O acesso à Educação Superior no Brasil nem sempre foi através do vestibular. Os antigos exames preparatórios e de Madureza, existentes no século passado, são muito similares ao atual Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) organizado pelo Governo federal. Esse resgate da presença do Estado nos modelos de acesso ao ensino superior coincide com a discussão feita nas universidades públicas e privadas sobre alternativas de ingresso nas instituições. De um lado, educadores reivindicam um sistema de avaliação menos baseado na memorização. No lugar do vestibular, pedem provas que avaliem realmente a capacidade de o aluno expressar seu pensamento. De outro, reitores das universidades propõem um novo formato de universidade estruturado no esquema de ciclos. O debate está recém começando.
Atualmente, quando se fala em democratizar a Educação Superior, a resposta do Governo federal são duas siglas: ProUni e Enem. Instituído em 2004 por medida provisória, o Programa Universidade para Todos (ProUni) concede bolsas de estudos integrais e parciais para os cursos de graduação e outros de formação específica em instituições privadas de ensino superior, com ou sem fins lucrativos. Para conseguirem o benefício, os candidatos precisam ter participado do Enem e apresentar renda familiar per capita de até três salários mínimos. É pré-requisito que tenham cursado o Ensino Médio completo em escola pública ou em instituição privada com bolsa integral. Em um contexto em que o acesso à universidade até pouco tempo era privilégio apenas das elites econômicas, o ProUni pode ser encarado como um avanço. Mas ele não é suficiente para que o aluno mantenha-se na faculdade. Essa dificuldade foi identificada pela equipe da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Das 4.443 vagas oferecidas para o ano de 2007, 879 (cerca de 20%) foram destinadas ao ProUni. Destas, 90% são bolsas integrais e apenas 10% são bolsas parciais. “Percebemos que, em função da baixa renda, mesmo que o aluno entre na faculdade, tem dificuldade de pagar os outros 50%”, observa Antônio Carlos Jardim, coordenador de controle acadêmico da Pró-Reitoria de Graduação da PUCRS. Para uma universidade particular que se inclui na legislação de fins filantrópicos, não se trata apenas de uma obrigação moral, mas de uma necessidade de atingir as metas para manter os benefícios estipulados pela lei.
“A Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs) trabalha atualmente apenas com o concurso vestibular normal, e não há perspectivas de mudanças a curto prazo”, diz Carlos Alexandre Netto, pró-reitor de Graduação. No entanto, há uma discussão interna bastante forte sobre se este é realmente o melhor modelo de acesso, e começam a ser estudadas alternativas como o Programa de Avaliação Seriada, da Universidade Federal de Santa Maria – ao final de cada ano do Ensino Médio, o aluno faz uma prova, e a média final é o critério de seleção para ele entrar na universidade. Ou o sistema da Unicamp, que faz uma prova dissertativa em duas fases.
Educador propõe libertar a Educação
Enem ou vestibular, não faz diferença, ambos são processos seletivos. O ingresso nas universidades também não pode ser resolvido por sistema de cotas para negros, mulheres, homossexuais. Para o educador e escritor Rubem Alves, 73 anos, um ferrenho defensor do fim das provas de cruzinhas que selecionam quem vai entrar nas universidades (ele escreveu oito livros sobre o tema), a pergunta que se deve fazer é: “Qual o sentido pedagógico do exame vestibular?”. Zero, responde. “O vestibular não contribui para o desenvolvimento da capacidade de pensar, porque privilegia a memorização”, argumenta. E afirma que se os reitores e professores se submetessem às provas desses exames seriam reprovados. A alternativa que propõe, há 20 anos, é sortear as vagas.
“O sorteio seria a forma de libertar a Educação da pressão do vestibular”, acredita. “As classes média e alta não teriam de gastar uma enorme quantidade de dinheiro inutilmente nos cursos pré-vestibular, e as escolas de Ensino Fundamental e de Ensino Médio estariam livres para ensinar e para se dedicar à arte de pensar, de levar os alunos pelos caminhos da pintura, da música, da história, da ciência.
”Mas o ensino tornou-se um “ótimo negócio”, reflete Alves. Multiplicaram-se universidades, e em alguns lugares há mais candidatos do que vagas, porque “a quantidade de faculdades picaretas são um acinte”, critica. O educador teme que a proposta da Universidade Nova, com uma base de conhecimento teórico para todos em um primeiro momento, não sobreviva, porque “inteligência é prática, e só se aprende o que faz sentido e é instrumental.”
