Militarização da educação pública se expande no RS
Foto: René Cabrales
Foto: René Cabrales
A polêmica na comunidade educacional ganhou fôlego no final do mês passado, quando o Conselho Estadual de Educação (Ceed) aprovou a desativação de uma escola pública em São Gabriel para a Brigada Militar instalar uma unidade do Tiradentes e autorizou o início das aulas. Também foram autorizadas em Ijuí e Santo Ângelo. Três escolas da BM já estão funcionando no interior: em Santa Maria, desde 2008, em Passo Fundo, 2009, e em Ijuí, aprovada este ano. Há mais sete criadas por decreto do Executivo, mas ainda não estão abertas – Caxias do Sul, Canoas, São Luiz Gonzaga, Pelotas, Rio Grande, Santo Ângelo e São Gabriel, sendo que nesta última foram feitas até as matrículas dos estudantes.
Seu modelo pedagógico é festejado pelas comunidades e prefeituras contempladas com as escolas cuja qualidade do ensino é atestada por bons resultados no Enem. Mas por que há tantas diferenças na qualidade de ensino entre o Tiradentes e outros colégios mantidos pelo Estado? No edital de convocação para o concurso deste ano – Diário Oficial do Estado, de 15 de janeiro de 2010 – está claro que o acesso não é para todos, ao contrário do que manda a Constituição Federal. Consta que os alunos classificados nos testes de Português e Matemática serão convocados a realizar os exames de saúde e complementares, como exame de urina e eletroencefalograma. Quem estiver apto até aí terá que fazer de 25 a 30 abdominais em um minuto, de 8 a 12 flexões e correr de 1,6 mil metros a 2 mil metros em 12 minutos.
As peculiaridades militares, que limitam o ingresso de qualquer aluno, seja com problemas físicos ou mentais, ou até mesmo de adolescentes que estiverem acima do peso, estão contempladas na legislação estadual – Lei nº 12.349, de 26 de outubro de 2005, que em seu artigo primeiro instituiu o Ensino Médio na BM “de forma preparatória para o ingresso na carreira policial militar”. A escola prepara, mas não forma PMs, porque um dos requisitos hoje para ser soldado é ter concluído o Ensino Médio. Educadores ressaltam que, ao final do curso, o aluno recebe apenas o diploma de conclusão do Ensino Médio, como qualquer outra escola da rede pública estadual.
Para o professor de Educação da Ufrgs, Fernando Becker, uma escola mantida com recursos públicos não pode se dar ao luxo de selecionar alunos, produzindo exclusão no sistema de ingresso da escola pública. “Uma escola que pretende ser exemplar, top de linha, deveria esmerar-se em criar condições didáticas e pedagógicas para incluir progressivamente todos os alunos que nela tentam ingressar. É muito fácil dar aula para alunos selecionados, mediante testes, e lograr objetivos educacionais nobres com tais alunos”, afirma. Becker entende que o grande desafio da docência é dar aula para alunos que enfrentam todo tipo de problemas de aprendizagem e lograr nobres objetivos com esses alunos.
Outra questão levantada é quanto aos recursos humanos e financeiros. O colégio de Porto Alegre, denominado hoje Centro de Ensino Médio Tiradentes, está vinculado à Secretaria de Segurança, mas os professores são cedidos pela Secretaria de Educação (SE), que todos os anos é bombardeada de críticas devido à crônica falta de educadores nas escolas estaduais. Já o orçamento, segundo o diretor da escola em Porto Alegre, tenente-coronel Andreis Dal Lago, é todo da BM. O diretor de departamento de ensino da BM, coronel Sérgio Pastl, estima que cada nova escola custa de R$ 500 mil a R$ 1 milhão, dependendo da necessidade de construção de prédios e da área que será ocupada.
