EDUCAÇÃO

Os primeiros da família com curso superior

Por Gilson Camargo / Publicado em 12 de maio de 2016
Os primeiros da família com curso superior

Foto: Igor Sperotto

Aline Silveira, estudante de Jornalismo na Ufrgs, é a primeira da família a ter acesso ao ensino superior e sempre contou com o apoio da mãe e dos quatro irmãos

Foto: Igor Sperotto

Ações afirmativas mudaram o perfil do ensino superior nas instituições públicas e privadas no período de uma década, elevando o acesso, de 2,7 milhões para 7,8 milhões de estudantes, e o percentual de jovens de baixa renda, de 1,4% para 7,2%. Iniciativas como a Lei de Cotas alteram uma lógica histórica de exclusão: mais de um terço dos estudantes com renda inferior a 4,5 salários mínimos que concluíram curso superior são os primeiros das suas famílias a chegar à universidade.

A democratização do acesso ao ensino superior está fazendo com que muitas famílias passem a ter um referencial que não existia até o começo da década passada, quando a universidade, por seus mecanismos de seleção, privilegiava estudantes oriundos de estratos sociais com maior renda. De acordo com o Ministério da Educação (MEC), mais de um terço dos estudantes que concluíram cursos superiores em 2014 são os primeiros da família a entrar em uma instituição de ensino superior. “Hoje, 35% dos estudantes que fizeram o Enade são os primeiros das suas famílias. Sei o quanto era difícil negros chegarem a universidades, e estamos mudando as relações entre as gerações. As atuais vão formar seus filhos com outras oportunidades, que seus pais não puderam ofertar”, projetou o ministro da Educação, Aloísio Mercadante, ao lançar no começo de abril o portal interativo A hora do Enem. “As ações afirmativas incidem sobre a construção de um referencial de ensino superior dentro das famílias”, reforça Edilson Nabarro, diretor do Departamento dos Programas de Acesso e Permanência e vice-coordenador de Ações Afirmativas (CAF), da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs).

Sancionada em agosto de 2012, a principal política pública de acesso ao ensino superior, a Lei 12.711, reserva, de forma progressiva, matrículas por curso e turno nas 59 universidades federais e 38 institutos federais de educação, ciência e tecnologia a alunos oriundos integralmente do ensino médio público, em cursos regulares ou da educação de jovens e adultos. A partir deste ano, a Lei de Cotas estabelece a reserva de 50% das vagas para as ações afirmativas e 50% para a ampla concorrência. Com a implantação total da exigência da legislação, a Ufrgs, por exemplo, receberá por ano mais de 2,8 mil estudantes oriundos do sistema público de ensino.

DESEMPENHO – Ao contrário do que muitas pessoas sustentavam, o desempenho dos alunos cotistas não se mostrou inferior ao dos demais, assegura Edilson Nabarro, do programa de Ações Afirmativas (CAF), da Ufrgs. “Setores conservadores alimentaram mitos em torno das políticas públicas que precisam ser esclarecidos, pois só servem para reforçar o preconceito e a discriminação contra os estudantes atingidos por essas ações afirmativas”. Os indicadores de evasão, desempenho e retenção obtidos desde 2008 pela CAF, afirma, indicam que a evasão de cotistas autodeclarados negros é inferior à de estudantes que ingressaram pelo ensino público. O principal fator da evasão, segundo o estudo, são as características e exigências de cada curso. “As cotas apenas colocam em evidência os problemas que sempre existiram e que têm a ver com cada área. O cotista qualifica cada vez mais a universidade, basta consultar os rankings”, argumenta.

