Escola no cárcere
Foto: Igor Sperotto
Independente da motivação dos apenados em buscar formação escolar no cárcere, seja para remição de pena, inserção na sociedade ou ambas, o papel do Estado é oferecer esta via. Os espaços do Núcleo Estadual de Jovens e Adultos e Cultura Popular (NEEJACP) nos presídios Central (masculino) e Madre Pelletier (feminino), em Porto Alegre, assim como outras iniciativas isoladas de projetos educacionais e profissionalizantes são um oásis em meio à realidade das galerias. Mas ainda representam muito pouco no contexto geral das prisões brasileiras.
As Diretrizes Nacionais de Educação nas Prisões, estabelecidas pelo Conselho Nacional de Educação em maio de 2010, criaram um marco normativo para a oferta de educação de jovens e adultos em situação de privação de liberdade. O Decreto nº 7626 de 24 de novembro de 2011 instituiu o Plano Estratégico de Educação no Âmbito do Sistema Prisional (Peesp) e reforçou as diretrizes, colocando de forma explícita o papel dos estados. Falta garantir a todos os presos que queiram estudar uma real oportunidade, com infraestrutura, recursos humanos e capacidade técnica adequados. Até junho de 2011, apenas 43.334 de 513.802 apenados estavam em atividades educacionais no Brasil, segundo o Sistema Integrado de Informações Penitenciárias (Infopen).
A educação pública, gratuita e obrigatória, é um dever do Estado, diz a Constituição Federal. A Lei de Execução Penal nº 7.210 de 1984 assegurou a assistência educacional à população carcerária. No entanto, a educação dos presos foi por muito tempo negligenciada. “Nenhuma prisão do Brasil é uma prisão-escola, o que existem são salas de aulas improvisadas. A questão de segurança dificulta o trabalho − a maioria dos gestores entende que educação é um ganho, mas não conseguem viabilizar”, afirma o professor Roberto da Silva, 54 anos, ex-interno da Febem, que também cumpriu dez anos no sistema penitenciário e hoje leciona na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (Feusp) e coordena o Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação em Regimes de Privação de Liberdade (GepêPrivação), formado pela Feusp e Instituto Paulo Freire.
Foo: Igor Sperotto
Para se beneficiar do Peesp, os governos dos estados e do Distrito Federal precisam apresentar projetos, estratégias e metas aos Ministérios da Educação e da Justiça, responsáveis pela execução. O GepêPrivação assessora quatro estados a elaborarem seus planos de ação: Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Santa Catarina e Bahia. De uma forma geral, a oferta de educação nos presídios é baixa: em torno de 18%. Silva cita o exemplo de Santa Catarina, em que há 878 presos analfabetos. “Poderíamos alfabetizá-los em oito meses”, garante. Os presos que concluem o Ensino Médio poderiam se beneficiar do Programa Universidade para Todos (ProUni), como já acontece em Minas Gerais, ou fazer ensino à distância dentro dos presídios, defende. Um problema é a falta de professores com formação específica em universidades, material didático e bibliografia para subsidiar os trabalhos. Por isso, Silva sugere que se declare um “Ano da Educação em Prisões” para que se discutam e estabeleçam metas e financiamento, mobilizando a sociedade.
No Rio Grande do Sul, há 14 Neejas instalados. Um convênio com o Serviço Nacional da Indústria (Senai) e empresas possibilita a educação profissional e tecnológica em algumas das 97 unidades prisionais. Há projetos de estruturação de bibliotecas nos presídios com o Banco dos Livros da Federação das Indústrias (Fiergs). A mudança da lei quanto à remição de pena é um incentivo: cada 12 horas de estudo significam um dia a menos de pena. Em 2010, 1.642 apenados estudaram. Em 2011, de um total de 29.481 presos, havia 2.248 estudantes.
Para chegar ao NEEJACP no Presídio Central é preciso ultrapassar um muro alto, cães de guarda, detector de metais. A grade só é aberta depois que a soldada da Brigada Militar se certifica de que o(a) visitante deixou o celular no armário com cadeado. O Central é administrado pela Brigada Militar (BM) desde julho de 1995, quando foi implantada uma força-tarefa para acabar com as rebeliões. Abriga 4.503 apenados para 1.986 vagas. “Devia ser uma casa temporária, para quem aguarda condenação, mas hoje tem todo mundo junto”, alerta a psicóloga Ivarlete de França, diretora do Departamento de Tratamento Penal da Superintendência de Serviços Penitenciários (Susepe) da Secretaria da Segurança Pública do Rio Grande do Sul.
Falta estrutura para receber mais alunos. Na sala de visitas do NEEJACP do Presídio Central, o ar-condicionado antigo e barulhento tentava afastar o calor. “Estamos juntando dinheiro para adquirir outro”, avisou a bióloga Cláudia Pinheiro Machado Prates, há sete anos coordenadora pedagógica e vice-diretora da escola que tem 180 estudantes. “Toda semana ingressam e saem alunos que são transferidos, entram em liberdade, ou não querem mais estudar”, explicou.
Dificuldades não intimidam
Os cheiros que vêm das galerias e os ratos com que cruza nos corredores não a intimidam, nem ter de tirar trocados do próprio bolso para manter o local e os presos asseados. Os professores compram escova e pasta de dente e os soldados da BM distribuem para os estudantes. Na escola, preso não usa algema nem tenta fugir: “Damos o que faltou na vida deles: ordem, regra, respeito. Não arrastam a cadeira, não agridem o colega. Convivem com outra facção criminosa na mesma sala”.
