Em tempos de polêmica sobre clonagem humana, quando se discute ser ético ou não a criação de um ser humano à imagem e semelhança de outro, a cópia reprográfica, o tal xerox, também tem sido motivo de calorosas discussões. Uma pesquisa divulgada pela Associação Brasileira de Direitos Reprográficos (ABDR) revelou que 32% dos estudantes da cidade de São Paulo não compram livros, substituindo-os por cópias de obras completas, ou de parte delas. São ao todo, só na capital paulista, 226 milhões de páginas copiadas por ano sem o pagamento de direitos autorais, sendo que os alunos da USP, PUC e Fundação Getúlio Vargas lideram o ranking do uso de cópias. Se tomarmos o Brasil como parâmetro, o número de cópias salta para quase 2 bilhões ao ano. Para o mercado editorial o prejuízo é grande: 50 milhões de livros deixam de ser produzidos por ano.
De acordo com o presidente da ABDR, José Xavier Cortez, os reflexos da “clonagem” de livros podem ser percebidos em várias frentes. “Para os autores, as cópias são o exemplo do desrespeito aos direitos de sua obra. Naturalmente todo o trabalho precisa ser remunerado e o pesquisador/professor, que se transforma em autor, deve estar obrigatoriamente inserido neste contexto. Ele leva dias, anos, escrevendo, revendo, pensando para produzir um livro. Que estímulo tem esse autor vendo seu trabalho usado ilegalmente e dessa forma tirando uma parte do ganho que lhe é devido?”, questiona.
Conforme Cortez, a indústria editorial também é prejudicada, já que o uso indiscriminado de cópias dificulta a atualização dos livros, trava os lançamentos e provoca a redução da produção editorial voltada para o universitário. “A cópia desestimula o consumo do livro e com isso as editoras diminuem sua receita, impedindo que invistam em atualizações dos livros universitários e lançamentos de novos títulos. Essa reprodução concorre deslealmente com o livro, que, para ser editado, passou por uma longa etapa e teve todo um trabalho executado por profissionais especializados que usaram as mais diversas técnicas de edição, revisão, arte, imagem etc”.
Outro ponto que também gera polêmica, e que muitas vezes serve de justificativa para as cópias, é a questão do preço dos livros. Cortez afirma que, como a maioria dos produtos, os preços são calculados em função do seu custo. “Nenhum editor pode vender um livro a um preço tão baixo que lhe traga prejuízo, nem a um preço tão alto que ninguém compre, pois será a decadência de seu negócio”. Segundo ele, existem duas alternativas para quem não pode comprar um livro. “A instituição de ensino tem o dever de ter uma biblioteca atualizada e com números suficientes de exemplares para atender à demanda de seus alunos. Além disso, a ABDR autoriza que sejam feitas fotocópias de parte dos livros (Lei nº 9.610/98) desde que sejam pagos Direitos Reprográficos. A pesquisa mostra que, se for recolhido o valor de R$ 4,19 por mês e por aluno, autores e editores seriam ressarcidos em seus direitos”, revelou.
Para o diretor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas do IFCH/UFRGS, José Vicente Tavares dos Santos, o pretexto da falta de dinheiro para comprar livros é falso. “Se contarmos na ponta do lápis, o aluno gasta um bom dinheiro com xerox, um material que em cinco anos desaparece, ou é jogado fora pelos alunos. Já vi casos de queimarem xerox no final do semestre ou utilizaram-no como rascunho. O gasto é inútil e no fundo trata-se de uma perda. A cópia tem um pouco dessa idéia de descartável, o oposto da formação, bem característico da sociedade de hoje, da modernidade líquida, em que tudo é transitório, convalescente”.
O presidente da ABDR citou trechos do livro Leitura & Colheita, de Luiza de Maria (Editora Vozes, 2002 pág.160/16) como resposta sobre a forma como os professores podem colaborar para a defesa dos Direitos Autorais. “Nunca como no momento atual se falou tanto em leitura no meio acadêmico(…). De certo modo, isso pode contribuir para que também os professores universitários se preocupem em incorporar a leitura, a prática da leitura, o gosto da leitura entre os alunos do curso de graduação. Com essa prática e esse ‘gosto’ se constrói também um respeito pela autoria, pela criação gráfica editorial, cultiva-se também o prazer da convivência com o objeto livro. Não podemos nos figurar como a geração que mais fala em ‘leitura’ e que mais lê cópias xerox”.
