O Patrão fantasma
Formado por um conjunto de empresas, a marca se consolidou no Estado, tornando-se um dos grupos econômicos de pré-vestibular mais conceituado e também recorrente em não pagar salários, não saldar tributos fiscais e previdenciários e usar estratégias que dificultam a localização exata de mantenedores, sócios e endereços comerciais, tais como a abertura de várias firmas e não-atualização de dados.
Apenas para se ter uma ideia do rastro de inadimplência que vem sendo deixado pelo Mauá, somente através do Sindicato dos Professores do Rio Grande do Sul (Sinpro/RS), 44 docentes ingressaram na justiça tentando receber salários, horas extras, 13º, FGTS, verbas rescisórias e direitos sobre autorias pela elaboração de apostilas.
A indignação dos educadores chegou a tal ponto que teve professor desempenhando o papel de detetive para descobrir informações que pudesse ajudá-lo a receber o que lhe era devido. No total, as dívidas na Justiça do Trabalho já contabilizam cerca de R$ 2 milhões.
Porém, mesmo declarando estar em crise financeira, o Mauá continua funcionando e investindo em campanhas publicitárias em emissoras de rádio. Em uma delas, anunciou durante quatro meses consecutivos neste ano.
Além disso, pode ser constatada a instalação de pré-vestibular em áreas nobres de Porto Alegre, como na Cristóvão Colombo, que funciona em dois andares do Shopping Floresta.
Já em Caxias do Sul, o Mauá está instalado em um dos endereços mais valorizados do Centro, na rua Sinimbu.
Também há um projeto de expandir os cursos ofertados pela Faculdade dos Imigrantes (FAI).
As quatro franquias de pré-vestibulares e a de Educação de Jovens e Adultos também estão em locais estratégicos.
No que diz respeito ao faturamento, os preços praticados estão dentro da realidade de mercado, e as mensalidades continuam sendo cobradas. Nos pré-vestibulares, por exemplo, os valores variam de R$ 1.400,00 a R$ 1.600,00 por semestre, dependendo do turno.
Já na FAI, o preço por disciplina no curso de designer de interiores é cerca de R$ 1 mil, e nos de contabilidade ou administração, R$ 629,00.
O presidente do Sindicato dos Contadores do Estado do Rio Grande do Sul e da Confederação Nacional dos Contadores, Salézio Dagostim, avalia que uma empresa com dificuldades financeiras, que sequer consegue pagar as dívidas, não poderia apresentar sinais de crescimento.
“Isso pode ser indício de que a pessoa jurídica está enriquecendo através de manipulações e não que o negócio seja inviável, mas os recursos podem estar sendo desviados. Seria interessante que a justiça determinasse uma perícia para verificar se os registros contábeis estão de acordo com o declarado”, avalia Dagostim.
Afonso Martha, advogado e membro da Associação Gaúcha dos Advogados Trabalhistas (Agetra), avalia que o não-pagamento de direitos trabalhistas, sonegação de informações sobre o local de funcionamento e transferência de empresas para outros sócios são trâmites comuns em casos de empresas fraudulentas que, geralmente, têm como principal vítima o trabalhador.
Ele acrescenta ainda que já se deparou com situações nas quais os proprietários, mesmo não tendo dinheiro para pagar as dívidas trabalhistas, apresentavam um alto padrão de vida. “Ganhar a ação é fácil; às vezes, o difícil é receber”, conclui Afonso Martha.
Para o diretor do Sinpro/RS, Sani Belfer Cardon, além do bolso e do estado emocional do professor, a situação também afeta a qualidade do ensino. Cardon alerta que a conduta do Mauá abre precedentes para que os empresários visem a área da educação apenas para tirar vantagem financeira.
“Essa não é da natureza da educação. O objetivo é educar, é investir no crescimento do aluno. Infelizmente, há empresas que não prezam isso”, frisa.
Ele informa que o Sindicato tentou intermediar dois acordos com a empresa: um para pagamento de salários, férias e 13º atrasados, e o segundo referente às verbas res-cisórias. “Do primeiro, foram pagas somente algumas prestações, e, do segundo, só a primeira parcela. A alternativa que restou foi a justiça”, relata Cardon.
O labirinto de Empresas do Mauá
Além do montante das dívidas trabalhistas, o registro de várias empresas para atuar na mesma área e o surgimento de franquias constituídas por ex-funcionários são fatos que chamam a atenção em relação ao grupo.
Atualmente, segundo consta no Registro Civil das Pessoas Jurídicas de Porto Alegre e Caxias do Sul, os cursos de pré-vestibular do Mauá são integrados pela Sociedade de Ensino e Cultura Ltda. e Sociedade Cultural de Ensino Ltda., empresas com CNPJs diferentes e praticamente com os mesmos sócios.
Também há franquias de pré-vestibular em Lajeado, Bento Gonçalves, Osório e Porto Alegre, sendo que essa última é uma das que foram montadas por ex-professor.