Na Penitenciária Feminina Madre Pelletier, das 283 detentas, cerca de cem estudam no NEEJACP. Em 2011, foram 218. Num calor infernal, separada das salas de aula por uma grade, a professora de Educação Física e diretora Joice Elaine Flores preparava o projeto do turno noturno para diminuir a lista de espera por vagas. A penitenciária é administrada pela Susepe. Para fazer alterações na grade escolar, Joice precisa da autorização das Secretarias de Segurança e de Educação.
A biblioteca ali é mantida fechada à chave, porque a detenta que cuidava foi transferida. Para entrar, só com professores. Não dá para sentar e ficar estudando. Doações de roupas, material de higiene e beleza são bem-vindas. Vez ou outra uma presa é chamada no meio das lições para ser comunicada por um oficial de Justiça sobre sua pena. Volta para a sala nervosa, sem tempo de digerir a notícia. Algumas mal sabem ler. A professora ajudar a entender e calcular o tempo de prisão.
A lição mais difícil é ensinar a reaprender a sonhar, atestam Joice e Cláudia. Natália dos Reis Souza, 44 anos, foi presa em 28 de abril de 2010 e deixou fora das grades seis filhos – o menor tem um ano de idade. Trabalha na cozinha e estuda. Ainda junta as letras − até os 13 anos de idade foi pouco à escola, depois não mais. Mas, nas contas, vai muito bem. Aprendeu na prática, como revendedora de roupas e cosméticos. Espera que o trabalho e a educação diminuam a pena para voltar logo para os filhos.
Também Carlos Aldrovando de Oliveira Santos, 50 anos, pensa na família ao falar de futuro. Ele ainda não conhece as filhas gêmeas que fazem um ano em abril. O envolvimento com as drogas o levou três vezes ao Presídio Central. A primeira foi em 1983. Nesta última, completou um ano. Inscreveu-se num tratamento para dependência química, fez curso de computação e voltou a estudar. “Gosto de ler e de leis”, anunciou. Tem lido o Código Penal e avisa: “Pode ser que eu não venha a ser um advogado, mas posso trabalhar com algum”.
Foto: Marcelo Amaral
Tudo é possível, desde que tenham oportunidade e acesso, disse Joice. Ela lembrou a história de uma aluna que saiu da penitenciária sem ter acabado o Ensino Médio, mas continuou os estudos fora do presídio e foi aprovada no vestibular de Direito. Outra mal sabia se expressar. Concluiu o Ensino Fundamental e trabalha enquanto cumpre a pena.
A demanda pela educação prisional deve ir além dos Neejas, afirmou Marcos Rolim, doutorando na formação de jovens violentos. O Centro Universitário IPA da Rede Metodista de Educação do Sul no qual Rolim dá aulas implantou o primeiro curso universitário dentro de um presídio brasileiro. Foi no Madre Pelletier em 2005. “Formamos uma turma de presas e agentes penitenciários em Serviço Social sem que o governo gastasse um centavo”, contou. Mas é preciso melhorar a relação com as universidades. “Os contatos são difíceis. A abertura implica a presença de outras instituições dentro do presídio, e isso nem sempre é visto com bons olhos. São dificuldades de ordem política que têm de ser superadas”, argumentou.
Novas perspectivas
Foto: Marcelo Amaral
No dia 17 de janeiro, pouco antes de seu afastamento por licença médica, após despedir-se dos alunos/presos, a professora formada em Biologia, Cláudia Pinheiro Machado Prates, coordenadora pedagógica e vice-diretora do Núcleo Estadual de Educação para Jovens e Adultos e Cultura Popular (NEEJACP) do Presídio Central de Porto Alegre, falou com o jornal Extra Classe:
Extra Classe – Como a senhora se sente depois de sete anos trabalhando no NEEJACP, e qual a diferença desta experiência para outras escolas?
Cláudia Pinheiro Machado Prates – Quando a gente trabalha com criança é diferente, eles têm energia para o futuro. O nosso aluno não tem mais essa visão. A gente tem que fazer com que ele busque de novo sonhar e olhar o futuro; pensar na família com mais responsabilidade. Eu toco muito na questão de filhos, porque eles têm muitos filhos, mesmo os jovens: “Teu filho vai ser teu companheiro daqui a alguns anos aqui dentro? O que tu estás fazendo para mudar isso? Te preocupa se ele vai à escola, se respeita as pessoas?”
EC – Alguma coisa lhe modificou neste processo?
Cláudia – Não tem como não. Tu aprendes a olhar a pessoa pelo que ela é naquele momento, e o que tem para te oferecer, não interessa por que está ali. A gente se torna mais humilde, mais respeitosa. Eles têm tantos problemas quanto nós. Já fui assaltada, com arma no pescoço e tudo, e tive que aprender aqui a conviver com aquele que me agredia. A gente amadurece bastante. Acho que se torna mais ponderada, mais calma, mais condescendente com as outras pessoas, com a família, contigo.
EC – Alguma frustração?
Cláudia – Claro. A gente tem uma escola pequena – queria que fosse maior. E queria ter realmente um maior aproveitamento escolar. Mas ainda nós temos que crescer muito como país para que isso mude. Enquanto a lei e os interesses políticos não mudarem, não podemos fazer tanta coisa assim. O nosso trabalho é de formiga, nem é visto na sociedade. Não interessa. Por quê? “Se está lá dentro, deixa, está com um monte de lixo”. É a mesma coisa com o trabalho da Brigada Militar (BM). As pessoas normalmente só olham a Brigada como contenção. Mas e toda a Brigada que trabalha conosco para a escola funcionar? A própria BM teve que entender a escola, e a gente entender a Brigada, para conviver bem.