EDUCAÇÃO

Cresce tensão entre professores municipais e prefeitura de Porto Alegre

O impasse entre o prefeito Nelson Machezan Jr. e os professores da rede municipal pode parar na Justiça
Por Flavia Bemfica / Publicado em 24 de março de 2017
Cresce a tensão entre professores municipais e prefeitura de Porto Alegre

Foto: Silvia Fernandes - Simpa/Divulgação

Professores realizaram sua quarta assembleia no dia 23 de março

Foto: Silvia Fernandes - Simpa/Divulgação

Mesmo que na prática possa haver alguma alteração no impasse da educação da rede pública municipal de Porto Alegre, uma solução parece longe do fim. Representantes de escolas já encaminharam atas das deliberações dos conselhos escolares ao Ministério Público do RS e, de parte a parte, é crescente a possibilidade de judicialização da questão. Ontem, em sua quarta assembleia para discutir como agir frente às determinações do prefeito Nelson Marchezan Júnior (PSDB), os professores decidiram continuar seguindo os horários e práticas anteriores ao decreto que estipulou a mudança na rotina das escolas e fecharam posição pela revogação do decreto. No dia 28 haverá um ato no Paço Municipal. O Conselho Municipal de Educação emitiu parecer enfatizando que a Secretaria Municipal de Educação (Smed) abra um processo de diálogo com as comunidades escolares, mas, em manifestações públicas, o prefeito tem adotado outro caminho.

Na quarta-feira, durante palestra na Federasul, Marchezan se irritou com as perguntas dos jornalistas sobre o impasse na educação e minimizou as mudanças, voltando a apresentar dados que conselhos e professores contestam. Classificou os argumentos dos conselhos escolares sobre o fato de um dos eixos do sistema ser a ‘gestão democrática’ como “um mantra” e insistiu na chamada ‘negociação individual’ com cada escola, que aparta das tratativas movimentos ou grupos que representem o conjunto das categorias e comunidades envolvidas. “Todos os professores e diretores foram chamados para conversar individualmente. “Isso é diálogo. O resto é bagunça, é baderna.”

Marchezan não soube precisar com quantas escolas as negociações individuais estão ocorrendo. Ao longo desta semana o Extra Classe solicitou entrevista com o secretário municipal de Educação, Adriano Naves de Brito, para que a Smed pudesse apresentar os números e dados utilizados como embasamento para as mudanças e contrapor os argumentos de professores e conselhos. A assessoria de Brito comunicou que ele está com a agenda tomada por compromissos referentes ao aniversário da cidade. Via assessoria, o secretário informou que as mudanças foram adotadas a partir do conhecimento da equipe pedagógica da secretaria e que cada escola deverá fazer ajustes individualmente.

O Executivo assegura ter a prerrogativa de definir as diretrizes da Educação municipal e autonomia para tanto. Já a Associação dos Trabalhadores em Educação no Município de Porto Alegre (Atempa) argumenta que a prefeitura, com as mudanças, está descumprindo pelo menos duas leis: a lei federal 11.738/2008 (Lei do Piso), e a lei complementar municipal 292/1993 (Lei dos Conselhos Escolares). A Lei do Piso determina que “na composição da jornada de trabalho, observar-se-á o limite máximo de 2/3 (dois terços) da carga horária para o desempenho das atividades de interação com os educandos.” A Lei dos Conselhos estabelece que os mesmos “terão funções consultiva, deliberativa e fiscalizadora, constituindo-se no órgão máximo ao nível da escola.” A Smed informou que mesmo com as mudanças a lei seguirá sendo cumprida.

Pode haver corte de salários para pressionar docentes
A próxima semana tende a ser de aumento da tensão, em função do calendário. Os educadores da rede municipal recebem seus salários no último dia útil do mês e é grande a expectativa a respeito do tipo de ação do Executivo porque, em entrevistas e conversas, representantes da prefeitura têm dado destaque ao ‘ponto’.

Na Federasul, Marchezan fez referências veladas a possibilidade de que os professores possam ter descontos em função de manterem as rotinas antigas, mas não soube explicar como serão feitos. “Vamos cobrar o ponto de todos, com horário de entrada e de saída. Existe uma orientação do cidadão-patrão que diz que os professores precisam cumprir o ponto. Estabelecemos um novo horário de chegada que não é mais às 7h30min, é às 8h. O ponto será biométrico.” Informado de que não há ponto biométrico em todas as escolas, o prefeito rebateu. “As que não têm vão ter.”

“A possibilidade de descontos nos salários está sendo usada como forma de pressão para que as escolas façam adesão a nova rotina e os professores se submetam às determinações do prefeito. A Smed insiste em ignorar que as jornadas estão ligadas à rotina dos alunos”, rebate Janize Teixeira Duarte, diretora da Atempa. Pela rotina atual, os professores não ministram aulas em um dia da semana, para compensar as demais horas feitas.

