EDUCAÇÃO

Uma escola para a autonomia

As demandas criadas pelas novas tecnologias desafiam professores a uma reinvenção do seu papel em sala de aula
Por Sílvia Franz Marcuzzo / Publicado em 10 de novembro de 2014
Quem vai inventar outra forma de fazer educação não é a universidade ou os gestores, mas gente com cabeça aberta, aponta o professor de Física da PUCRS, João Batista Harres

Foto: Projeto Cuidar de Quem Cuida da Educação/Divulgação

Quem vai inventar outra forma de fazer educação não é a universidade ou os gestores, mas gente com cabeça aberta, aponta o professor de Física da PUCRS, João Batista Harres

Foto: Projeto Cuidar de Quem Cuida da Educação/Divulgação

Desde pequeno, Enrique adorava ensinar coisas para os amigos. Um dos presentes com os quais mais brincou foi um quadro-negro. Ele foi até monitor de outras turmas aos 14 anos. Filho de professora, entrou na Engenharia Eletrônica, mas não deu outra: na conjuntura da vida, quando percebeu, tinha se tornado professor. Formou-se em Licenciatura em Inglês, Português e Espanhol. Depois de ter vivido realidades e propostas pedagógicas diferentes, especialmente no ensino privado, foi demitido em dezembro de 2013 de um colégio tradicional onde lecionava. O professor ousou transmitir conhecimentos de forma inovadora e criativa. Trocou a posição original das cadeiras por um círculo em que todos sentavam em colchonetes, no chão. Em vez de decorar nomes, pediu para seus alunos organizar um desfile de moda no qual apresentavam as roupas no idioma estudado. Enquanto isso, alguns estudantes reivindicavam de outros professores novas formas de aprender. Até que alguém perguntou para Enrique de onde ele estava tirando essas ideias.

Depois de frequentar o curso de empreendedorismo Estaleiro Liberdade, suas conexões começaram a se expandir. Três alunos daquele colégio tradicional quiseram conhecer a Casa Liberdade, localizada na rua Liberdade, 553, em Porto Alegre, onde acontecem as atividades do Estaleiro. Um deles comentou com familiares que não queria mais aulas no estilo tradicional. Queria aprender nos moldes do que era desenvolvido na Casa, nos altos do bairro Rio Branco. Uma autoridade do ensino médio do colégio, no qual ele lecionava havia dois anos e meio, chamou Enrique e o alertou: “Se continuares falando… vais comprometer teu futuro profissional e isso (a abordagem sobre empreendedorismo e criatividade) pode ser enquadrado como aliciamento de menores”. Os alunos se mobilizaram para que ficasse, mas depois de explicada a situação, entenderam que não tinha como remediar a situação. Enrique agradeceu à direção porque, pelo menos, pode lecionar até o final do ano letivo. A experiência do professor – cujo nome real foi preservado e já não leciona em instituições de ensino – sintetiza os conflitos vivenciados atualmente pelos docentes, que se veem pressionados por uma nova forma de ensinar demandada pela inserção das novas tecnologias na educação e pelas limitações impostas pela escola tradicional.

Para o coordenador do Curso de Licenciatura em Física da PUCRS, João Batista Siqueira Harres, situações como essa revelam o contexto da educação, como a forma como se trabalha a autonomia dos alunos. Pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Educação em Ciências e Matemática da Faculdade de Física da PUCRS, Harres afirma que os alunos da atualidade são muito diferentes daqueles de 25 anos atrás. Atualmente, os pais têm maior nível educacional, o que se reflete em novas formas de relacionamento, com menos autoritarismo e com mais fartura. Ao mesmo tempo, há um maior comodismo. “Muitos pais, entre eles eu, quiseram dar a seus filhos o que eles próprios não tiveram. Os alunos passaram a ter acesso a informações que antes só estavam disponíveis na escola,” compara o professor. Ele acrescenta que os alunos aprendem de várias formas: nos meios de comunicação, no acesso à tecnologia. As crianças e adolescentes interrogam, mexem e “brincam”, no bom sentido da palavra, testando, desafiando. Para o pesquisador, parte do estresse dos professores ocorre porque eles não percebem que já não são mais “a” fonte da informação.

“Aquilo que sabem, só sabem transmitir como lhes foi passado na universidade, isto é, por transmissão basicamente oral,” argumenta João Batista. Durante o seu doutorado em Educação, Harres conheceu um grupo espanhol de inovação escolar em que cada um faz nas suas aulas, seja na graduação ou na pós-graduação, aquilo que gostaria que os seus professores tivessem feito. “Para mim, esse é um dos maiores problemas da formação de professores. A grande maioria sempre teve aula da mesma maneira, seja na escola ou na universidade”. Atualmente, ele pesquisa o que faz com que uma inovação educacional “resista” ao tempo, já que as ideias de como a educação deveria e poderia ser já têm mais de cem anos.

Para o pesquisador, que tem mais de 30 anos de magistério, muitos professores estão satisfeitos por “fazerem parte do sistema”. “Uma mudança para esses é mais difícil, pois sua percepção está protegida contra refutação. Só enxergam o que corrobora com a sua visão de educação (e de mundo),” opina. João Batista avalia que os mais jovens e ousados é que sentem mais esse problema, como o caso de Enrique, que tem 37 anos. Mas ele os tranquiliza, pois ninguém sabe como resolver isso. “Só há uma maneira: inventar, errar, testar, criar, reformular, como fazem esses jovens desses coletivos, projetos, casas. Eles não têm medo de errar, como qualquer criança hoje frente a um videogame, tablet, celular. É justamente isso que assusta a qualquer um que começa a dar aula no sistema atual de ensino”.

