A escola ainda não sabe lidar com as diferenças
Diga o nome de um ou dois personagens da literatura brasileira que ocuparam sua mente na infância. Foram seus heróis? Algum negro? Pois com exceção de Zumbi dos Palmares, a orientadora educacional do Instituto do Negro Padre Batista, em São Paulo, Andréa Lisboa de Souza, afirma que dificilmente um negro habita nosso imaginário. A partir de questionamentos como esse, a educadora dá início a oficinas que realiza para professores de Educação Básica.
“Pretendemos sensibilizar os educadores, principalmente os brancos, para que percebam como foi importante poderem contar com o referencial desses heróis brancos na infância. Por outro lado, mostrar que se eles não se preocuparem em trabalhar a imagem de personagens e heróis negros com seus alunos, fazendo com que entendam que o negro também é um ser humano como os outros, dificilmente conseguiremos mudar alguns problemas decorrentes de nossa situação como negros”. A obra de Andréa Lisboa é uma das referências bibliográficas do economista Marcelo Paixão, que recentemente lançou A dialética do bom aluno, uma análise detalhada das desigualdades raciais nos indicadores de escolarização dos estudantes no Brasil. Indicadores que foram programados a partir das bases de microdados de amostra de 10% dos censos demográficos de 1980, 1991 e 2000, além de contribuições de seminário realizado em 2006, na sede do Banco Interamericano de Desenvolvimento, em Washington.”
Conforme esses indicadores, entre as faixas etárias de sete a dez anos, as desigualdades com relação ao acesso escolar e a assimetria de cor e raça são bastante pequenas entre estudantes negros e brancos, a partir dos 12 anos de idade essa diferença começa a aparecer de forma mais alarmante. De acordo com Marcelo Paixão, as crianças negras abandonam a escola precocemente, numa intensidade maior do que ocorre entre as crianças brancas. De cada dez jovens negros com 17 anos, apenas um freqüenta a 3a série do Ensino Médio, no caso das jovens negras esse percentual não passa 20%.
Na avaliação do economista, se observados os dados de proficiência escolar do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (Saeb), constataremos que as médias das crianças negras são inferiores nos dois exames realizados (Português e Matemática na 4ª e 8ª séries do Ensino Fundamental, e terceiro ano do Ensino Médio). Esses fatores, de acordo com o pesquisador, significam que a escola é muito pouco receptiva às crianças afro-descendentes. Entretanto, ele salienta que as baixas taxas de escolaridade no Brasil são ruins para ambos os grupos.
Preconceito naturalizado
Apesar de respaldar suas reflexões a partir de dados quantitativos, Marcelo também faz uma análise subjetiva, dentro do enfoque sociológico, sua segunda formação. De acordo com ele, nenhuma criança, quer branca, amarela ou negra, nasce sabendo quais são as suas chances de sucesso numa sociedade, a não ser que essa sociedade lhe informe algo nesse sentido.
“Vivemos num meio social que se acostumou a naturalizar o baixo perfil social de inserção dos negros.” Marcelo critica a falta de problematização de questões como essa dentro e fora das escolas: “Não é refletido, por exemplo, que uma em cada cinco mulheres negras no mercado de trabalho brasileiro trabalha como empregada doméstica”. Para o sociólogo, é uma verdadeira continuidade que vem do período colonial imperial e perpassa o tempo moderno como se fosse “algo muito normal”.
Neste sentido, a dialética do bom aluno é uma grande ironia, porque mostra uma sociedade que forma o cidadão do futuro, colocando sobre os ombros do negro um baixo perfil de inserção social. E quando esse jovem abandona a escola, tornando-se mau aluno, na lógica discriminatória de uma sociedade desigual, torna-se bom aluno. Mas, quando o negro tem bom rendimento escolar, ele se transforma no mau aluno porque não é esse o papel social que se espera dele. “São essas questões que julgamos fundamentais de serem problematizadas tanto no espaço escolar como nos demais espaços da vida social,” destaca o economista.
