EDUCAÇÃO

A escola não respeita a identidade de gênero

Orientados pela norma heterossexual tradicional, os espaços de ensino se deixam contaminar pela transfobia, o ódio e a violência
Por Priscila Lobregatte / Publicado em 12 de julho de 2017

Foto: Elza Fiúza/ ABr

Foto: Elza Fiúza/ ABr

O país que mais mata transexuais e travestis no mundo – em oito anos, até 2016, foram 868 assassinatos no Brasil, conforme dados da ONG Transgender Europe – e no qual a expectativa de vida desta população é de apenas 35 anos, também parece ser um dos que mais excluem os transgêneros dos espaços de educação. Basta um exercício de memória para nos darmos conta do quanto é raro ver pessoas transexuais nos ambientes de ensino.

O afastamento dos jovens trans da educação é uma das faces mais cruéis das nossas desigualdades – por retirar desta população um direito humano básico – e é resultado do forte preconceito relativo às questões de identidade de gênero e orientação sexual que o Brasil ainda está longe de superar. Dados da Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transexuais (ABLGBT) mostram que 73% dos estudantes não declarados como heterossexuais já foram verbalmente agredidos na escola.

Natasha, da UNA-LGBT/RS: "Nossa educação não está preparada para a diversidade"

Foto: Igor Sperotto

Natasha, da UNA-LGBT/RS: “Nossa educação não está preparada para a diversidade”

Foto: Igor Sperotto

Pesquisa feita pelo Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs) em 2015, publicada na revista científica Sexuality Research and Social Policy, mostrou que 87% dos estudantes da universidade têm algum grau de preconceito relativo às orientações sexuais e identidades de gênero que saiam da norma heterossexual tradicional.

Vivendo à margem do processo educacional e do mercado de trabalho, 90% das pessoas trans, conforme a ABLGBT, acabam tendo de sobreviver da prostituição, situação que contribui para torná-las ainda mais expostas à violência e estigmatização.

“Nós, mulheres trans, não somos vulneráveis; nós fomos vulnerabilizadas pelo sistema. Por que muitas estão na esquina? Se a escola não as aceitou ou não as respeitou e a família não lhes deu apoio, elas foram jogadas para lá. Conheço muitas que não querem fazer programa, mas que não conseguem emprego e, por vezes, mal sabem escrever o próprio nome. Nossa educação como um todo não está preparada para a diversidade”, constata Natasha Ferreira, 29 anos, vice-presidente da UNA-LGBT/RS.

Universidades pintadas de branco

Dinâmica da universidade desconsidera identidade de gênero, diz Eric

Foto: Cris Gross/ Divulgação

Dinâmica da universidade desconsidera identidade de gênero, diz Eric

Foto: Cris Gross/ Divulgação

Natasha, que cursa o primeiro semestre de Gestão Pública em uma universidade particular gaúcha, admite: é uma exceção à regra. Mulher trans desde a adolescência, ela fez sua transição ainda no ensino médio e conta que nunca precisou fazer programa para sobreviver. Explica que tem sido reconhecida pelo seu nome social e que nunca teve problemas de discriminação nas instituições de ensino, inclusive com relação ao uso dos chamados espaços segregados por gênero. “Uso o banheiro feminino e as meninas nunca se incomodaram com isso, inclusive me pedem maquiagem emprestada”, conta. Mas, alerta: “Sou branca e de classe média alta. Se eu fosse uma travesti negra, bolsista ou cotista, já não seria a mesma coisa, sabemos que muda, porque as universidades são ‘pintadas de branco’”.

Uma resolução de 2015 do Conselho Nacional de Combate à Discriminação e Promoção dos Direitos de Lésbicas, Gays, Travestis e Transexuais garante, entre outras coisas, o uso do nome social e dos banheiros, vestiários e demais espaços segregados por gênero de acordo com a identidade de cada sujeito. Decisão do Conselho Universitário da Ufrgs de 2014 vai no mesmo sentido. Segundo a universidade, no primeiro semestre deste ano, sete alunos da graduação solicitaram o uso do nome social. A reitora da Universidade Estadual (Uergs), Arísa Araújo da Luz, afirma que todas as unidades optam pelo nome social sempre que há essa demanda e opina que o acolhimento à diversidade é uma obrigação da universidade. “As leis auxiliam, mas se não houver uma mudança de postura no sentido de se entender que somos todos humanos, e que como humanos temos o direito à felicidade e à qualidade de vida, não vai adiantar. A universidade tem de liderar esse processo de mudança no sentido de que haja compreensão e respeito, sem que nenhuma pessoa tenha de se adaptar, pois é o espaço que tem de abrigar a todos e todas sem questionamentos e sem querer impor formas de convivência”, ressalta.

Formado na Faculdade de Educação Física da Ufrgs, Eric Seger, 30, afirma que fez sua transição para a identidade masculina durante o curso. Ele diz não ter sofrido discriminação explícita, mas revela que sentia dificuldade de estar socialmente com as pessoas. “Ninguém me tratava mal, mas também não havia um lugar para eu ocupar”, explica.

Para Eric, o período da faculdade foi marcado por “muito sofrimento e mágoa”. Uma das razões, diz ele, é que a Faculdade de Educação Física tem muita relação com a questão do corpo e isso acabava entrando na equação. “Eu estava ali tendo de provar, de alguma forma, através do corpo, que eu tinha uma identidade masculina, sendo que as exigências para que isso fosse concreto tinham a ver com questões fisiológicas”, contrapõe. Ele lembra ainda que, na prática de alguns esportes, as turmas eram divididas entre homens e mulheres. “Então, tanto antes quanto depois da transição, os professores me colocavam na categoria de mulher”, lembra, um sofrimento para quem está afirmando sua identidade.

