Fechado há mais de 240 dias, o Museu Estadual Júlio de Castilhos, em Porto Alegre, deixa de atender diariamente dezenas de escolas que utilizavam a instituição como complemento das lições em sala de aula. O auge da crise do mais antigo instituto museológico do estado coincide com o momento em que professores estão despertando para a importância de complementar a educação formal com a exploração desses territórios da memória. Durante anos a estratégia foi vista com preconceito pelas escolas, que não achavam necessária essa atividade, ou que consideravam a saída para museus meramente como “um passeio”.
Sentado em frente a um computador, Mário não nega o tédio de mais um dia de expediente interno no Museu Júlio de Castilhos, em Porto Alegre, fechado até mesmo para meras visitas desde o início do ano. O estudante de História foi contratado para estagiar como mediador, mas trabalhou muito mais como operário – foi ele quem fez a mudança do acervo quando as salas expositivas inundaram, em janeiro deste ano, depois de uma semana de temporais.
“ Esses meninos é que estão segurando as pontas aqui no Museu”, agradece Luiz Capra, diretor da instituição, que tem que dividir seu tempo entre o Júlio de Castilhos e o cargo de supervisor de projetos, que cumpre simultaneamente na Secretaria da Cultura.
No tempo em que pode se dedicar ao museu, Capra refaz projetos de apoio que apresenta ao empresariado gaúcho. É nesse nicho que ele busca as verbas para reabrir a instituição – a Secretaria da Cultura nega sistematicamente seus pedidos, alegando que o conserto do telhado centenário saiu muito caro.
Do caixa estatal saem os recursos para manter a infra-estrutura básica da casa – água, luz, telefone e os salários da meia dúzia de funcionários, além da bolsa-auxílio de Mário. A manutenção precária sai do bolso da Associação de Amigos do Museu, preocupada principalmente com a conservação dos 10 mil itens do acervo que narram a formação do Rio Grande do Sul, sobretudo episódios da Revolução Farroupilha. Depois da inundação, a mantenedora se viu obrigada a reformar os ambientes do museu e gastou toda a verba disponível em pintura e troca de assoalhos.
Para manter as portas abertas do Museu Júlio de Castilhos – o mais antigo do estado, com 106 anos – Capra calcula que seriam necessários R$ 60 mil semestrais, R$ 10 mil por mês. Já apresentou a cifra para diversas empresas – públicas e privadas – mas reclama da falta de compreensão do empresariado.
“ Acho que o fato de o nosso público ser escolar dificulta as negociações”. Com o encerramento temporário das atividades foi possível fazer um levantamento sobre os visitantes da última década: 85% do público do Júlio de Castilhos cursa o Ensino Fundamental.
Tempo de despertar
O fato de ser um a instituição dedicada à história inclui o Museu Júlio de Castilhos nas agendas de praticamente todas as escolas – não apenas de Porto Alegre, mas também do interior do estado. O interior das casas de 150 anos – a principal foi morada de Castilhos – conta com um espaço de 200m² nos quais os objetos são cuidadosamente organizados para atrair a atenção do público infanto-juvenil. “Nossa instituição é 100% pensada para fortalecer a educação”.
Uma saída para o museu, entretanto, é freqüentemente encarada de forma equivocada por escolas e professores. “Visita ao museu não é passeio”!, reclama Luiz Capra, diretor do Júlio de Castilhos.
Tradicionalmente incluído pelas escolas num roteiro pelo centro da capital, os alunos dedicavam pouco mais de 30 minutos para conhecer o acervo que abriga peças de diferentes épocas, como as salas Missioneira, Indígena, Escravos e ainda o quarto e o gabinete de Júlio de Castilhos.
“Perceber o museu como parte de um roteiro turístico impede o trabalho educativo de acontecer”, observa Alice Bemvenutti, professora especializada em arte-educação, um termo completamente desconhecido há uma década, mas que nos últimos anos começa a compor o vocabulário dos docentes.
Uma visita envolve não apenas conteúdo formal – Geografia, História, Arte –, mas também provoca mudança na percepção dos alunos que se deslocam no espaço e no tempo. “São outros cheiros, sons, temperaturas”, sublinha Alice.
“O museu é um importante instrumento no processo de educação permanente do indivíduo, contribuindo para o desenvolvimento de sua inteligência, capacidade crítica e cognitiva”, pontua Mariane Loch Sbeghen, professora da Universidade de Passo Fundo.
Alice ainda destaca que o ingresso cobrado por instituições particulares legitima essa visão distorcida do museu. “A característica principal dessa visita é o lazer, a diversão e não a formação”, critica.
Planejamento necessário
Para que o encontro entre alunos e museu seja eficiente, o trabalho não deve se restringir ao momento da visita. O planejamento desse episódio é indispensável para a compreensão das crianças. “Aguçar a percepção para o encontro com o original, que é o que está no museu”, observa Alice Bemvenutti.
A mestra encontra em Luiz Capra, diretor do Júlio de Castilhos, um aliado. “Temos o cuidado de instigar para a importância de um objeto, como a coleção de lanças farroupilhas – a maior que existe –, que de fato mataram muitos guerreiros”.
Alice chama isso de pontos de apoio pedagógicos. “O conhecimento prévio deixa o museu muito mais interessante”, acredita. Na sala de aula, ela explica para os alunos o que é o acervo que irão visitar, de onde ele vem, qual sua finalidade.
Alice Bemvenutti trata a visita como “expedição”, sempre dividida em duas etapas. A primeira é percorrer o espaço, “pura fruição”. O passo seguinte é uma atividade com o professor, para “pesquisar, registrar e questionar” o que foi visto.
