O sóciologo e professor Philippe Perrenoud estará no Brasil para realizar o seminário internacional As Competências Para Ensinar no Século 21, ao lado da professora Monica Ghater Thurler, ambos da Universidade de Genebra, nos dias 17 e 18 de agosto, na PUCRS (Porto Alegre) e nos dias 10 e 11 de agosto, no Hotel Intercontinental (São Paulo). O evento realizado na capital gaúcha tem apoio do Sinpro/RS e oferece desconto de 50% para professores associados.
Philippe Perrenoud
(Sociólogo e professor na Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade de Genebra. Este artigo foi publicado originalmente na Pátio – Revista Pedagógica, Novembro 1999/Janeiro 2000, editada pela Artmed Editora, Porto Alegre)
Inúmeros países orientam-se apara a redação de “bases de competências” associadas as principais etapas da escolaridade. No decorrer dos anos noventa, a noção de competência inspirou uma reescritura mais ou menos radical dos programas no Québec, na França e na bélgica. Na Suíça romanda a questão começa a ser debatida, porque a revisão dos planos de estudos coordenados está na ordem do dia e, simultaneamente, porque a evolução para os ciclos de aprendizagem exige a definição de objetivos núcleos ou de objetivos de final de ciclo, freqüentemente concebidos em termos de competências.
Àquelas que pretendem que a escola deva desenvolver competências, os céticos opõem uma objeção clássica: Isso não ocorre em detrimento dos saberes? Não se corre o risco de reduzi-los ao mínimo, ao passo que a missão da escola é primeiramente instruir, transmitir conhecimentos?
Essa oposição entre saberes e competências tem fundamento e é, ao mesmo tempo injustificada: tem fundamento, porque não se pode desenvolver competências na escola sem limitar o tempo destinado à pura assimilação de saberes, nem sem questionar sua organização em disciplinas fechadas; é injustificada porque a maioria das competências não implica virar as costas aos saberes, ao contrário.
O verdadeiro debate deveria se dar sobre as finalidades prioritárias da escola e sobre os equilíbrios a serem respeitados na redação e na operacionalização dos programas.
Para alguns a noção de competência remete a práticas do cotidiano, que mobilizam apenas saberes do senso comum, saberes de experiência. Disso concluem que desenvolver competências desde a escola prejudicaria a aquisição dos saberes disciplinares que ela tem a vocação de transmitir.
Tal caricatura da noção de competência permite a ironia fácil de dizer que não se vai a escola para aprender a fazer um anúncio classificado, escolher um roteiro de férias, diagnosticar uma rubéola, preencher um formulário do imposto de renda, compreender um contrato, redigir uma carta, fazer palavras cruzadas ou calcular um orçamento familiar. Ou então para obter informações por telefone, encontrar o caminho numa cidade, repintar a cozinha, consertar uma bicicleta ou descobrir como utilizar uma moeda estrangeira.
Pode-se responder que se trata aqui de habilidades comuns que devem ser distinguidas das verdadeiras competências. Essa argumentação não seria muito sólida: não se pode reservar as habilidades ao cotidiano e as competências às tarefas nobres. O uso habitua-nos certamente a falar de habilidades concretas ao passo que a noção de competência parece mais ampla e “intelectual”. Na realidade, refere-se ao domínio prático de um tipo de tarefas e situações. Não tentemos reabilitar a noção de competência reservando-as às tarefas mais nobres.
Recusemos ao mesmo tempo o amálgama entre competências e tarefas práticas. Digamos primeiramente que as competências requeridas na vida cotidiana não são desprezíveis, mesmo entre aqueles que seguiram um escolaridade básica completa, permanece bem despreparada diante das tecnologias e das regras presentes na vida cotidiana. Dessa forma, sem limitar o papel da escola a aprendizagens tão triviais, pode-se perguntar: de que adianta escolarizar um indivíduo durante 10 ou 15 anos de sua vida se ele continua despreparado diante de um contrato de seguro ou de uma bula farmacêutica?