Reitores defendem a implantação da Universidade Nova
Uma proposta que deverá mexer com a estrutura do ensino superior, caso seja aprovada pelo Ministério da Educação (MEC), é a da Universidade Nova, que institui três ciclos. O primeiro seria do Bacharelado Interdisciplinar (BI) – o aluno ingressaria por um exame que poderia ser uma adaptação do Enem e cursaria três anos antes de se candidatar a alguma faculdade específica profissionalizante, quando começaria o segundo ciclo. A seleção para os cursos profissionais passaria a respeitar a especificidade de cada carreira. A terceira etapa seria o pós-graduação.
“O sistema brasileiro de Educação Superior, além de obsoleto, desenvolveu-se sobre uma série de distorções”, argumenta Naomar Monteiro de Almeida Filho, reitor da Universidade Federal da Bahia e o principal articulador da idéia. “A estrutura curricular baseada no BI traz um potencial enorme de ampliação de vagas e de redução na taxa de evasão, pois as escolhas de carreira profissional são feitas com mais maturidade e melhor conhecimento do conteúdo das respectivas formações”, defende. Até dezembro de 2006, 17 universidades demonstraram interesse.
Manuel Palácios, diretor do Departamento de Desenvolvimento da Educação Superior do MEC, compara a idéia ao sistema vigente nos Estados Unidos e na Europa, em que já funciona o regime de três ciclos. O MEC deu apoio à realização do primeiro seminário sobre a Universidade Nova em dezembro, em Salvador, e está prevista uma nova reunião para março. Palácios salienta, entretanto, que, no formato atual, o Enem não teria condições de ser um instrumento de avaliação para a Universidade Nova. Uma das possibilidades em aberto é que as universidades interessadas componham um conselho técnico para avaliar a qualidade do conteúdo da seleção e para fazer os ajustes necessários.
Para Carlos Alexandre Netto, pró-reitor de Graduação da Ufrgs, o modelo do BI é interessante para as universidades recém-criadas, mas para as consolidadas pode trazer problemas. Isso porque os alunos entrariam sem definição de curso, o que significaria transferir para dentro da universidade a disputa que havia antes. “E se houver uma competição exagerada para uns cursos, e não para outros?”, questiona.
Naomar Almeida tem consciência da autonomia das universidades e, embora pretenda fazer a mudança em nível de rede pública federal, sabe que qualquer inovação vai levar tempo: “É melhor atrasar um pouco a implantação para aprofundarmos os detalhes e discuti-los a ponto de ter um consenso mínimo geral do que, por pioneirismo, alguém sair na frente e fazer algo que não será adotado pelo conjunto”. Uma vez iniciado o processo, acredita, será inevitável a transformação.
LINHA DO TEMPO
Um levantamento da legislação federal que regula o acesso à Educação Superior a partir da Constituição Brasileira de 1824 mostra que, desde o Império, o ingresso nas universidades no Brasil sempre foi privilégio de poucos. A pesquisa foi feita pela professora Silvia Maria Leite de Almeida, assistente da Universidade do Estado da Bahia (Uneb) para sua tese de doutorado no Programa de Pós-Graduação em Educação pela Ufrgs. A professora analisou o período de 1824 a 2003.
1808 – Surgem as primeiras faculdades no Brasil
Até 1824 – Para entrar na universidade, os alunos passavam por exames preparatórios de cada disciplina, conforme o curso pretendido. Este sistema tornava praticamente descartável o Ensino Médio, porque os alunos podiam estudar até com professores particulares. Havia ainda a possibilidade de acesso direto quando o jovem formava-se em Bacharel em Letras pelo Colégio Pedro II – o equivalente à 6ª série.
1911 – O vestibular apareceu pela primeira vez, quando algumas figuras notórias, como Rui Barbosa, passaram a defender o ensino secundário. Mas o pré-requisito de fazer o secundário antes de ingressar na faculdade
só entrou em vigor a partir de 1925.
1911-1925 – Além dos exames preparatórios, começou a vigorar o Exame de Madureza, um similar do atual Enem realizado depois da conclusão do Ensino Médio.
Década de 1940 – Muitos jovens, alegando ser superdotados, entravam nas universidades sem ter concluído o secundário.
1968 – A Reforma Universitária mudou o perfil do vestibular. De exame – que aprovava ou não o aluno –, passou a ser concurso e a adotar a classificação como critério de ingresso. Foi a solução encontrada para acabar com os excedentes.
Década de 1970 – Um parecer do Conselho Federal de Educação instituiu a necessidade do Ensino Médio. O vestibular ou o Concurso de Habilitação manteve-se como única forma de ingresso no ensino superior até 1996.
1996 – A Lei de Diretrizes e Bases (LDB) determinou que o acesso à Educação Superior teria de ser feito por processos seletivos, e as instituições passaram a ter liberdade de realizar outras formas de seleção e classificação.