Referencial para os mais jovens

Aline Silveira, de Eldorado do Sul, no Rio Grande do Sul, é a primeira da família a ter acesso ao ensino superior e sempre contou com o apoio da mãe e dos quatro irmãos. Está cursando o sexto semestre do curso de Jornalismo na Ufrgs, ao qual teve acesso por meio do sistema de cotas, após concluir o curso de História, na Universidade Luterana do Brasil (Ulbra), em Canoas, por meio do Enem. “Cursar Jornalismo sempre foi o meu sonho. A graduação em História serviu de bagagem, pois os dois cursos são complementares”, observa. Para Aline, as políticas afirmativas tornaram a universidade inclusiva. “Não tenho dúvidas disso, mas em certos aspectos, a dinâmica ainda é incompatível com a realidade do estudante que elas querem incluir”. Ela conta que, na Ufrgs, já no primeiro semestre começaram as dificuldades, com disciplinas de manhã, à tarde e à noite, que a obrigaram a deixar o emprego. Recorreu à bolsa de custeio acadêmico. Ironicamente, não pode ter acesso aos benefícios por já ter feito uma graduação. Outra dificuldade é o preconceito. Com o tempo, diz, os colegas e professores passam a respeitar, “mas no início acham que o cotista, por ser negro e por ser cotista, é intelectualmente inferior”. Aline diz que em sala de aula nunca ouviu piadas racistas, mas se sentia desconfortável por ser a única negra da turma: “sentia que ali não era meu lugar”. Ainda hoje, confidencia, se percebe sozinha e isolada do restante da turma.

Ser a primeira da família a ter acesso ao ensino superior, para ela, tem muitos significados em termos de realização pessoal e perspectiva profissional. Ela se vê como um referencial para os mais jovens da família: “agora minha sobrinha entrou na Psicologia da PUCRS”.

Os primeiros da família com curso superior

Foto: Igor Sperotto

Lucíola, supervisora da Secretaria Especial de Saúde Indígena

Foto: Igor Sperotto

A médica kaingang

Descendente de kaingangs, Lucíola Maria Inácio Belfort, 39 anos, da aldeia Serrinha, no Norte do estado, é a primeira indígena a se formar em Medicina na Ufrgs desde a implantação da Política de Ações Afirmativas da instituição. “O sentimento é de superação. As experiências, as boas e as ruins, as manifestações de preconceito, só me fizeram amadurecer. E me sinto uma vencedora por ter ido até o fim do curso. Hoje tenho a certeza que cada um de nós deve fazer a diferença, provar que é capaz. As ações afirmativas abriram as portas das universidades para os jovens nas aldeias. Antes não tínhamos como disputar vaga numa federal”.

Lucíola, que é médica supervisora na Secretaria Especial de Saúde Indígena, do Ministério da Saúde, já havia se formado em Enfermagem pela Unijuí com bolsa integral por meio de convênio entre a Funai e o Ministério da Educação (MEC) e trabalhou em aldeias indígenas no Mato Grosso e no interior do Rio Grande do Sul. “Nesse período, percebi uma grande carência de profissionais médicos nesses locais. E também, eu não me sentia completa, a Medicina é um sonho que sempre mantive, então fui atrás disso”. Lucíola é a quarta indígena a se formar na Ufrgs, que todos os anos abre processo seletivo específico via vestibular para descendentes de indígenas, além da reserva de vagas via Lei de Cotas. Em 2012, Denize Letícia Marcolino concluiu a graduação em Enfermagem, e, em 2014, João Anilton e Dorvalino Cardoso se formaram, respectivamente, em Direito e Pedagogia.

Estudantes que trabalham são maioria

Cerca de 65% dos estudantes que concluíram cursos superiores em 2014 têm renda familiar de até R$ 3.546 por mês. Mais de 64% dos universitários trabalham regularmente, e pelo menos 39% cumprem carga horária de 40 horas semanais. Dos universitários que recebem alguma forma de incentivo, como bolsas ou financiamento, metade é de incentivo do governo federal, a partir do ProUni e do Fies. Dos beneficiados pelo governo, 56% têm renda familiar de até três salários mínimos e 36% ingressaram por meio de políticas afirmativas, como, por exemplo, as cotas raciais e sociais.