As competências elementares evocadas não deixam de ter relação com os programas escolares e com os saberes disciplinares: elas exigem noções e conhecimentos de matemática, geografia, biologia, física, economia, psicologia; supõem um domínio da língua e das operações matemáticas básicas; apelam para uma forma de cultura geral que também se adquire na escola. Mesmo quando a escolaridade não é organizada para desenvolver tais competências, ela permite a apropriação de alguns dos conhecimentos necessários. Uma parte das competências que desenvolve-se fora da escola apela para saberes escolares básicos(a noção de mapa, de moeda, de ângulo, de juro, de jornal, de roteiro, etc.) e para as habilidades fundamentais (ler, escrever, contar). Não há, portanto, contradição obrigatória entre os programas escolares e as competências mais simples.
Enfim, estas duas não esgotam a gama das competências humanas , a noção de competências remete a situações nas quais é preciso tomar decisões e resolver problemas ou à tarefa profissional, ou à vida cotidiana? As competências são necessárias para escolher melhor tradução de um texto em latim, levantar e resolver um problema com o auxílio de um sistema de equações com várias incógnitas, verificar o princípio de Arquimedes, cultivar uma bactéria, identificar as premissas de uma revolução ou calcular a data de um eclipse solar.
Uma competência mobiliza saberes
Em resumo, é mais fecundo descrever e organizar a diversidade das competências do que debater para estabelecer uma distinção entre habilidades e competências. Decidir se temperar um prato, apresentar condolências, reler um texto ou organizar uma festa são habilidades ou competências teria sentido se isso remetesse a funcionamentos mentais muito diferentes. Mas não acontece dessa maneira. Concreta ou abstrata, comum ou especializada, de acesso fácil ou difícil, uma competência permite afrontar regular adequadamente. Uma família de tarefas de situações, apelando para noções, conhecimentos, informações, procedimentos, métodos, técnicas ou ainda as outras competências, mais específicas. Le Boterf (1994) compara a competência a um “saber mobilizar”.
“Possuir capacidades não significa ser competente. Pode-se conhecer técnicas ou regras de gestão contábil e não saber aplicá-las no momento oportuno. Pode-se conhecer o direito comercial e redigir contratos mal escritos. Todos os dias a experiência mostra que as pessoas que possuem conhecimentos ou capacidades não sabem mobilizá-los de modo pertinente e no momento oportuno, em uma situação de trabalho. A atualização da quilo que se sabe em um contexto singular (marcado por relações de trabalho, por uma cultura institucional, por eventualidades, imposições temporais, recursos…) é reveladora da passagem “a competência. Esta realiza-se na ação”. (Le Boterf, 1994, p 16)
Se a competência manifesta-se na ação, não é inventada na hora: se faltam os recursos a mobilizar, não há competência; se os recursos estão presentes, mas não são mobilizados em tempo útil e conscientemente, então, na prática, é como se eles não existissem.
Freqüentemente evoca-se a transferência de conhecimento, para ressaltar que não se opera muito bem: determinado estudante. Que dominava uma teoria na prova, revela-se incapaz de utilizá-la na prática, porque jamais foi trinado para fazê-lo. Hoje em dia sabe-se que a transferência de conhecimentos não é automática, adquire-se por meio do exercício e de uma prática reflexiva, em situações que possibilitam mobiliza saberes, transpô-los, combiná-los, inventar uma estratégia original a partir de recursos que não a contêm e não a ditam.
A mobilização exerce-se em situações complexas, que obrigam a estabelecer o problema antes de resolvê-lo, a determinar os conhecimentos pertinentes, a reorganizá-los em função da situação, a extrapolar ou preencher as lacunas. Entre conhecer a noção de juros e compreender a evolução da taxa hipotecária , há uma grande diferença. Os exercícios escolares clássicos permitem a consolidação das noções de algoritmos de cálculo. Eles não trabalham a transferência. Para ir nesse sentido, seria necessário colocar-se em situações complexas como obgrigações, hipotecas, empréstimo, leasing. Não adianta colocar estas palavras nos dados de um problema matemático para que essas noções sejam compreendidas, ainda menos para que a mobilização dos conhecimentos seja exercida. Entre saber o que é um vírus e proteger-se conscientemente das doenças virais, a diferença é menor. Do mesmo modo que entre conhecer as leis da física e construir uma barca, fazer um modelo reduzido voar, isolar uma casa ou instalar corretamente um interruptor.