O Mauá atua ainda na Educação de Jovens e Adultos (EJA). Até 2003, a EJA era ofertada pela Sociedade de Ensino Integrado Ltda. – Supletivo Mauá. A escola fechou as portas sem pagar os acordos firmados com os professores e apresentando problemas no recolhimento de INSS e FGTS.
Coincidentemente, no mesmo endereço, passou a atuar a Sociedade de Ensino Supletivo e Pré-vestibular, uma franquia cujos donos são ex-funcionários do grupo. Segundo eles, o negócio foi uma doação dos proprietários do Mauá como pagamento de rescisão contratual.
Situação que pode ser considerada um fenômeno diante da realidade enfrentada pelo restante dos trabalhadores que sequer recebiam salários. A Universidade, em Caxias do Sul, é outro empreendimento assumido publicamente.
No site da instituição, consta que “a criação da FAI faz parte de um anseio do Grupo Educacional Mauá, que desde 1959 atua intensivamente na formação educacional”.
O contador Salézio Dagostim questiona os procedimentos. “Não podemos dizer que é ilegal a abertura de várias empresas, mas não vejo a necessidade de constituir várias pessoas jurídicas para atuar no mesmo ramo, se era só abrirem filiais”, destaca.
Dagostim ressalta ainda que a abertura de franquias por ex-funcionários pode ser indício de gestão fraudulenta. Sociedades nas quais são usados os chamados “laranjas” à frente de empresas para dificultar o pagamento das ações trabalhistas e sonegar imposto.
Professores querem justiça
Impunidade e indignação são as palavras que melhor expressam o sentimento dos educadores que saíram sem receber nenhum dos direitos previstos na CLT.
Altair Teixeira Martins, Marcelo Vettori, Fabrício da Silva Scheffe e Paulo Espíndola são alguns dos ex-professores que entraram na justiça e compartilham a espera angustiante para que os responsáveis cumpram com suas obrigações e sejam punidos pelos prejuízos irreparáveis, como o tempo de serviço para a aposentadoria, que não serão computados.
“Trabalhei de 1994 a 2004, são dez anos em branco na minha vida trabalhista”, desabafa Altair Teixeira.
Segundo ele, durante todo o período em que atuou no Mauá, pressionava pela carteira assinada, pedido sempre postergado, e acredita ser este o motivo da sua demissão. Já Marcelo Vettori avalia que a prática do grupo pode ser caracterizada como estelionato.
Ele conta que, no início do semestre, os salários eram pagos em dia. Porém, no decorrer do ano, aproveitando-se do vínculo emocional criado entre professores e alunos e a dificuldade do docente conseguir outro trabalho no meio do semestre, passavam a atrasar, com a promessa de que no próximo semestre pagariam todos os débitos.
“Os alunos que vão fazer vestibular sofrem muitas pressões, ficam inseguros e contam muito com o professor, razões que muitas vezes nos segurava para não pedir para sair no meio do semestre”, relata.
Promessas de que teriam investimentos internacionais era outra artimanha usada pelos mantenedores para ir rolando as dívidas com os professores, lembra Paulo Espíndola.
No entanto, enquanto o pagamento dos salários ficava em aberto era comum os docentes observarem que os proprietários tinham um padrão de vida muito aquém da crise anunciada, com condições de veranear em Santa Catarina, enviar filhos para estudar em outros países, adquirir carros importados, etc.
“O pior é que eles continuam abusando da boa-fé e prejudicando as pessoas”, frisa Espíndola. Fabrício Scheffe destaca um sentimento comum entre os professores, o da impunidade. “Tenho uma descrença total no sistema”, desabafa.
Sócios do Mauá alegam falta de recursos
Em pronunciamento público entregue por escrito na sede do grupo, que oficialmente ainda continua sendo a da Salgado Filho, é alegada a falta de condições financeiras.
“Devido à constante diminuição de alunos e a grande inadimplência dos alunos matriculados, muitas reclamatórias trabalhistas ocorreram, e que na medida do possível estão sendo acordadas, negociadas e saldadas”, explica o documento, afirmando que a crise começou em meados de 2000. Os papéis foram entregues pelos sócios, Dideron Macedo e Cesar Ortiz.
Segundo eles, somente Mauro Trojan continua fazendo parte da sociedade; os demais “sumiram”.
As empresas foram constituídas por várias pessoas, algumas delas foram localizadas, mas optaram por não conceder entrevistas. No entanto, do ponto de vista jurídico, independente de estarem afastadas, elas continuam respondendo legalmente pelas empresas.
No que diz respeito ao endereço usado como sede oficial, a nossa reportagem esteve na localidade dias antes e recebeu a informação dos lojistas vizinhos de que o Mauá tinha se mudado há mais de dois anos. Macedo e Ortiz garantem que a sede continua funcionando, com um empregado.