Fragmentação do aprendizado
Mas não são apenas os prejuízos de ordem financeira ou relativos à produção acadêmica que preocupam. José Xavier Cortez destaca ainda os reflexos do ensino através dos xerox no aprendizado dos alunos. “Para os estudantes, fragiliza a formação se comparada à leitura de clássicos e textos completos. Geralmente o aluno reproduz partes de um livro, capítulos e ao fazê-lo ele naturalmente absorve flashes daquilo que o autor desenvolveu por inteiro em sua obra, prejudicando a apreensão da obra como um todo”, declarou.
Para José Vicente Tavares dos Santos, a utilização do xerox nas universidades deforma e fragmenta o conhecimento. “Se você não aprende o conhecimento com um processo, você está deformando a sua informação. O livro é resultado de um longo processo de descobertas, o qual envolve a utilização de conceitos vinculados a teorias, utilização de métodos de investigação e de interpretação, e, se o aluno não aprende todo o processo, não vai jamais saber de onde parte o autor, como ele desenvolve o seu argumento, como ele demonstra seu argumento, como chega às suas interpretações e finalmente como elabora suas conclusões”. O professor relembra o fato de alunos da pós-graduação que ficaram surpresos e fascinados com o fato de receberem pela primeira vez a indicação para a leitura de um livro. “Eles diziam: Puxa, é a primeira vez que eu leio um livro inteiro!”.
Tavares dos Santos destaca ainda a questão da fragmentação do conhecimento, afirmando que muitos alunos seguem orientações de professores que também têm o conhecimento fragmentado de determinada obra. “O professor parte do pressuposto falso de que, para se compreender uma idéia ou um fenômeno, tem que ler todas as opiniões acerca daquela idéia. Isso é impossível. Na verdade cabe a ele dar aos alunos dois ou três livros fundamentais para transmitir o conhecimento básico e depois, então, é que se pode perceber as variações. Estão aí nas bibliotecas para isso. O aluno pode retirar livros, não precisa tirar xerox”, afirma.
O diretor do IFCH vai além e acrescenta que muitos alunos, e até alguns professores, nem se lembram quem é o autor de determinado livro. “Eu cansei de perguntar aos alunos quem era o autor e eles responderem: é o xerox”.
Cópias em todo o Brasil chegam a quase dois bilhões
Embora tenha sido divulgada só agora, a pesquisa encomendada pela Associação Brasileira de Direitos Reprográficos (ABDR) foi realizada de 17 de setembro a 25 de outubro de 2002, período em que foram feitas 1.430 entrevistas, com o objetivo de estimar o volume de cópias de material impresso produzido por estudantes universitários na cidade de São Paulo. No trabalho foram consideradas as cópias de capítulos, partes ou texto integral de livros originais, cópia da cópia de capítulos, partes ou texto integral de livros, cópia de todos os materiais contidos nas pastas dos professores e de apostilas e textos digitados de professores (não contidos nas pastas), bem como cópia de artigos ou partes de jornal e revistas. “O que mais nos chamou atenção foram os quase dois bilhões de cópias feitas por ano no Brasil, o que significa que 25% da produção editorial deixa de ser comercializada por causa da reprografia”, ressaltou o presidente da ABDR, José Xavier Cortez. Segundo ele, os resultados também impressionaram pelo número de alunos que não compraram livro no ano, chegando a 32%. “Dos alunos, 28% compram entre 1 e 4 exemplares e 26% de 5 a 10. Outro dado preocupante é que quase 70% dos alunos consultados são filhos de pais com alta escolaridade: 55% têm curso superior e 13% fizeram pós-graduação”, destacou Cortez.
No que diz respeito ao hábito de tirar cópias, 99% dos entrevistados revelaram copiar, imprimir ou receber cópia dos professores, sendo que 90% guarda o material copiado após o ano letivo. Entre os materiais copiados que lideram a preferência dos alunos estão as pastas dos professores (84%), seguidas pelas apostilas ou textos digitados pelos professores (41%) e pela cópia de livros originais (41%), cópia da cópia de livros (24%), revistas (12%) e jornais (6%). As entrevistas revelaram ainda que 19% dos alunos copiam o livro na sua integralidade. A área das humanas é líder em cópias, com 63%, seguida pelas exatas, com 23% e biomédicas, com 14%. Os alunos do curso de Letras e Pedagogia são os que mais procuram o serviço de xerox (16%), seguidos pelos de Administração e Marketing (14%), Medicina, Odontologia e Biologia (14%), Psicologia (12%) e Física, Química e Matemática (12%).
Os dados quanto ao número de livros lidos pelos estudantes durante o ano revelam que 33% lêem de 5 a 10 obras, 29% de 11 a 20, 15%, de 21 a 40, e 12%, de 1 a 4 livros. Entre as formas de acesso aos livros, 68% pegam livros na biblioteca, 63% tiram cópias, 29% pegam emprestado com amigos e 6% acessam pela Internet.