A transferência é igualmente falha quando se trata de enfrentar situações em que importa compreender a problemática de um voto (por exemplo, sobre a engenharia genética, a questão nuclear, o déficit orçamentário ou as normas de poluição), ou de uma decisão financeira ou jurídica, por exemplo, em matéria de naturalização, regime matrimonial, fiscalização, poupança, herança, aumento do aluguel, acesso à propriedade, etc.)
Às vezes faltam os conhecimentos básicos, principalmente no campo da economia. Freqüentemente, as noções fundamentais foram estudadas na escola, fora de qualquer contexto. Permanecem então “letras mortas”, tais como capitais imobilizados por não se saber investir neles conscientemente – e não por recusa aos saberes – que convém desenvolver competências a partir da escola, ou seja, relacionar constantemente os saberes e sua operacionalização em situações complexas. Isso vale tanto pra as cada disciplina como para sua inter-relação.
Ora, isso não é evidente. A escolaridade funciona baseada numa espécie de divisão de trabalho: à escola cabe fornecer os recursos (saberes e habilidades básicos), à vida ou às habilitações profissionais cabe desenvolver competências. Essa divisão do trabalho repousa sobre uma ficção. A maioria dos conhecimentos acumulados na escola permanece inútil na vida cotidiana, não porque careça de pertinência, mas porque os alunos não treinaram para utilizá-los em situações concretas.
A escola sempre almejou que seus ensinamentos fossem úteis, mas freqüentemente acontece-lhe de perder de vista essa ambição global, de se deixar levar por uma lógica de dição de saberes, levantando a hipótese otimista que elas acabarão por servir a alguma coisa. Desenvolver competências desde a escola não é uma moda nova, mas um retorno às origens, às razões de ser da instituição escolar.
Que competências privilegiar
Se acreditarmos que a formação de competências não é evidente e que depende em parte da escolaridade básica, resta decidir quais ela deveria desenvolver prioritariamente. Ninguém pretende que todo o saber deve ser aprendido na escola. Uma boa parte dos saberes humanos é adquirida por outras vias. Por que seria diferente com as competências? Dizer que cabe à escola desenvolver competências não significa confiar-lhe o monopólio disso.
Quais ela deve privilegiar? Aquelas que mobilizam fortemente os saberes escolares e disciplinares tradicionais, dirão somente aqueles que querem que nada mude, salvo as aparências. Se os programas prevêem o estudo das leis de Ohm, eles proporão acrescentar um verbo de ação (“saber servir-se conscientemente da lei de Ohm”) para definir uma competência. Para ir além do passe de mágica, é indispensável explorar as relações entre competências e programas escolares atuais.
Uma parte dos saberes disciplinares ensinados na escola fora de qualquer contexto de ação será, sem dúvida, no final das contas, mobilizada por competências. Ou, mais exatamente, ela servirá de base a aprofundamentos determinados no âmbito de certas formações profissionais. O piloto ampliará seus conhecimentos geográficos e tecnológicos; a enfermeira, seus conhecimentos biológicos; o técnico, seus conhecimentos físicos; a laboratorista, seus conhecimentos químicos; o guia, seus conhecimentos históricos, etc. Da mesma maneira professores e pesquisadores desenvolverão conhecimentos na disciplina que escolheram ensinar ou desenvolver. As línguas e as matemáticas serão úteis em inúmeras profissões. Pode-se então dizer que as competências são um horizonte, sobretudo para aqueles que se orientarem para uma profissões científicas e técnicas, servirem-se das línguas em sua profissão ou fizerem pesquisa.
Muito bem, mas fora desses usos profissionais limitados a uma ou duas disciplinas básicas, às matemáticas e às línguas, de que lhe servirão os outros conhecimentos acumulados durante sua escolaridade, se não aprenderam a utilizá-los para resolver problemas?
