Foto: Igor Sperotto
Foto: Igor Sperotto
Com origem na política partidária e em setores conservadores, o projeto Escola Sem Partido, que também é chamada de Lei da Mordaça, avança perigosamente nos legislativos do país. Vários projetos de lei tramitam em âmbito federal, estadual e municipal para implantá-lo. Um movimento de resistência em defesa da autonomia docente também surge para tentar frear esse avanço, o Escola Sem Mordaça, que igualmente vem se estruturando nacionalmente, mas que encontra obstáculos em segmentos poderosos que apoiam a onda de conservadorismo no qual o tema está inserido.
Motivados por uma onda conservadora que atravessa o país, os idealizadores do projeto de lei que prevê restrições à liberdade de cátedra dos professores – conhecida como Escola Sem Partido – tomaram a dianteira no processo de silenciar as salas de aula: pelo menos 11 estados brasileiros já receberam projetos legislativos limitando a atividade docente, além dos dois que tramitam em nível federal – um na Câmara dos Deputados e outro no Senado. Em que pese o tom claramente inconstitucional das propostas, o que os autores da ofensiva pretendem é vencer a batalha da comunicação ao transformarem a ideia numa reivindicação nacional.
Os autores dos projetos são invariavelmente ligados a legendas políticas conservadoras – vários deles são de bancadas evangélicas, como em Pernambuco, Ceará e Distrito Federal (veja quadro). No Espírito Santo e em Goiás os projetos foram arquivados, mas seus autores articulam para apresentar novas propostas a partir do início de 2017. Em Alagoas o projeto foi aprovado pela Assembleia Legislativa, vetado pelo governador e novamente acolhido pelos deputados. O STF analisa uma ação direta de inconstitucionalidade relativa à decisão.
O coordenador nacional do movimento Escola Sem Mordaça, Fernando Penna, faz um mea culpa em relação à falta de oposição que os defensores de censura à atividade docente tiveram em dez anos de atividade. “A ação desses grupos começou em 2004 e nos dez anos seguintes praticamente não teve contraponto algum de nossa parte. Isso causou um prejuízo imenso à liberdade de cátedra, hoje claramente ameaçada por essas propostas esdrúxulas”, avalia Penna, que é pesquisador da Universidade Federal Fluminense (UFF).
A Escola Sem Partido se inspirou numa iniciativa norte-americana chamada de No Indocrination (Não à Doutrinação), que era um site de denúncias sobre atividades docentes consideradas inadequadas. O site nem existe mais, assim como a mobilização de pais norte-americanos em torno do tema, mas o advogado paulista Miguel Nagib gostou da ideia e em 2004 lançou o movimento no Brasil. O grupo criou uma associação civil em 2014 apenas com o objetivo de encampar a defesa legislativa da proposta, cujo primeiro projeto foi apresentado pelo deputado Flávio Bolsonaro (PSC) na Assembleia do Rio de Janeiro.
O episódio que provocou a fúria de Nagib foi a comparação feita por um professor de sua filha entre Che Guevara e São Francisco de Assis: ambos abriram mão de valores pessoais em nome de uma ideologia. Política, no primeiro caso; religiosa, no segundo. Ligado ao Instituto Millenium, de inspiração liberal, e católico praticante com ramificações na organização Tradição, Família e Propriedade (TFP), o advogado é procurador do estado de São Paulo.
Foto: Lucio Bernardo Jr. / Câmara dos Deputados
Segundo Penna, a ação do advogado na coordenação de mais de uma centena de sites e blogues que monitoram diariamente as atividades docentes é extremamente danosa e coloca em risco o papel da escola na formação da cidadania. “Não há exemplo algum de legislação desse tipo em outros países. Nem na ditadura militar brasileira se investiu em mecanismos legais para coagir o professor a não abordar certos temas em sala de aula. É uma aberração perigosa”, afirma.
Resistência e contraponto a grupos poderosos
No Rio Grande do Sul, um grupo de educadores criou em julho a Frente Gaúcha Escola Sem Mordaça – contraponto institucional às tentativas de implantar restrições ao trabalho docente em âmbito estadual. A coordenadora do grupo e professora da Faculdade de Educação da Ufrgs, Russel da Rosa, entende que a aprovação do projeto inviabilizará o trabalho docente em sala de aula. “Estamos falando de fundamentalismo religioso. Um professor de Ciências, por exemplo, não poderá mencionar as teorias evolucionistas em sala de aula se isso for considerado ofensivo pelos pais dos alunos”, compara.
Foto: Álvaro Andrade/Arquivo ECTV/reprodução
A Frente tem como objetivo criar uma rede de solidariedade, ação e resistência contra os projetos que pretendem limitar a liberdade de cátedra dos professores. No Rio Grande do Sul, uma proposta dessa natureza foi apresentada pelo deputado Marcel Van Hattem (PP) – projeto idêntico tramita na Câmara dos Vereadores de autoria de Valter Nagelstein (PMDB).
