René Cabrales
René Cabrales
Projeto pretende restringir a regência das classes de alfabetização aos professores que possuam, no mínimo, o magistério. Proposta compromete programas de educação de adultos, como o Mova
Um projeto de lei recente, protocolado pelaSubcomissão de Educação de Jovens e Adultos da Câmara dos Deputados, promete trazer à tona, nos próximos meses, desavenças históricas entre as teorias e as técnicas adotadas pelas frentes nacionais de alfabetização, sejam elas rivais ou antigas aliadas em causa partidária.
A proposta, aprovada em 3 de maio pela Comissão de Educação e justificada em argüição da deputada gaúcha Esther Grossi (PT), estabelece a inclusão de um parágrafo ao artigo 37 da Lei de Diretrizes e Bases, que dispõe sobre a elaboração de programas públicos que garantam a alfabetização de brasileiros iletrados. A contar da possível publicação da lei, os projetos e programas criados com a meta de erradicar o analfabetismo no País – seja em âmbito nacional, estadual ou municipal – ficarão obrigados a empregar, exclusivamente, professores titulados que possuam, no mínimo, formação pedagógica de nível médio, equivalente ao magistério.
A nova cláusula atinge em cheio iniciativas em curso que costumam ceder a regência de classe a pessoas voluntárias, ainda que assessoradas, desde que tenham completado o ensino fundamental. Assim funcionam as versões estadual e municipal do Movimento de Alfabetização de Jovens e Adultos (Mova) – difundido desde 1989 pelas prefeituras de administração popular – e o projeto Alfabetização Solidária, integrante do programa federal Comunidade Solidária, ligado ao gabinete da primeira-dama, Ruth Cardoso.
Fotos: René Cabrales
Fotos: René Cabrales
A proposta da Subcomissão, que deverá passar pela Comissão de Constituição e Justiça para, só então, subir a plenário, decorre do estudo “Panorama da Alfabetização no Brasil”, que reporta os 21 projetos e quatro programas na área de Educação de Jovens e Adultos adotados pelo país desde o ano de 1854. De acordo com a deputada federal Esther Grossi (PT-RS), o levantamento conclui que nenhuma das iniciativas financiadas com verbas públicas, nos últimos 146 anos, foi suficientemente capaz de produzir os resultados desejados na redução do contingente de analfabetos, que já atinge a marca de 19 milhões de pessoas. Os deputados atribuem a suposta “ineficiência” à convocação reiterada de leigos para atuar como alfabetizadores, no lugar de professores titulados.
Caso seja aprovado, o projeto de lei – de autoria coletiva – terá de ser regulamentado e reservar aos programas em vigor um prazo mínimo de adaptação. A medida mais concreta tende a ser a restrição do repasse de verbas federais a projetos que desrespeitarem as exigências de titulação. A injeção de recursos federais na Educação de Jovens e Adultos, ao longo da próxima década, está prevista no substitutivo do deputado Agnelo Queiroz (PC do B-DF) ao texto do Plano Nacional de Educação. A idéia, a partir do aporte financeiro, é de que a educação de adultos abandone o atual perfil, de caráter supletivo, e passe a caracterizar um processo de aprendizagem continuada. A discussão, agora, recai sobre quem estaria suficientemente preparado para assumir o fardo. Diretrizes do Conselho Nacional de Educação apontam que a educação de adultos só poderá ser efetiva se lançar mão de profissionais à altura das exigências da área. A prescrição do governo federal recebe o aval da principal representante de oposição às políticas do Ministério da Educação. Em artigo recente, a petista Esther Grossi sustenta que alfabetizar é uma tarefa eminentemente pedagógica, sobretudo se considerada a complexidade embutida no ato de reger uma turma de adultos oriundos de “ambientes pobres em situações e procedimentos envolvendo a leitura e a escrita”.
Ao justificar o projeto de lei, no protocolo encaminhado à CCJ, Esther escreve que a diminuição do analfabetismo só será fato considerável se as campanhas e movimentos que hoje envolvem “afetos, ideologia e caridade” forem substituídos por programas com “consistente exigência pedagógica”. A elevação dos padrões de qualidade, a universalização do direito de aprender e a valorização do magistério são elencadas pela deputada como as linhas mestras da proposta.
Não faltam argumentos que fazem contraponto ao discurso de Esther – ainda que a parlamentar deixe claro que o projeto é de autoria coletiva. A professora do Departamento de Estudos Especiais da Ufrgs Denise Comerlato, que concede assessoria ao Mova/Porto Alegre e dirige as ações da universidade gaúcha no município piauiense de Itainópolis, dentro do programa Alfabetização Solidária, é uma das autoridades que considera o projeto da Câmara “precipitado”.
Denise entende que, antes de coibir iniciativas “que estão dando resultado”, cabe ao Legislativo priorizar a qualificação específica, em nível superior, de professores formados para alfabetizar adultos. “Nossa posição oficial será sempre a de discordar com a substituição do profissional pelo voluntário, mas é preciso compreender o atual momento histórico e, em lugar de proibir ações que já existem, considerar a extensão da população que não é procurada pela escola regular”, pondera.