Aos museus cabe repensar a instituição como instrumento para a formação cidadã. “Esse não é um lugar contemplativo nem sagrado, é o espaço para gerar questionamentos”, provoca Capra.
Para essa finalidade, o acervo deve estar disposto de maneira atraente e instigante. “Quando o aluno vê uma obra, cria uma expectativa para saber qual será a próxima”, esmiúça a professora. Por isso, Alice recomenda que seja feito um trabalho de ‘expografia’, termo cunhado pela paulista Marília Harb. “É essa montagem das exposições que vai provocar o aluno durante o reconhecimento”.
A familiarização com instituições da memória passa necessariamente pela desmistificação do museu. “Aqui não é lugar do proibido”, acredita Alice, que antes de iniciar uma aula no museu sempre provoca os alunos sentados em roda no meio da exposição.
“A idéia tradicional de museu é aquela que valoriza o objeto tangível e não o humano; que se conforma com a coleção e deixa de fora a explicação. Não é desse museu que precisamos”, opina Mariane.
Mas quem trabalha do lado detrás da linha branca, ou do vidro que separa o público da obra, adverte que há necessidade de um limite: “Isso aqui não é campo de futebol”, protesta Lenir Perondi, professora de Filosofia aposentada que há 12 anos é mediadora voluntária no Margs. “Deve haver um ‘não’, que é a proibição do toque”, acredita Luiz Capra.
Mas isso também não é definitivo: a importância da interação entre o público e o acervo a ser estudado é reconhecida pelas instituições que tomam medidas para aproximar os dois lados.
“Nosso auditório era apenas expositivo. As cadeiras são parte do acervo. Fizemos um estudo de avaliação de riscos e concluímos que era mais interessante deixar as pessoas sentarem”. Atualmente, mesmo com o Júlio de Castilhos fechado, o auditório do museu é palco de saraus e cursos de formação.
Descompasso entre instituições e profissionais
A figura do mediador é muito importante na construção desse nexo entre a obra e a realidade do observador. Lenir e suas colegas do Margs sentem falta de uma maior interação com a escola.
“O ideal seria que os professores estabelecessem um contato com o mediador antes da visita, assim, poderíamos definir uma abordagem específica para cada turma”, imagina Tânia Meurer Tipa, que também é voluntária no Margs.
“É muito difícil saber o nível de conhecimento das crianças antes de iniciar a mediação: é algo que se percebe durante a visita”, relata Ledir Krieger, que também pertence ao grupo.
“Parece-me que os professores já deram um passo importante à frente, e agora falta as instituições colocarem o pé no acelerador”, resume Alice.
O registro do trabalho desenvolvido no museu é essencial para o aluno, mas o outro lado também sente falta de um retorno. “Às vezes fica um buraco aberto, não sabemos se fomos bem-sucedidas ou não”, reclama Lenir Perondi.
Alice Bemvenutti sempre informa aos mediadores qual a abordagem que busca naquela visita. “Está errado pressupor qual é a necessidade do aluno, por isso é fundamental que haja uma interação entre a escola e o museu”. Mariane Loch faz coro: “O museu deve possibilitar e estimular vivências mais profundas”.
“O papel do mediador é provocar a inquietação no visitante. Sem conhecimento prévio não há como atingir esse ponto, principalmente em crianças”, atesta o diretor do Júlio de Castilhos, Luiz Capra.
Mas a definição do perfil ideal de mediador, elaborada pela coordenadora do Núcleo de Extensão do Margs, mostra que o conceito ainda carece de diretrizes específicas. Para Cleci Eliza Bozzeto, “essencialmente, o mediador tem que saber postar-se: ser calmo, com jogo de corpo, domínio de grupo e saber trabalhar a entonação de voz”.
Acesso para as novas gerações
Numa quinta-feira chuvosa, Alice Bemvenutti leva sua turma para o Margs. São todos adultos, estudantes de Pedagogia, mas grande parte deles nunca havia ido ao mais importante museu de arte do Rio Grande do Sul. “De um grupo de 30 adultos, em média dois conhecem o Margs”, relata a professora.
Alice é professora da Pedagogia da Ulbra, mas também leciona em uma escola municipal no bairro Humaitá, na zona norte de Porto Alegre. Ao contrário dos graduandos, a turminha da terceira série já visitou o Margs duas vezes desde a alfabetização. “Quinze anos atrás não era comum uma professora levar a turma ao museu, mas hoje estamos muito mais desenvolvidos”, comemora.
O pulo-do-gato aconteceu depois da primeira edição da Bienal do Mercosul, em 1997. “O fato de ser um megaevento colocou a mostra na agenda da mídia e transformou arte em notícia”. Aliado à divulgação na imprensa, um trabalho interno da Fundação Bienal propunha levar as escolas para o salão do museu, com transporte gratuito e mediação especializada.
“Essa ação modificou a opinião dos professores, que antes consideravam ‘encheção de saco’ agendar com um museu e agora competem para sair na frente de outros colégios”, compara. A primeira Bienal também marcou a fixação do conceito de mediador, que até então era uma figura pouco conhecida. “Mediador era um ET”, lembra Alice.
Esse movimento não se resume à capital. “Muitos já perceberam que o ensino também está fora da escola e que é preciso ousar para transformar a educação”, observa Mariane Loch, professora da Universidade de Passo Fundo, que assim como Alice escreveu sua dissertação de mestrado sobre o assunto. Os dois principais museus da cidade – o Museu de Artes Visuais Ruth Schneider e Museu Histórico Regional – oferecem programação específica para escolas.