O pesquisador integra o projeto Cuidar de Quem Cuida da Educação, que nasceu durante o projeto Visionários, no espaço TransLab, um laboratório para gerar inovação social e melhorar a qualidade de vida das cidades em Porto Alegre. A iniciativa visa criar espaços para diálogos e acolhimento aos educadores. A proposta é criar uma mobilização social para a integração em prol da cocriação de novos olhares sobre o cenário atual dos docentes. “Acredito que quem vai inventar outra forma de fazer educação não é a universidade e nem os gestores públicos, mas gente com cabeça aberta e atualizada
nas “vibes” de hoje, como a gurizada desse grupo. Eu quero estar perto deles para seguir andando em frente”, conclui.

Novas tendências incluem criatividade e tecnologia
Uma iniciativa que endossa a argumentação de João Batista é o Projeto Usina. Depois de fazer um curso na Perestroika, uma escola de atividades criativas, fundada por publicitários, o assessor jurídico da Secretaria Municipal de Educação (Smed) de Porto Alegre, Paulo Ardenghi, percebeu o quanto seria importante professores da rede municipal terem aulas de tendências em educação. A ideia foi comprada pela Prefeitura e hoje 30 professores de 14 escolas do município fazem parte do projeto, que termina no dia 21 de novembro deste ano. Os conteúdos desenvolvidos serão filmados para serem transmitidos para os demais professores.

Conforme Natália Torres Amaral, gerente do Projeto Usina, as principais tendências que os participantes estão trabalhando são: a personalização, focada nos talentos e interesses individuais; a descentralização, em que o professor é um facilitador e não o único detentor do conhecimento; a experiência, com o aprendizado embasado em vivências, com o aluno “botando a mão na massa”; o storytelling, que usa narrativas para a transmissão de conteúdos; a tecnologia, em que são apresentadas novas ferramentas para sala de aula; a gameficação, o ensino através da lógica de jogos; o currículo criativo, que lança mão da interdisciplinaridade para conectar os saberes; e a escola + vida, na qual se trabalha questões que são importantes para todas as esferas do cotidiano e de relacionamento com outras pessoas.

Intervenção urbana do projeto Cuidar de Quem Cuida da Educação: inovação social e qualidade de vida nas cidades

Foto: Igor Sperotto

Intervenção urbana do projeto Cuidar de Quem Cuida da Educação: inovação social e qualidade de vida nas cidades

Foto: Igor Sperotto

INOVAÇÃO – Outra iniciativa de jovens que se sentem incomodados com os rumos da educação foi a Expedição Liberdade, projeto que foi financiado pelo Catarse e viabilizou que fossem conhecidas nove escolas “fora da caixa”. Um dos participantes da empreitada, o sociólogo Eduardo Cuducos, que atualmente está cursando um doutorado em Londres,
acredita que a educação precisa proporcionar mais práticas para a promoção da autonomia, da autoconfiança e da criatividade. “Quanto mais trabalhos em projetos que partam do interesse dos alunos, mais interessante fica a passagem de conteúdos”, constata. Como exemplo, ele cita a montagem de uma gincana. Em vez de dar todas as regras a serem cumpridas, a instituição de ensino deveria fortalecer a participação dos estudantes, através da colaboração deles com todo processo, desde a confecção de cartazes, tabelas de pontuação e objetivos a serem alcançados. Dessa forma, justifica Cuducos, “o professor deixa de ser o que obriga o aluno a aprender e passa ser o porto seguro, para solucionar dúvidas”.

Cabral, um dos idealizadores do Estaleiro e da Casa Liberdade

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Cabral, um dos idealizadores do Estaleiro e da Casa Liberdade

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Uma casa para exercer a liberdade
A Casa Liberdade é um espaço colaborativo, mantido pelos frequentadores, que funciona como centro de interconexões de saberes a aprendizados. O prédio, uma obra-prima da arquitetura contemporânea, abriga ambientes para realização de cursos, encontros, coworking, vendas, trocas e também para incubar negócios. O local já foi ocupado por empresas como o próprio Catarse, a Engage, a Semente Negócios e muitos outros.

Lá funciona o Estaleiro Liberdade, onde se desperta o autoconhecimento e o empreendedorismo para a vida. Felipe Cabral, um dos idealizadores do Estaleiro e da Casa, diz que a ideia é despertar a autonomia dos participantes. “Tratar as pessoas como adultos que são”, explica. Ele bebeu da fonte de Ricardo Semler, que ganhou projeção no mundo empresarial ao fazer da sua companhia, a Semco, um laboratório de experiências em democracia na gestão de negócios; e de Andy Law, que escreveu A empresa criativa. Uma das características do pessoal que gerou o espaço é que a maioria jogava RPG, um game em que cada um encarna um personagem com alto nível de customização, durante a adolescência.

Casa Liberdade: espaço de viabilidade

Foto: Igor Sperotto

Casa Liberdade: espaço de viabilidade

Foto: Igor Sperotto

A partir da Liberdade de Porto Alegre, outras casas com propostas semelhantes surgiram no Brasil, como a Catete 92, no Rio de Janeiro, e a Laboriosa 89, em São Paulo. Todas elas têm o nome da rua onde ficam. A ideia não é criar uma marca para a proposta. “A casa não quer visibilidade, mas sim viabilidade para o que as pessoas fazem nela”, sintetiza Augusto Gutierrez, um dos frequentadores desses espaços, onde já se vive a transição para uma nova economia, mais colaborativa e criativa.

Para ir além

Blog do Estaleiro Liberdade com textos sobre a Expedição Liberdade
Reportagem sobre a Expedição Liberdade
Informações sobre a Casa Liberdade
Estaleiro Liberdade
TransLab – Laboratório Cidadão

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