seja, podemos nos despedir da epistemologia aristotélica do mundo como lugar das coisas para dar lugar ao mundo como lugar das realizações e relações humanas, ou o mundo das potências.

Pierre Lévy em seu livro “Tecnologias da Inteligência” (1) fala da evolução da história da cultura em termos de três grandes fases: a oralidade, a escrita e a informática. Na oralidade pensa-se pelas situações com o auxílio da memória e da imagem e, na escrita, por categorias. Na informática, pensamos por configurações e por simulações o que, sem dúvida, potencializa muitíssimo nosso pensamento e nosso ser. Conhecer, ser e fazer são dimensões inseparáveis nos seres humanos. Cada uma dessas fases tem um alcance profundo na configuração da sociedade e das subjetividades porque, como nos ensinam as ciências cognitivas, há uma articulação profunda entre as formas de apreensão do real e tecnologias intelectuais. Neste sentido, as tecnologias da inteligência predominantes na era da informática são aquelas advindas da microeletrônica. Por isso, o computador não pode simplesmente ser reduzido a uma máquina ou a informática ser pensada apenas como a “Ciência dos Computadores”. A nova cultura – a cibercultura – com as tecnologias que ela traz como dispositivos, tem um alcance muito profundo na construção da sociedade e dos sujeitos devido às formas de relação dos seres humanos com estes dispositivos. Estas transformações constituem-se em verdadeiras mutações antropológicas porque passamos a pensar, a construir conhecimento e a nos relacionar de outras maneiras.

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Lévy nos mostra que as tecnologias intelectuais não surgem com a informática. Elas sempre existiram entre os seres humanos. Trata-se de algo para pensar com, para ajudar a pensar. Assim, os ritos antigos são tecnologias intelectuais, a linguagem é uma tecnologia intelectual etc. Uma instituição, uma narrativa, este texto que uso para me comunicar com vocês, são formas de tecnologias intelectuais. A informática não é mais um mero instrumento que nos ajuda a ver o mundo de forma diferente, como o telescópio, por exemplo. Para Lévy, a informática é, fundamentalmente, “um novo modo de reflexão” que muda não somente nossa visão de mundo como a maneira como nos relacionamos com ele.
Estamos vivendo intensamente a cibercultura e precisamos pensá-la profundamente para não somente não nos deixarmos, mais uma vez, sermos levados pelos acontecimentos mas tomarmos o timão do barco em nossas mão e criar o mundo que desejamos. Ainda está bem presente entre nós a guinada conservadora que atacou o mundo após os anos 70 quando surgiu o neoliberalismo. Nesta ocasião, surge uma nova direita que reestruturou a economia, o Estado e a sociedade sem a participação da sociedade civil de modo a aprofundar o controle sobre os trabalhadores. Foi aí então que a microeletrônica concebida como uma outra intenção foi apropriada pelo grande capital para poupar mão-de-obra. Instala-se o desemprego estrutural e os trabalhadores ficam desarmados. Mas a informática tem um potencial emancipatório muito grande que as classes populares não puderam apropriar naquela ocasião. Inicia-se, então, neste período um processo de declínio da democracia. Aliás, diga-se de passagem, cibernética é um termo de origem grega que significa pilotagem de barcos. Este foi justamente o sentido que N. Wiener, o pai da cibernética, se apropriou para entender o funcionamento da mente. E é neste sentido também que podemos pensar em termos de emancipação. Ou seja, tomar a história de nossas vidas e da sociedade em nossas mãos e inventá-la de acordo com nossos projetos.

Uma questão importante que se coloca aqui que tem inclusive uma dimensão metodológica é a questão da nossa relação com a máquina. Não podemos ser levados por ela mas temos, como pensa Morin (2), que exercer uma pilotagem das máquinas. Segundo ele, trata-se da “pilotagem das máquinas” não a “maquinização do piloto”. Precisamos saber lidar com um saber-fluxo e com “dilúvios de informações”. Ora, isto muda completamente não somente a nossa maneira de fazer ciência como principalmente muda a nossa maneira de organizar nosso pensamento, com um potencial de construção de conhecimento muito maior. Como conhecer tem a ver com ser, nos transformamos também como subjetividades.

Uma outra potencialidade da informática que precisa ser apropriada pelos trabalhadores é a democracia. A internet nos traz a possibilidade de atuarmos em rede onde cada um de nós é um “nó”. Não há centro, a ação de cada nó, como um microcosmos dentro do cosmos pode influenciar e reconfigurar toda a rede. Com isto, podemos subverter a tradicional relação poder/conhecimento. Qualquer pessoa, navegando na rede, poderia ter acesso a qualquer banco de dados no mundo. Podemos, por exemplo, ter acesso, às políticas de uma cidade, de um estado, de um país. Podemos acompanhar, passo a passo, a execução de um orçamento e assim por diante. Esta é uma utopia perfeitamente realizável. Basta que os trabalhadores organizados garantam as condições de infra-estrutura técnica de uma sociedade como, por exemplo, que cada centro comunitário, que cada distrito tenha seus terminais onde os cidadãos encontrem disponibilizados os dados da gestão pública com acesso a muitos portais. Enquanto fazem isto, eles estão potencializando a sua própria inteligência no processo de relação com o espaço virtual. Sobre isso nos diz Pierre Lévy: “… uma democracia que não tivesse nada a dizer sobre o emprego da técnica não seria de forma alguma uma democracia”.(3)

E, por falar em rede, a Biologia está nos mostrando que a rede é o modelo da vida. Com isto, acertaríamos um outro alvo que nos limita e nos escraviza: o individualismo. A internet pode se transformar, com a nossas ações afetivas, numa grande rede de solidariedade que levaria a humanidade a um outro patamar de hominização.

* Doutora em Ciência da Educação. Professora da Unisc. Presidente da R.E.D.E.- ONG do Novo Mundo do Trabalho Notas: (1) LÉVY, Pierre. Tecnologias da Inteligência. São Paulo, 34, 1994. (2) MORIN, Edgar. Ciência com Consciência. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1996. (3) LÉVY, Pierre. Limiares do Contemporâneo. Entrevista a Rogério da Costa. São Paulo, Escuta, 1993.

 

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