Ontem a assessoria da Secretaria Municipal de Educação informou que discrepâncias no ponto serão descontadas dos salários, que o controle está sendo feito com ponto eletrônico nas escolas onde ele existe e, naquelas com ponto manual, a direção enviará os documentos e eles serão auditados pelo Departamento de Recursos Humanos da Secretaria.

A hipótese do desconto não é a primeira ação da Smed apontada como retaliação por professores. A pasta já determinou a abertura de sindicâncias em pelo menos quatro escolas para apurar a realização de manifestações em vias públicas durante horário de aula, o compartilhamento em redes sociais de imagens feitas em refeitórios e a suposta impossibilidade de estudantes ingressarem em aula após o seu início, uma vez que professores e secretaria divergem sobre o horário.

Cresce a tensão entre professores municipais e prefeitura de Porto Alegre

Silvia Fernandes - Simpa/Divulgação

Docentes resiste às mudanças propostas por Marchezan, que pressiona com desconto nos salários

Silvia Fernandes - Simpa/Divulgação

Mudanças ignoram rotinas das comunidades
No centro do desentendimento entre professores e Executivo está a diferença entre o planejamento dos gabinetes e a realidade das comunidades atendidas pela rede municipal. Inicialmente, a prefeitura ‘vendeu’ a alteração como algo simples, que resultaria em um maior tempo dos professores em sala de aula.

O prefeito declarou na Federasul que, com a mudança, “os alunos terão cinco dias de aula com o seu professor padrão”. Mas ontem a Smed forneceu uma informação diferente. Conforme a assessoria, “os alunos é que ficarão entre 8h e meio-dia cinco dias por semana em sala de aula. Os professores, das suas 20 horas semanais, ficarão 12 horas e meia dentro da sala de aula e terão sete horas e 15 minutos de planejamento. A parte coletiva do planejamento será na escola e a individual pode ser feita em qualquer lugar, contanto que a escola se organize.”

O Conselho Municipal de Educação (CME/Poa) e a Associação dos Trabalhadores em Educação no Município de Porto Alegre (Atempa) consideram que o objetivo é ‘puxar’ professores para outras turmas, de forma a não suprir a carência de cerca de 400 educadores que hoje existe na rede, dificultar a realização das reuniões pedagógicas, fazer com que os professores utilizem outras horas que não parte das 20 horas semanais para o planejamento das aulas e economizar na merenda. A Smed  informa que as escolas estão sendo chamadas para fazer ajustes de quadro, verificando “onde faltam e onde há professores sobrando”, e que ainda não possui os dados consolidados.

Completa o quadro a preocupação de famílias e educadores com o risco do aumento da vulnerabilidade dos alunos. Por enquanto a prefeitura não apresentou projeções ou estudos que indiquem que a mudança na rotina poderá melhorar o aprendizado ou qualificar as condições das escolas. “Qualquer um que compreenda o trabalho de um professor sabe que o planejamento das aulas exige mais de duas horas fora da escola e que as mudanças não vão melhorar o aprendizado dos alunos”, adverte a presidente do CME/Poa, Isabel Letícia de Medeiros.

Ao divulgar as mudanças, o Executivo municipal se refere ao turno da manhã, informando que as aulas de fato acontecem a partir das 8h, sendo que o horário entre 7h30min e 8h e outros períodos a partir das 11h10min seriam usados para o café da manhã e o almoço e contabilizados como hora-aula. A partir disso, estabeleceu que os docentes devem trabalhar das 8h às 12h, cinco vezes por semana. Nas quintas-feiras, entre 10h e 12h, continuarão ocorrendo as reuniões pedagógicas semanais, totalizando as 20 horas semanais previstas. No horário das reuniões, os alunos não serão mais dispensados, permanecendo na escola. A Smed não informou, contudo, como será feito na prática o atendimento aos alunos, uma vez que professores, supervisores e monitores estarão nas reuniões.

A forma como a prefeitura tratou o item horário indignou diferentes segmentos das comunidades escolares, que destacam que a questão é bem mais complexa e lembram que as escolas funcionam o dia inteiro. Conforme os dados disponibilizados pelo CME/Poa, hoje, no turno da manhã, na quase totalidade das escolas, as aulas começam às 7h30min. O café é servido entre 7h e 7h30min, mas a presença dos alunos não é tão significativa e os objetos utilizados, como canecas plásticas, não oferecem maiores riscos aos estudantes. Os professores ministram aulas das 7h30min às 12h pela manhã e, à tarde, das 13h às 17h30min ou das 13h30min às 18h, conforme a escola, quatro vezes por semana (nas quintas duas horas são para as reuniões pedagógicas). Com isso, totalizam 18 horas de trabalho na escola. As duas horas restantes utilizam para o planejamento das aulas fora da escola. Com isso, não ministram aula uma vez por semana, sendo cobertos por substitutos ou volantes. O fato de o Executivo diminuir os períodos de aula dos atuais 50 minutos para 45 minutos e argumentar que os professores passarão mais tempo com os alunos, ou de tratar o dia que os professores não vão a escola como uma espécie de ‘folga’ acirrou ainda mais os ânimos.