A Universidade Federal de Pernambuco é a única do país a oferecer a graduação em Pedagogia na habilitação para a Educação de Jovens e Adultos. Em Minas Gerais, o curso permite uma ênfase na área. Na Ufrgs, o tópico é trabalhado em duas disciplinas obrigatórias e, caso o aluno se interesse, em outras quatro optativas.
fotos:René Cabrales
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Denise ressalta a necessidade da promoção urgente de políticas públicas que garantam a educação permanente, na rede regular de ensino, para cobrir uma demanda oculta de adultos analfabetos que não exige escolaridade – a não ser para os filhos. Segundo a educadora, os movimentos que hoje se organizam buscam preencher esse vácuo e, em hipótese alguma, pretendem tomar da escola e do professor a incumbência de educar a população. A idéia de Denise é compartilhada pela integrante da equipe coordenadora do Mova/RS, Márcia Terra. “Nosso objetivo é o de chegar aonde a escola não está, dar oportunidade a quem não teve acesso a ela, e chance de escolha a quem pretende continuar estudando”, resume Márcia, ao negar que o trabalho de alfabetização inicial assumido pelo Movimento subestime o professor titulado.
O apoio de Esther Grossi ao projeto da Comissão de Educação tem recebido duras críticas da coordenadora do Mova/Porto Alegre, Mariângela Bairros. Segundo ela, a reação da deputada, já esperada, sucede uma série de “afrontas públicas”, feitas pela petista, contra a figura do educador popular, adotada pelo movimento, abarcado pelo próprio PT. “Esther não conhece nosso trabalho de perto e nunca esteve disposta a debatê-lo; gostaria de ver a deputada conversar com os nossos educadores”, desabafa Mariângela.
Esther Grossi, que revela aproveitamento de 50% e evasão elevada durante e após as intervenções realizadas até hoje pelo Alfabetização Solidária, admite não ter se detido a estudos específicos sobre o Mova. Ela se reserva a explicar que o projeto da comissão é de abrangência nacional e não foi elaborado para coibir programas isolados. As ressalvas da deputada petista ao projeto escolhido pela administração de Porto Alegre para reduzir o analfabetismo são conhecidas há tempos. Mariângela Bairros e Denise Comerlato confirmam que, em 1989, a implantação, junto à SMEd, do Serviço de Educação de Jovens e Adultos (Seja), foi concretizada a despeito da campanha contrária de Esther, então secretária municipal da gestão Olívio Dutra. O Seja é considerado, hoje, uma espécie de embrião para as adoções do Mova pela Prefeitura e pelo governo do estado.
O educador popular é a figura central e característica do movimento. É ele quem responde pela intervenção direta em sala de aula e conduz, assessorado por um professor, um processo que se embasa no Construtivismo Interacionista, difundido no país a partir de 1989 pelo então secretário de educação de São Paulo, Paulo Freire.
A meta do Mova é resgatar a cidadania de sujeitos históricos até então alienados do processo social. Preceitos básicos da ação do projeto exigem que a aquisição do alfabeto surja a partir de palavras que cerquem o cotidiano em que vive cada turma. O educador, indicado por ofício pela entidade conveniada, deve conhecer a fundo a comunidade em que está inserido, nutrir vínculos com os moradores da região e discorrer, com intimidade e cumplicidade, sobre a realidade que será passada para o papel.
De acordo com Mariângela, essa “troca de saberes”, que se estabelece ao longo dos meses do curso, e o teor do compromisso que o educador assume, por pertencer à comunidade, potencializam o trabalho pedagógico e multiplicam os resultados positivos.
As secretarias de estado e de município da Educação não têm computados quantos dos mais de 5 mil educadores que atuam nas modalidades gaúchas do Mova possuiriam a titulação prevista no projeto que tramita na Câmara. A diretora estadual Márcia Terra, baseda em convivência acumulada com as comunidades, garante, porém, que nem todas as pastorais, clubes de mães, associações de bairro e áreas indígenas dispõem de professores que interajam o suficiente, a ponto de atrair a atenção da turma e controlar a evasão. Nesses casos, os “santos de casa” depõem os titulados.
Defendidas pela deputada Esther Grossi, as teorias pós-construtivistas de alfabetização desaprovam essa substituição. Conforme a educadora, as chamadas “aprendizagens complexas” prescindem de planejamento profissional e elegem a escola como instituição específica. Esther também critica o fato de que o emprego de professores titulares, na formação de crianças, seja mais rígido, em lei, que na alfabetização de jovens e adultos. “É um contrasenso”, já que as pessoas que estão fora de idade escolar apresentam uma série de internalizações e geralmente acham que não conseguirão aprender”. A deputada presume, ainda, que se for aprovada, a lei acabará contribuindo para qualificar, em cascata, docentes em todos os níveis de ensino.
A educadora Denise Comerlato estima que os movimentos que hoje atuam nas comunidades não deverão concordar pacificamente com a substituição de sua ação institucional pela adoção de pessoal qualificado. Conforme Márcia Terra, da SEC, a mudança, se for aprovada, terá de ser levada à prova frente ao aluno. “Eles devem tomar posição e dizer se sentem alguma diferença”, conclui.