Franciele de Macedo, 20 anos, foi a primeira de quatro irmãos a ter acesso ao ensino superior. A mãe trabalha como diarista e o pai é aposentado. Ela trabalha meio turno como secretária em um consultório médico e cursa o segundo semestre de Pedagogia na Ufrgs. O irmão de 17 anos está terminando o ensino médio e também pretende ir para a universidade. “Sempre tivemos interesse na universidade pública devido à qualidade do ensino e à gratuidade, e as polí- ticas de acesso mudaram muito essa realidade. Achei que nunca conseguiria entrar na Ufrgs, mas com força de vontade e apoio dos familiares tudo se torna possível né? Fazia pré-vestibular de manhã e ia direto para o serviço, sábados e domingos ficava encerrada no apartamento, estudando”, relata.

Os primeiros da família com curso superior

Foto: Igor Sperotto

Franciele, primeira de quatro irmãos a entrar para a universidade

Foto: Igor Sperotto

DEMOCRATIZAÇÃO – De acordo com a Síntese de Indicadores Sociais (SIS) de 2015 do IBGE, 58,5% dos estudantes do país na faixa etária de 18 a 24 anos estavam na faculdade em 2014. Dez anos antes, em 2004, o percentual de jovens com esse perfil era de 32,9%. Os dados do IBGE foram calculados com base no número de estudantes e não no número de jovens. A alta no percentual de estudantes cursando nível superior foi registrada em todas as regiões. Na região Sul, a evolução na década é de 50,5% para 72,2% e, na região Norte, de 17,6% para 40,2%. Outra evidência da democratização no acesso ao ensino superior, segundo IBGE: em 2004, na rede pública, 1,2% dos estudantes de nível superior pertenciam ao quinto mais pobre de rendimento domiciliar per capita, passando a 7,6% em 2014.

Na rede privada, evoluiu de 0,6 para 3,4%. “Em relação ao ensino superior, permaneceu a tendência de democratização no acesso às duas redes, fazendo com que os estudantes provenientes dos estratos de renda com menores rendimentos ampliassem sua participação, enquanto os estudantes pertencentes ao quinto com maiores rendimentos se tornassem menos representativos no total”, conclui o documento.

Entrar na universidade era uma prerrogativa dos mais ricos até 2004, especialmente nas universidades públicas. Naquele ano, de acordo com a Síntese anterior, uma parcela de 20% de estudantes filhos de famílias com renda acima de 4,5 salários mínimos representava 55% dos universitários da rede pública e 68,9% da rede particular. Nove anos depois, essas proporções caíram para 38,8% e 43%, respectivamente, e os 20% mais pobres, que representavam 1,7% dos universitários da rede pública, chegassem a 7,2%. Os dados constam da Síntese de Indicadores Sociais (SIS), do IBGE. Na rede privada, a presença dos mais pobres mais do que dobrou, saltando de 1,3% para 3,7%. A proporção de estudantes de 18 a 24 anos na universidade passou de 32,9% em 2004 para 55% em 2013. A escolaridade média da população com idades acima dos 25 anos aumentou entre 2004 e 2013, passando de 6,4 para 7,7 anos de estudo – e de forma mais acentuada entre os 20% com menor renda, que elevaram de 3,7 para 5,4 os seus anos de estudo.

Além do contexto favorável à ampliação do acesso ao ensino superior, proporcionado pelo aumento do nível educacional da população e pelas melhorias nas condições econômicas das famílias que liberam jovens para seguirem estudando ao invés de se dedicarem exclusivamente ao trabalho, a democratização do acesso ao ensino superior foi estimulada por uma série de políticas públicas. Essas políticas vão desde o aumento das reservas de vagas nas instituições públicas direcionadas aos alunos de diferentes perfis (portador de deficiência, procedente de escola pública, com baixa renda familiar, etnias especí- ficas etc.) até o aumento do financiamento estudantil reembolsável como o Fies e não reembolsável como o ProUni, disponível aos alunos das instituições privadas.

 

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