Pode-se responder que a escola é um lugar onde todos acumulam os conhecimentos de que alguns necessitarão mais tarde, em função de sua orientação. Para contrabalançar, evocar-se-á a cultural geral da qual ninguém deve ser excluído e a necessidade de oferecer a cada um chances de se tornar engenheiro, médico ou historiador. Em nome dessa “abertura”, condena-se a maioria a adquirir saberes “a perder de vista”, “para se um dia…”.
Em si, isso não seria dramático, ainda que o preço desse acúmulo de saberes fossem anos de vida passados nos bancos de uma escola. O incômodo é que, assimilando intensivamente tantos saberes, não se tem tempo de aprender a servir-se deles, e futuramente ter-se-á necessidade disso na vida cotidiana, familiar, associativa, política. Assim, aqueles que tiverem estudado biologia na escola obrigatória ficarão expostos à transmissão da Aids; aqueles que estudaram física sem ir além da escola continuarão sem compreender as tecnologias que os cercam; aqueles que estudaram geografia ainda terão dificuldade para ler um mapa ou para localizar o Afeganistão; aqueles que aprenderam geometria não saberão desenhar um plano em escala; aqueles que passaram horas aprendendo línguas continuarão incapazes de indicar o caminho a um turista estrangeiro.
O acúmulo de saberes descontextualizados não serve realmente senão àqueles que tiverem o privilégio de aprofundá-los durante longos estudos ou uma formação profissional, contextualizando alguns deles e se exercitando para utilizá-los na resolução de problemas e na tomada de decisões. É essa fatalidade que a abordagem por competências questiona, em nome dos interesses da grande maioria.
Assumir o reverso da medalha
Toda escolha coerente tem seu reverso: o desenvolvimento de competências desde a escola implicaria uma diminuição dos programas nacionais, com vistas a liberar o tempo requerido para exercer a transferência e acarretar a mobilização dos saberes?
Isso é grave? É realmente necessário que, na escola obrigatória, aprenda-se o máximo de matemática, de física, de biologia para que os programas pós-obrigatórios possam ir ainda mais longe? Diminuir programas e trabalhar um número limitado de noções disciplinares, para levar à sua operacionalização, não prejudicaria muito aqueles que fizeram estudos especializados nos domínios correspondentes, mas daria melhores chances a todos os outros. Não somente àqueles que deixarão a escola aos 15 anos, cujo número diminui nas sociedades desenvolvidas, mas àqueles que, com um doutorado em história, nada compreendem de energia nuclear, enquanto que os engenheiros de mesmo nível permanecem igualmente perplexos diante das evoluções culturais e políticas dos planeta.
A questão é tão antiga quanto a escola: para quem são feitos os currículos? Como sempre, os favorecidos desejarão sê-lo ainda mais e dar a seus filhos, destinados aos estudos profundos, melhores chances na seleção. Infelizmente, isso será em detrimento daqueles para os quais a escola não desempenha hoje seu papel essencial: oferecer ferramentas para dominar a vida e compreender o mundo.
Outras resistências se manifestam, vindas do interior. A abordagem por competências choca-se com a relação do saber de uma parcela dos professores, também sendo necessário considerar uma evolução sensível das pedagogias e dos modos de avaliação (Perrenoud, 1998). Construir competências desde o início da escolaridade não afasta – se ultrapassarmos os mal-entendidos e os julgamentos mordazes – das finalidades fundamentais da escola, bem ao contrário. Em compensação, isso passaria por uma transformação significativa de seu funcionamento.
Dar-se-á nesse âmbito uma atenção prioritária àqueles que não aprendem sozinhos! Os jovens que fazem estudos aprofundados acumulam saberes e constróem competências. Não é para eles que se deve mudar a escola, mas para aqueles que, ainda hoje, dela saem desprovidos das numerosas competências indispensáveis para viver no início do século XXI. A trilogia das habilidades – ler, escrever, contar – que fundou a escolaridade obrigatória no século XIX não está mais à altura das exigências de nossa época. A abordagem por competências busca simplesmente atualizá-la.
Philippe Perrenoud
(Sociólogo e professor na Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade de Genebra. Este artigo foi publicado originalmente na Pátio – Revista Pedagógica, Novembro 1999/Janeiro 2000, editada pela Artmed Editora, Porto Alegre)