As divergências cresceram em relação ao horário do almoço. De novo, pais e professores assinalam que é impossível colocar todas as turmas no refeitório no mesmo horário, não só em função do espaço, mas, principalmente, pelo que apontam como risco evidente de casos de violência e abuso. Pela rotina atual, conforme os dados do Conselho Municipal, os professores acompanham no almoço, onde há objetos como garfos, facas e pratos de vidro, alunos de Educação Infantil e anos iniciais do Ensino Fundamental, com adaptações de horários em cada escola. Cada turma usa cerca de 20 minutos para a refeição. E estudantes do 6º ao 9º ano do Ensino Fundamental almoçam sem os professores e fora das 4h30min de aula. “Temos hoje na rede municipal crianças de quatro anos de idade que frequentam a escola comum e não a rede da Educação Infantil. E temos jovens de 17 anos. Acho que isso resume a situação”, afirma a presidente do CME/Poa, Isabel Letícia de Medeiros. Ontem a assessoria da Smed informou que a secretaria não está determinando que as crianças fiquem desacompanhadas, que tudo depende das escolas e que “os professores não precisam entrar todos às 8h e nem sair todos ao meio-dia.”

Mudanças preocupam pais de alunos

Gabriela Gimenez é representante de pais no Conselho Escolar da Escola Municipal de Ensino Fundamental Anísio Teixeira e concedeu entrevista ao Extra Classe.

Extra Classe – Por que a senhora é contra as mudanças na rotina das escolas? 
Gabriela Gimenez – Sou representante dos pais no conselho da nossa escola, vou direto nas reuniões, tenho duas filhas, e uma delas é especial. Tem muitas crianças de inclusão na nossa escola. Essas mudanças são uma grande preocupação para os pais.

EC – Por quê?
Gabriela –  Porque ninguém da comunidade está feliz em deixar crianças de seis anos e 17 anos no refeitório todas juntas. Os pais não tem como ficar tranquilos. Há um alto índice de problemas econômicos e de segurança. Tem violência, criminalidade, tem tráfico na porta. De onde que eles querem que as crianças fiquem sozinhas. Isso não existe sabe. O que vai acontecer? Eles vão sofrer abuso? Vão ser agredidos verbalmente? Vão apanhar? Vão se matar? Eu falo por mim e pelos outros pais porque é muito triste. A gente sabe que tem violência. Olha o caso daquela menina que foi morta na escola.

EC – Conforme a Smed as mudanças farão com que os professores permaneçam mais tempo em sala de aula com os alunos.
Gabriela – Ah, sim, eles dizem que melhora a educação. Acho que a gente precisa de mais educação também para votar em políticos que não deveriam estar onde estão. Vão é colocar nossas crianças em perigo. Eles falam em foco, mas não é verdade. Vão é tirar tudo das nossas crianças. Não tem como elas ficarem sozinhas. Se isso acontecer a educação vai ficar mais fraca e não mais forte. A gente queria que o prefeito ficasse um dia inteiro na escola, acompanhando a realidade. Isso pra gente é foco na educação e na proteção das crianças.

EC – Quais as sugestões dos pais?
Gabriela – Olha, hoje por exemplo, falta professor de Artes, de Educação Física, de Filosofia, e os professores que tem, eles se viram para ajudar. Acho que o prefeito não imagina como é. Não sei se ele tem filhos. Mas, se tem, não deve estar na nossa rede né? Para nós a prefeitura tinha que solucionar e não fazer o que está fazendo. Por que eles não mandam professores? Se eles garantissem que terão mais professores para cuidar das crianças nesses horários, mas não é isso. Também não dá para entender que eles não entendam que, além do perigo, as crianças não cabem no refeitório todas na mesma hora. E as crianças de inclusão então, como vai ser? Crianças em cadeiras de rodas, o prefeito vem cuidar?

Entenda o caso
Em 22 de fevereiro o Executivo municipal publicou no Diário Oficial de Porto Alegre (Dopa) o Decreto 19.685/2017 cuja única determinação foi a revogação de outro decreto, o 14.521/2004. As mudanças foram comunicadas a diretores e vice-diretores das 56 escolas de Ensino Fundamental da rede municipal um dia antes, em 21 de fevereiro e, em tese, seriam implementadas a partir do início do ano letivo, em 6 de março. O decreto de 2004 regulamentava o disposto no Artigo 29 da Lei 6.151/1988. O Artigo 29 estabelece o regime normal de trabalho em 20 horas semanais, “cumpridas no exercício das atribuições próprias do cargo de Professor ou Especialista em Educação na Secretaria Municipal de Educação.” A Lei 6.151 estabelece o plano de carreira do magistério público municipal e dispõe sobre o plano de pagamento.

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