Além dessa visão de uma sociedade etnocêntrica, de um pensamento que parte de uma concepção ocidental, Andréa Lisboa chama a atenção para a origem desse fato: “essa construção etnocêntrica vem do sentimento de medo do diferente, ao que não é conhecido. Se, num primeiro momento, tenho medo do que é diferente, isso será transformado em inferioridade, em desigualdade, em exclusão”. Marcelo concorda: “A escola como um todo está pouco preparada para lidar com a diferença, inclusive a racial, e essas práticas desiguais contribuem para aumentar o desalento das crianças negras em relação ao ambiente escolar”.
“Estás livre para ser escravo”
Um dos lemas fundamentais do Observatório Afro-brasileiro, que tem a coordenação do economista Marcelo Paixão, pode servir de inspiração para todo aquele que pretender encarar a tarefa de trabalhar as diferenças na escola:
– O mais importante de todos os conselhos. É sério. Aprenda a ler as suas intuições. Há uma lenda muito antiga (que fui eu mesmo que inventei – MP) que diz que os Deuses da pesquisa, que vivem no Olimpo cercados de outras divindades, são preguiçosos e detestam perder tempo com os mortais. A leitura e a reflexão sensibilizam, às vezes, estes Deuses que, plácidos, se comunicam conosco através de vagos sinais. A intuição é justamente o modo de nos aproximarmos destas deidades. Ela é o único modo inteligível de captação dos seus sinais. Sua intuição, no fundo, um roubo do néctar sagrado dos segredos destes Deuses, é o que te permitirá trazer novidades. Enfim, ser original no debate. Dela, e única e exclusivamente dela, de vossa própria intuição, estás livre para ser escravo.
Apesar de insuficientes e tardias, políticas avançam
Em 2007 a Comissão de Educação da Assembléia Legislativa do RS foi demandada a discutir a Lei 10.639, de 2003, que altera a 9.394, de 1996, e estabelece as diretrizes e bases da Educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática História e Cultura Afro-Brasileira. Ainda que não suficiente, Marcelo considera um avanço a aprovação dessa lei, no âmbito da promoção de políticas públicas.
Mara Sasso, assessora técnica da comissão da Assembléia Legislativa gaúcha, esteve presente nos três encontros promovidos para debater o tema com diferentes públicos, no ano passado. Em parceria com a Câmara Federal de Educação, a comissão realizou audiência pública em Mostardas, município que concentra grande número de grupos quilombolas. Durante o encontro, onde participaram representantes dos quilombos da região, foram prestados esclarecimentos sobre a lei e discutidas formas da inclusão do tema nos currículos escolares.
De acordo com a assessora técnica, a comissão não trabalha com índices, mas com demandas sociais e políticas para desenvolver suas atividades legislativas. Segundo ela, existe um grupo de educadores na região de Mostardas que trabalha a questão da inclusão étnicoracial de forma bastante expressiva. Isso ficou evidente na audiência pública, quando nativos quilombolas reconheceram que eles próprios reproduzem práticas da cultura dominante. Deram como exemplo o erro de informação já na entrada da cidade, onde há uma placa que destaca a presença açoriana no local, enquanto a maioria da população regional é de afro-descendentes.
Além de diretor de graduação do Instituto de Economia (IE/UFRJ), Marcelo Paixão coordena o Laboratório de Análises Econômicas, Históricas, Sociais e Estatísticas das Relações Raciais, do Instituto de Economia da UFRJ, e também o Observatório Afro-brasileiro. Assim como Andréa Lisboa e a Comissão da Assembléia, ele também tem procurado, junto a seus colegas pesquisadores, lançar luzes sobre práticas pedagógicas e as políticas públicas voltadas para o sistema educacional. “Para que a Lei 10.639 não vire uma letra morta”, enfatiza. “Esse é um projeto a ser construído e isso envolve a necessidade de vários atores sociais”.