Novas tecnologias demandam alfabetização para mídia e informação
Foto: Igor Sperotto
O Analfabetismo Midiático e Informacional (AMI) ou a dificuldade de entender e refletir de forma profunda e crítica sobre as informações e a forma como atua a mídia, por vezes manipulando dados, imagens e palavras a favor dos interesses de alguns, tem influenciado a forma como a sociedade recebe e produz informação e conhecimento, inclusive nas escolas. A Unesco quer capacitar professores e estudantes para acabar com esse analfabetismo
Como se produz uma informação? Que fontes são confiáveis? Como os professores e professoras podem usar as novas tecnologias de informação e comunicação para incentivar a compreensão da mídia de forma crítica e incorporá-la ao processo de produção de conteúdo e conhecimento? A Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) desenvolveu um projeto para capacitar mestres e estudantes. Alfabetização midiática e informacional: currículo para formação de professores está disponível aqui. De acordo com a publicação da ONU, a Alfabetização Midiática e Informacional (AMI) empodera cidadãos e cidadãs para compreenderem as funções da mídia e de outros provedores de informação, avaliarem criticamente seus conteúdos e incentiva usuários e produtores de informação e de conteúdos de mídia a tomarem decisões com base nas informações disponíveis.
“Com a Internet mais acessível, a educação começou, primeiro, a se interessar pelo uso das novas tecnologias para o ensino a distância. Depois elas passaram a ser usadas em sala de aula, no processo do ensino-aprendizagem, e aí surgiram desafios”, explica Adauto Soares, coordenador de Comunicação e Informação da Unesco no Brasil. Antigamente, para fazer uma pesquisa, estudantes consultavam livros na biblioteca ou a enciclopédia e complementavam com recortes de jornais e revistas. Hoje, pesquisam para um trabalho de aula na mesma plataforma da internet de onde se tiram informações para produzir notícias e em que fazem uma nota convidando alguém para um evento na escola. O alcance também é diferente. Até pouco tempo, faziam fanzines na escola e as publicações ficavam restritas à divulgação local – havia, portanto, um controle de até onde chegava. Atualmente, falta orientação aos jovens sobre a amplitude do que é publicado em uma rede social. Aí estão os riscos, avalia Soares: “Os jovens que mais se interessam pelas novas tecnologias são também possíveis vítimas das redes sociais se não tiverem conhecimento do que é ético, do que pode ou não ser feito”, alerta o coordenador.
A Unesco está preocupada sobretudo com o cyberbullying, os radicalismos e o culto à cultura do ódio. “Você pode estar trafegando um conteúdo eticamente condenado, com português mal-escrito e informações que não condizem com a verdade”, exemplifica. A mesma coisa acontece quando alguém faz uma pesquisa. O aluno apresenta um dado e o professor tem que perguntar: de onde você tirou? “É muito importante, sobretudo no âmbito da educação, que as fontes de pesquisa sejam certificadas”, enfatiza. “O uso das novas tecnologias requer uma aproximação das grandes fontes de informação que devem estar na rede, que são as bases de informação das bibliotecas públicas e privadas, dos museus e dos arquivos públicos”. A AMI promove um esforço mundial para modernizar essas bases de informação, junto com um trabalho na área de mídia de formação dos alunos para identificarem o tipo de informação que recebem, e aprenderem e desenvolverem a produção, como acontecia com o fanzine e com o jornal da escola antigamente.
“A alfabetização midiática e informacional é urgente e para todos e quanto mais cedo tiver início, melhor. Teremos maior possibilidade de adultos ativos no seu real histórico”, afirma Raquel Paiva, professora da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, coordenadora do Laboratório de Estudos em Comunicação Comunitária. “As redes sociais e a presença nelas deram aos “analfabetos funcionais midiáticos” a impressão de participação cidadã. As pessoas acreditam estar dando sua opinião, mas bastam rudimentares conhecimentos sobre o funcionamento do sistema para se reconhecer o quanto são produzidos ambientes de repetição”, observa. “Ampliar os acessos e sair das ‘bolhas’: só assim estaremos de fato executando toda a capacidade que as novas tecnologias podem oferecer”, afirma a professora.
Foto: Unesco/ Divulgação
O que há por trás das notícias e quem manda na mídia
O analfabetismo midiático e informacional colaborou, por exemplo, no processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff no Brasil e para a eleição do presidente norte-americano Donald Trump, acredita a professora Raquel Paiva. “Temos uma democracia binária consolidada no sim e no não, uma construção de argumentação facilitada, forjada em ideias de fácil deglutição”, diz. Segundo a professora, há uma dificuldade argumentativa, e a repetição de fórmulas fáceis, quando repetidas inúmeras vezes, vão compondo a estrutura “massificada” do pensamento atual.
Por isso, é preciso entender como funciona a mídia. No Brasil, a principal ameaça ao direito à informação de qualidade é a concentração do setor de comunicação, alerta Ana Claudia Mielke, coordenadora executiva do Intervozes Coletivo Brasil de Comunicação Social. Pouca gente sabe que TVs e rádios abertas são concessões públicas e que, portanto, deveriam atuar a serviço dos interesses da população, e não de grupos econômicos. Desde 2003 o Intervozes tem incentivado a formação para a leitura crítica da mídia no âmbito comunitário, das organizações da sociedade civil, e de forma transversal também no âmbito da escolarização formal justamente para chamar a atenção de como se produzem notícias em meios de comunicação sob o controle de poucos grupos econômicos ou de políticos que decidem o que é lido, ouvido ou assistido em todo o território.
O trabalho da organização ajuda a desvendar quem são os donos da mídia e como se comportam, denunciando as violações de direitos. Ana lembra que a Constituição Federal de 1988 define no artigo 220 que as concessões públicas de rádio e TV não podem ser objeto de monopólio ou oligopólio de nenhum tipo. Mas tanto a Constituição quanto o Decreto nº 237/1967, que estipula o limite máximo para número de concessões, têm sido burlados pelo registro da outorga em nomes de familiares ou laranjas (pessoas que emprestam seus nomes e documentos para que outras façam negociações, geralmente ilícitas).
Há outras ameaças em andamento. “O Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014) vem sofrendo ataques que poderão levar à violação de direitos do usuário à privacidade na rede e à censura a conteúdos e coleta de dados de usuários sem ordem judicial”, alerta. O aumento da venda de horários da programação para grupos religiosos, em arrendamentos ilegais da grade da programação da TV e rádios abertas, já denunciado pelo Ministério Público Federal (MPF), e a Medida Provisória 744 que, entre outras coisas, acabou com o caráter público da Empresa Brasileira de Comunicação (EBC) ao extinguir o Conselho Curador que garantia a participação social nos rumos da empresa, também preocupam o Intervozes. “Entendemos que não é possível produzir informação de qualidade numa sociedade que se limita ao sistema privado/comercial, que visa exclusivamente ao lucro. A concorrência ou a complementaridade com outros tipos de comunicação é essencial ao direito à comunicação e à democracia”, observa Ana.
Para coletar violações que ocorrem em programas chamados “policialescos”, em 2016 o Intervozes lançou a Campanha Mídia Sem Violações de Direitos. A plataforma recebe denúncias feitas pela sociedade civil que são encaminhadas ao MPF, que, por sua vez, aciona o Estado para tomar providências. No Observatório do Direito à Comunicação é possível acessar notícias, artigos, análises e documentos, acompanhar a regulação dos setores de comunicação e telecomunicações e denunciar violações do direito à informação de qualidade. Veja aqui.