O vice-presidente da Associação dos Docentes da Ufrgs (Adurgs), Lúcio Olímpio de Carvalho Vieira, alerta que o enfrentamento não será fácil devido à influência dos adeptos da Escola Sem Partido junto a camadas sociais desinformadas. “É um movimento que representa a ideia de um grupo bastante poderoso. Vamos ter de fazer esse enfrentamento na sociedade para impedir que o discurso fácil da denúncia de eventuais abusos se torne um discurso encampado pela sociedade, que vem sendo enganada por esse discurso”, afirma.
Ele ainda defende que os partidos dos parlamentares que apresentaram leis nesse sentido também devem ser procurados e convocados a aderir à mobilização por uma escola sem mordaça. “Nós temos que mostrar para esses partidos que essa proposta não é condizente, inclusive, com os seus princípios, que se dizem democráticos”, ponderou.
Arte: Bold Comunicação
Arte: Bold Comunicação
Quem são os líderes
Miguel Francisco Urbano Nagib – advogado e procurador nível V do Estado de São Paulo, Nagib é o criador e coordenador nacional do Programa Escola Sem Partido. Em junho do ano passado, registrou uma microempresa com esse nome em Brasília para treinamento em desenvolvimento profissional e gerencial. Também criou, em outubro de 2015, a Associação Escola Sem Partido cuja função é a defesa de direitos sociais. A sede da associação é na sua casa, num endereço nobre de Brasília. Também é sócio do escritório de advogados Sérgio Bermudes, com sede no Rio de Janeiro.
Beatriz Kicis – procuradora aposentada do Ministério Público do Distrito Federal, é militante do grupo de ultradireita Revoltados Online. Integrou-se ao grupo da Escola Sem Partido em 2015, tem uma forte militância nas redes sociais e no Youtube. Foi uma das articuladoras da ida do ator pornô Alexandre Frota ao Ministério da Educação em maio de 2016, depois do afastamento da ex-presidente Dilma Rousseff.
Foto:Luis Macedo Câmara dos Deputados
Izalci Lucas – deputado federal pelo PSDB do Distrito Federal, é autor do PL 867/2015 que inclui o Programa Escola Sem Partido entre as diretrizes da LDB. Foi dono de escola na cidade-satélite do Guará, a 40 quilômetros de Brasília. Preside a comissão especial que analisa o conteúdo da MP 746, que prevê a reforma do ensino médio no país. Acumula denúncias e pedidos de condenação na Justiça: no STF, é réu da Justiça eleitoral por ter omitido uma doação de R$ 300 mil na campanha à Câmara Distrital de 2006. Também é investigado criminalmente no Ministério Público do DF pelo sumiço de mercadorias apreendidas pela Receita Federal quando era secretário de Ciência e Tecnologia do Distrito Federal, entre 2007 e 2010.
Magno Malta – senador pelo PR do Espírito Santo, é pastor e um dos mais destacados integrantes da Bancada Evangélica – que, entre outras coisas, se opõe à criminalização dos crimes de homofobia e transfobia. Teve seu nome envolvido em vários escândalos em nível nacional, entre eles o desvio de recursos destinados à compra de ambulâncias (2007) e superfaturamento de obras no Ministério dos Transportes (2011). É autor do PLS 193/2016 que também inclui o Programa Sem Partido entre as diretrizes da LDB.
MP do ensino médio é outra ameaça
O ensino médio brasileiro também corre o risco de ser atropelado pela onda conservadora do país. A Medida Provisória (MP) 746, enviada pelo governo ao Congresso no final de setembro, é uma bomba-relógio programada para explodir na abertura do ano letivo de 2017, em fevereiro.
O Ministério da Educação (MEC) fala em “articulação” de disciplinas entre várias áreas de conhecimento; os especialistas em educação têm outra opinião: a reforma proposta pelo presidente Michel Temer, que prevê uma flexibilização radical no currículo das escolas, é “nociva” e “precipitada”.
Entre outras medidas, a MP restringe a obrigatoriedade do ensino da Arte e da Educação Física ao ensino fundamental (primeiros noves anos) e divide a formação em cinco grandes áreas: Linguagens, Matemática, Ciências humanas, Ciências da natureza e Ensino técnico. Apenas Matemática e Português serão disciplinas obrigatórias. Outras matérias dependerão da oferta de cada escola – por isso a preocupação dos especialistas com o ensino público.
A presidente do Cpers/Sindicato, Helenir Schürer, adverte que a Medida Provisória desconsidera o trabalhador que quer estudar porque não prevê alternativa de horário para o aumento progressivo da carga curricular. “Quando se menciona a implantação do turno integral, quem estuda à noite sequer é lembrado. Simplesmente não existe”, critica.
No meio estudantil, a MP 746 vem sendo tratada com rigor. A chamada “Primavera Secundarista”, que teve origem no Paraná, já ocupa perto de 1.200 escolas em todo o país, segundo dados divulgados pela União Nacional dos Estudantes (UNE) no dia 26 de outubro.
Na Ufrgs, até o dia 1º de novembro, 20 cursos foram ocupados por centenas de alunos em protesto também pela aprovação da PEC 241 – que congela os gastos públicos por 20 anos – e também contra o avanço da Escola Sem Partido.