Resistindo aos retrocessos

No Rio, professores voluntários criaram curso preparatório para o Enem direcionado para travestis, transexuais, transgêneros e outras pessoas em situação de vulnerabilidade social e preconceito de gênero

Foto: Tomaz Silva/ ABr

No Rio, professores voluntários criaram curso preparatório para o Enem direcionado para travestis, transexuais, transgêneros e outras pessoas em situação de vulnerabilidade social e preconceito de gênero

Foto: Tomaz Silva/ ABr

Para mitigar este cenário de exclusão, ainda há uma série de questões a serem superadas. Uma delas no âmbito dos poderes Legislativo e Executivo em todos os níveis. A atuação ininterrupta da bancada evangélica, que vem barrando ou buscando reverter os pequenos avanços conquistados pela população trans na última década, como o uso do nome social, e os projetos de “Escolas sem Partido” – também conhecidos como “Lei da Mordaça” – são alguns exemplos.

Márcia Losada, professora da rede pública municipal e diretora da Associação dos Trabalhadores em Educação do Município de Porto Alegre (Atempa), diz que, por trás destes projetos, “está também o desejo de impedir que a gente trabalhe com as questões de gênero e identidade e com ele vem, também, a policialização, ou seja, podemos ser ‘denunciados’ pelo trabalho que estivermos fazendo, o que limita a atuação docente”.

Outro ponto, que mereceu destaque do professor do Programa de Pós-Graduação em Educação da Ufrgs Fernando Seffner, em artigo publicado na edição de maio da revista Textual (publicação semestral editada pelo Sinpro/RS), foram os planos de educação. Ele lembra que expressões como identidade de gênero e orientação sexual, “depois de estarem inseridas em muitos planos municipais e estaduais de educação – e até mesmo no Plano Nacional de Educação –, ao longo de 2015, foram objeto de uma campanha intitulada ‘Contra a ideologia de gênero’ e dali foram removidas. Tornaram a aparecer nas primeiras duas versões da Base Nacional Comum Curricular. Sumiram na terceira versão”.

O Sindicato do Ensino Privado (Sinepe/RS), que representa as instituições de ensino, defende o respeito à diversidade, mas afirma que não possui ingerência sobre as escolas. “As escolas particulares trabalham o respeito à diversidade em seus projetos, de forma transversal, ou seja, o assunto permeia os currículos e as séries, de acordo com cada faixa etária” e “têm autonomia para decidir sobre como trabalhar esses assuntos”. A Secretaria Municipal de Educação (Smed), de Porto Alegre, não retornou à  solicitação de informações. A Secretaria Estadual de Educação (Seduc) destacou em nota que a Lei estadual 11.872/2002 é aplicável ao âmbito educacional, assim como o Decreto 48.188/2011 dispõe sobre a inclusão do uso do nome social como um processo de respeito e reconhecimento às questões relativas a gênero e diversidade. Quanto ao “tratamento de pessoas transexuais e travestis no ambiente escolar, é dever do poder público, de acordo com o Decreto Estadual n° 48.188, de 27 de junho de 2011, a inclusão do nome social nos registros escolares”.

Transfobia institucional e formação docente

Celso Stefanoski, do Sinpro/RS e do CEEd/RS, reforça necessidade de formação docente e suporte das escolas no atendimento à diversidadede

Foto: Igor Sperotto

Celso Stefanoski, do Sinpro/RS e do CEEd/RS, reforça necessidade de formação docente e suporte das escolas no atendimento à diversidadede

Foto: Igor Sperotto

Na ausência de abordagens em sala de aula e de políticas públicas dirigidas ao combate à discriminação e ao respeito às diversidades, ultrapassar os obstáculos impostos pelo preconceito acaba se tornando uma experiência individual de superação. É o caso da gaúcha Marina Reidel, coordenadora-geral de Promoção de Direitos LGBT no Ministério de Direitos Humanos. Para ela, primeira mulher transexual a ter o título de mestre pela Faculdade de Educação da Ufrgs, o preconceito começa na família, passa pela escola e pelos órgãos públicos em geral. “Na infância, eu tinha medo da escola porque apanhava muito. Mas venci o medo, pensando que eu queria ser alguém melhor do que aqueles que me batiam.”

Marina fez sua transição para a identidade feminina quando tinha 30 anos e já lecionava em duas instituições de ensino. “Os alunos me recepcionaram muito bem, traziam dúvidas sobre suas próprias questões. Poderia dizer que, naquele momento, passei a ser um adulto de referência. Mas os professores mantinham uma situação de aprovação aparente, eu sentia uma transfobia institucional. A postura deles se revelava em suas falas e brincadeiras impróprias”, recorda.

Esta vivência demonstra que a própria formação docente e o apoio das escolas e das famílias são fundamentais para mudar a realidade trans, mas ainda são um grande desafio. Celso Stefanoski, do Conselho Estadual de Educação e da direção do Sindicato dos Professores do Ensino Privado do Estado (Sinpro/RS), diz que “a formação dos professores deve ser aprofundada porque muitos não estão preparados para o debate, e as escolas precisam também lhes dar suporte”. O jovem Eric Seger concorda e acrescenta: “É preciso haver maior interação entre as escolas e as famílias, mostrando que as pessoas trans não estão sozinhas”.

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