O que diz a legislação
Foto: Cláudio Fechel
A Constituição Federal de 1988 elegeu como um dos princípios para o ensino a igualdade de condições de acesso (…) “não podendo excluir nenhuma pessoa em razão de sua origem, raça, sexo, cor, idade, deficiência ou ausência dela”. Também fala como princípio constitucional a “gestão democrática do ensino público” e como dever do Estado a “progressiva universalização do ensino médio gratuito e o atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência, preferencialmente na rede regular de ensino”.
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação diz que “o Poder Público adotará, como alternativa preferencial, a ampliação do atendimento aos educandos com necessidades especiais na própria rede pública regular de ensino”.
Fechamento de escolas preocupa
Em votação polêmica, os membros do Ceed aprovaram por maioria a unidade em Ijuí – nove votos a favor, dois contrários e quatro abstenções. Mas o assunto ainda promete render muitas discussões. Simultaneamente à abertura dos colégios da BM, ocorreu o fechamento de 179 escolas estaduais e a municipalização de outras 46, em menos de quatro anos.
O conselheiro designado para ser o relator da matéria, Augusto Deon, abriu mão da função. Representante da Associação das Escolas Superiores de Formação de Professores, ele foi um dos que não quiseram votar. Alegou que não havia participado das discussões, mas reafirmou sua posição contrária à expansão dos colégios Tiradentes. Votaram contra o credenciamento do Colégio Tiradentes em Ijuí os conselheiros Antônio Avelange e Dulce Delan, que representam o Cpers.
Coube ao membro da União Gaúcha de Estudantes, Érico Michel, fazer a relatoria. Sugeriu ao Conselho pedir informações às Secretarias de Segurança e da Educação sobre a origem dos recursos para essas escolas. “Isso ainda não está bem claro, mas entendo que o ensino militar no país é válido e que os colégios mantidos pela Brigada Militar cumprem seu papel assim como as escolas do Exército”.
Também se abstiveram de votar Domingos Buffon, que representa o Sinpro/RS, Sindicato dos Professores do Ensino Privado do RS – no Ceed, e Maria Eulália Nascimento, do Cpers. Buffon disse que o Tiradentes não é a escola pública que ele deseja para o Rio Grande do Sul. Eulália, que preside a Comissão de Ensino Médio, e coordenou o trabalho coletivo para análise do pedido de credenciamento em Ijuí, afirmou que os colégios militares não são mais necessários no contexto democrático atual. E criticou a forma como a BM e o governo estão conduzindo o processo. “O Ceed se tornou refém das decisões do governo“, afirma.
Ela lembra que os alunos do colégio Tiradentes não podem ser computados para receber dinheiro do Fundeb – Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação Básica. “Se isso ocorre, a Secretaria de Educação está cometendo irregularidades”, define.
Modelo espartano é questionado
O professor Fernando Becker destaca que a disciplina rígida pode causar mais estragos do que benefícios para muitos alunos e que jamais deverá ser utilizada como fim educacional. “A disciplina é meio, por isso deve ser submetida aos fins educacionais: desenvolvimento intelectual e moral, formação para a cidadania consciente”, explica.
Foto: René Cabrales
A presidente do Ceed, Cecília Farias, também diretora do Sinpro/RS, diz que o Conselho, como órgão também de controle social, vem mantendo uma postura responsável em relação ao tema. “Questionamos a expansão surpreendente dos colégios Tiradentes, o investimento duplo na oferta de Ensino Médio – da Secretaria da Educação e da Secretaria da Segurança – a desigualdade de condições das escolas da rede estadual de ensino e dos colégios Tiradentes, e a forma de seleção de alunos”, ressalta.
O ex-conselheiro do Ceed, Marcos Fuhr, da direção colegiada do Sinpro/RS, considera que essa expansão dos colégios Tiradentes deve ser debatida na sociedade. “Se são todas escolas estaduais, porque a Tiradentes tem toda uma estrutura, enquanto as outras estão sucateadas?”, questiona. Para ele, há uma política da BM para valorizar a imagem da instituição através do ensino, e não da segurança.