Vale ressaltar ainda que os três sócios foram localizados no endereço do pré-vestibular da Cristóvão Colombo. No entanto, eles alegam que neste local funciona uma franquia, onde são apenas empregados e detentores do direito de uso da marca, que inclusive passou por um processo de reestudo.
Sobre os pagamentos das ações e dos acordos, a afirmação do pronunciamento não condiz com a realidade. Fato que pode ser demonstrado no processo do professor Daniel Conte.
Para o pagamento de parte dessa ação, o jurídico do Sinpro/RS apreendeu, há cerca de dois anos, R$ 3 mil da bilheteria de uma festa promovida pelo Mauá no Cord, em Porto Alegre. Na ocasião, Mauro Trojan assumiu a responsabilidade de fiel depositário.
Até hoje, o montante não foi depositado na Justiça do Trabalho e corre o processo de prisão contra Trojan, que continua impune. Segundo Daniel Conte, o saldo deixado pelo Mauá na vida de profissionais é extremamente negativo.
“A impressão que eu tenho é que os empresários fazem o que querem com os empregados e não são punidos. A marca Mauá arrasou um monte de professores extremamente qualificados”, finaliza.
Legislação deixa brecha para calote trabalhista
Com a garantia de que não serão punidos criminalmente, pois não existe legislação no Código Penal prevendo detenção para este tipo de crime, empresários aproveitam-se dessa brecha e lesam os empregados, deixando de pagar as obrigações trabalhistas.
Pedro Jacobi, delegado Regional do Trabalho substituto e auditor fiscal, relata ações fraudulentas de empresas no Vale dos Sinos que sumiam durante a noite e não eram encontradas pelos trabalhadores no dia seguinte.
“Elas literalmente anoiteciam e não amanheciam, com a maior tranquilidade”, comenta.
Para ele, a responsabilização dos proprietários sobre a atividade econômica que está gerindo deve ser total, como acontece em casos de sonegação de impostos, uma das razões que pode levar o dono de um empreendimento para a prisão.
Puxando um pouco pela memória, o leitor deve lembrar do caso da Daslu, uma das principais lojas de luxo do Brasil, em que a proprietária, a socialite Eliana Tranchesi, foi presa por sonegação de imposto de importação.
Infelizmente, o mesmo não acontece em casos de apropriações indébitas de recursos do trabalhador, como salários, férias, 13º, assim explica o advogado Affonso Martha. Ele avalia que sem uma legislação mais rígida para punir esses casos a tendência é continuar acontecendo tal tipo de crime ao trabalhador.
O juiz do Trabalho Luiz Alberto de Vargas comunga da opinião de Martha e Jacobi. Para ele, a lei é branda quando o que está em jogo são cobranças de dívidas trabalhistas. “E muitas são as críticas quando a Justiça do Trabalho penhora uma conta bancária de um empresário, por exemplo.
Isso é considerado uma violência”, destaca. Além da falta de legislação, Vargas questiona a flexibilização das leis diante da atuação de grupos econômicos.
“O que nós estamos assistindo é uma irresponsabilidade cada vez maior do capital em relação não só à sua inserção econômica em uma região, mas também às conseqüências da sua atuação, seja ecológica, seja trabalhista, ou até da sua retirada do mercado”, frisa.
Aos trabalhadores, ele orienta que é preciso continuar lutando e acionando as instituições econômicas que não cumprem suas obrigações.
Sindicato faz denúncia ao Ministério Público
Diante das irregularidades apresentadas pelo Mauá, o Sindicato encaminhou várias denúncias. Os pedidos de investigação e autuação foram enviados ao Conselho Estadual de Educação, à Delegacia Regional do Trabalho e à procuradoria do Trabalho.
Luciane Toss, advogada do Sinpro/RS, explica que, do ponto de vista jurídico, o departamento vem tomando todas as medidas para solucionar problemas de não-pagamento e encaminhando as questões para os órgãos competentes.
“A inoperância do poder público, no que diz respeito à fiscalização, à morosidade do judiciário, que em parte é justificada pela possibilidade legal de vários pequenos recursos e meios de protelar as execuções, são os grandes problemas”, frisa a advogada.
No que se refere às irregularidades, a expectativa é que a investigação do Ministério Público (MP) possa desvendar a conexão entre os contratos sociais das empresas e franquias e averiguar as reais condições financeiras dos sócios do Mauá que, ao mesmo tempo em que expande e reorganiza sua área de atuação, continua alegando falta de recursos para saldar os débitos trabalhistas.
O procurador do Trabalho Paulo Joarês Vieira, responsável pela investigação, informou que o processo está em andamento. “Estamos ouvindo pessoas e recolhendo documentos”, diz.
Sani Cardon torce para que a atuação do Ministério Público seja tão exitosa quanto as investigações que estão sendo feitas na Urcamp de Alegrete, publicada na última edição do Extra Classe.