Alfabetização para a democracia real
Foto: Elza Fiuza/Agência Brasil
Foto: Elza Fiuza/Agência Brasil
A construção de uma democracia autêntica não depende apenas de questões políticas e sociais. Uma de suas bases mais sólidas está na literacia de um povo, ou seja, na capacidade de utilizar as habilidades de leitura e escrita em atividades que passam pela aquisição, transmissão e produção de conhecimento com excelência. É o que defende o português José Morais, doutor em Ciências Psicológicas pela Universidade Livre de Bruxelas e doutor honoris causa pela Universidade de Lisboa, que faz uma análise profunda do tema em seu livro Alfabetizar para a democracia (Editora Penso/Grupo A).
Em capítulo especial dedicado ao Brasil, o autor fala dos desafios da alfabetização e critica o sistema adotado há 15 anos pelo Ministério da Educação – o construtivismo – que, segundo ele, não é o caminho correto. A maior evidência disso é o desempenho do país no Pisa (Programa Internacional de Avaliação de Estudantes). Nos últimos dados divulgados, em 2012, o nível 6 de compreensão em leitura (o mais alto), foi alcançado por apenas um em mil estudantes brasileiros. Em Singapura, primeiro país no ranking, esse número ficou em 50 em mil. Apenas cinco brasileiros em mil atingiram o nível 4, considerado razoável.
Segundo Morais, a variação dos números brasileiros entre os resultados do ano de 2000 a 2012 não é significativa e o país continua na “cauda do pelotão”, em 55º lugar entre 65 países. “Obviamente, a situação atual não é apenas a consequência de uma escolha catastrófica em matéria de alfabetização. As fraquezas do ensino público são muito grandes. Dependem em grande parte da pouca atenção dada à formação e ao reconhecimento socioeconômico dos professores, e não permitem contrariar os efeitos precoces das grandes desigualdades sociais na população escolar”, afirma o autor.
Morais acredita na adoção da psicologia e neurociência cognitiva para a alfabetização. Este método utiliza dados científicos, coletados a partir de situações experimentais, comparando grupos da mesma realidade e usando os resultados obtidos como objeto de análise. “A aplicação na escola desse conhecimento não é mecânica nem imediata: cabe ao professor encontrar as melhores formas de aplicação, que não são necessariamente idênticas para todos os alunos. Devem ser incentivadas à colaboração e às interações entre os alfabetizadores e os pesquisadores em psicologia e didática das aprendizagens”, afirma. A maior parte dos países asiáticos, que não utiliza o sistema alfabético, adota esta metodologia, além de países como a Grã-Bretanha, França, alguns países da Europa Central e Norte, vários estados norte-americanos e, desde 2012, Portugal.
Junto a isso, o método fônico de ensino também é defendido pelo pesquisador como o caminho correto para o sucesso na alfabetização. O objetivo é fazer o aluno compreender a representação dos fonemas por grafemas, chamando a atenção para duas formas – a falada e a escrita – e para a relação entre elas. A adoção do método fônico colabora ainda para o ensino de línguas estrangeiras e problemas como a dislexia. “Está demonstrado, por exemplo, que os programas de reeducação das capacidades fonológicas são os mais eficientes para a maioria das crianças disléxicas. Obviamente, os seus professores deveriam ter um conhecimento aprofundado da dislexia, das suas causas e das suas manifestações, assim como das possibilidades de intervenção especializada“, explica Morais.
Sobre o ensino de línguas estrangeiras, o autor destaca ao menos três razões que facilitam aprendizagem pelo método fônico: conduz à compreensão do princípio alfabético e ao domínio das correspondências grafofonológicas; chama a atenção para as propriedades fonológicas, fonéticas e articulatórias das línguas e aproveita semelhanças e diferenças entre os códigos ortográficos das diferentes línguas, que podem ser aproveitadas durante o ensino de um segundo idioma.
Foto: Arquivo pessoal
Capitalismo corporativo na educação
Para Morais, os baixos níveis de compreensão e leitura de um país refletem em seu sistema político e democrático. O autor defende que vivemos em uma pseudodemocracia. “Chamo pseudodemocracia o sistema político atual, vigente em todos os países que se pretendem democráticos, mas em que os representantes são na realidade designados por grandes partidos sustentados pelo poder econômico e financeiro e por meios de comunicação subordinados a este poder. A existência de eleições a cada dois anos não é suficiente para se dizer que há democracia”, argumenta o pesquisador. Para ele, a verdadeira democracia supõe debate público, decisão coletiva e um controle político constante da ação dos representantes eleitos pelo povo.
Porém, não são os baixos níveis de literacia que fazem que um sistema político não seja democrático, pois existem países desenvolvidos com altos níveis de leitura que vivem em pseudodemocracia. Morais destaca que o Brasil é uma pseudodemocracia porque o debate se faz entre elites, as decisões não são coletivas e não há controle constante e eventual revogação dos mandatos dos representantes eleitos. “Obviamente, um povo altamente letrado, plenamente informado e que faz livre uso da sua literacia, da sua capacidade de reflexão, de avaliação e de crítica, terá ótimas condições para instaurar e defender a verdadeira democracia”, pondera.
CAPITALISMO CORPORATIVO – O livro aborda ainda o capitalismo corporativo na educação, o chamado capitalismo das grandes corporações e da alta finança, modelo que se regula segundo as forças imediatas do mercado e que tem se expandido no Brasil com as empresas mercantilistas de ensino. Conforme o autor, esta forma de capitalismo está interessada numa escola que assegure líderes empreendedores, competitivos, ambiciosos e insensíveis aos desastres sociais e técnicos que produzam inovações e garantam o funcionamento da máquina produtiva alinhados com o desejo dos patrões. “Ao capitalismo corporativo não interessa a “outra” escola, a democrática, aquela que procura desenvolver em todas as crianças as capacidades cognitivas e socioafetivas de que naturalmente dispõem, assim como a sua livre expressão e o seu pendor à associação voluntária e à cooperação”, afirma.