Ele também questiona a forma de ingresso. “As famílias querem essa escola, mas quem tem chance são os adolescentes bem nutridos, sem problemas físicos, e a realidade é que os filhos de policiais representam uma minoria ali”, argumenta o diretor sindical, referindo-se a 30% das vagas destinadas aos familiares dos PMs.
O certo, argumenta Fuhr, “era fazer seleção por sorteio, a exemplo do que ocorre em colégios como o Instituto de Educação, que é estadual, e o Colégio de Aplicação, vinculado à Universidade Federal”. “Qualquer exclusão escolar anda, atualmente, na contramão das conquistas históricas. Imagine um aluno que frequenta uma escola dessas. Ele pode apresentar uma performance intelectual bem acima da média nacional, mas não aprenderá a conviver com as diferenças: com os portadores de deficiências, com a pobreza e a miséria que adentram nossas escolas. E perderá excelente oportunidade de aprender a conviver com as diferenças sociais”, completa o professor Becker.
Concorrência no ensino público
Em 2004, dois anos após a Assembleia Legislativa ter derrubado o projeto de lei do Executivo que supostamente desmilitarizou o Tiradentes e transferiu-o para a Secretaria da Educação, o Ceed constatou que não existia nenhuma lei que instituía a Secretaria da Segurança como mantenedora da escola. “O colégio tinha uma gestão híbrida. Era mantido financeiramente pela SE, mas a gestão era da Brigada Militar”, explica Cecília Farias.
O Conselho determinou que a instituição passasse de vez para a BM através de lei e, se isso não ocorresse, a SE deveria assegurar a autonomia administrativa do colégio, inclusive com eleições democráticas para diretor. Em 2005, o governo sancionou a Lei 12.349, de 26 de outubro, que autorizou o Ensino Médio.
Foto: René Cabrales
“Ética, valor, disciplina e hierarquia”
“Aqui nós tratamos a educação no sentido integral do aluno, sem a intenção de formatar o cidadão, apenas motivamos ele a estudar, dentro dos nossos princípios de ética, valor, disciplina e hierarquia”, explica o tenente-coronel Andreis Dal Lago, diretor do colégio em Porto Alegre.
Na capital, a instituição chegou aos 30 anos e se notabiliza pelo excelente desempenho de seus alunos em vestibulares e avaliações como o Enem – Exame Nacional do Ensino Médio. Da última turma de formandos, 26% foram aprovados na Ufrgs, cinco alunos ingressaram em escolas militares. Quanto à forma de ingresso, Dal Lago diz que os testes se justificam devido à exigência de marchar e de participar de modalidades esportivas.
A carga horária dos alunos varia entre 1.400 horas anuais, para quem frequenta primeiro e segundo anos, e 1.200 h/a para o terceiro ano. Estes estão dispensados do turno integral. Os demais têm aulas manhã e tarde, de segunda a sexta. Dois períodos por semana são dedicados às atividades extracurriculares, a escolher entre desportivas – hipismo, esgrima, defesa pessoal, atletismo, futebol, vôlei, basquete – e culturais – banda marcial, dança, francês, alemão e inglês.
A média é 7, enquanto nas outras é 6. Quem estiver abaixo da média no primeiro trimestre já recebe reforço. Quem for reprovado duas vezes ou for pego colando é “convidado” a sair da escola. O índice de aprovação em 2009 foi de 97%. Os instrutores das aulas extraclasse são policiais militares, oficiais e soldados. Já os professores da grade curricular são todos vinculados à Secretaria de Educação, 30 no total.
A BM não possui verba específica para manter a escola. São aceitas contribuições voluntárias de R$ 30 por mês. “Isso que alguns dizem que é um colégio elitista, que matricula somente os melhores alunos, é uma inverdade”. Dal Lago ressalta que no próximo concurso, em 2011, serão reservadas 60% das vagas para filhos PMs. “A função do Tiradentes é assistencialista”, insiste. Este ano o colégio iniciou com 355 alunos, quase o dobro dos anos anteriores. A meta é chegar em 2012 com 600 estudantes.