Foto: Igor Sperotto
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O uso do Exército pelo governo federal para desviar a atenção da baixa popularidade de Temer incendeia o debate sobre o verdadeiro legado do golpe de 1964. Ao dar à intervenção federal no Rio de Janeiro um caráter militar, com a nomeação de um general como interventor e o deslocamento e emprego de tropas em ações ainda pouco claras, o governo federal ressuscita um fantasma que assombra a democracia brasileira desde que se estabeleceu a República: a crença de que a sociedade civil só conseguirá se livrar de suas mazelas tutelada por lideranças militares. O mito, de que o último período de ditadura parecia ter se encarregado de enterrar, foi reavivado entre parte da população nos últimos anos, ganhando fôlego na esteira da popularidade do discurso de extrema-direita
Agora, para alívio de analistas que esperavam um cenário “ainda pior” – a possibilidade de que o ministro do Gabinete de Segurança Institucional, general Sérgio Etchegoyen, assumisse o novo ministério da Segurança Pública – o governo fez outra opção. Deslocou para a nova pasta o ministro Raul Jungmann, que antes respondia pela Defesa. Mas deixou um general (Joaquim Silva e Luna) à frente da Defesa, o que não acontecia desde 1999.
O desenho afasta por hora a consolidação de um governo civil-militar que teria em seu núcleo um presidente que chegou ao posto por meios para lá de questionáveis, promove reformas que retiram direitos e ostenta os piores índices de popularidade da história, aliado a um general linha dura. Acusado por colegas palacianos de interferir além da conta em questões que não lhe dizem respeito, como a recente troca de comando da Polícia Federal (PF), crítico incisivo da Comissão Nacional da Verdade, e identificado dentro das Forças Armadas como da ala que considera que a instituição pode dar importantes contribuições em áreas que extrapolam em muito a defesa do país, Etchegoyen já é homem forte no governo.
A dúvida dos analistas é sobre o quanto a administração Michel Temer ainda vai apostar na fantasia de que militares constituiriam um grupo acima dos males que atingem a sociedade e, de forma mágica, poderiam resolver problemas de toda a ordem. “O risco de termos um governo civil com militares com grande poder é bem alto. Há o uso de expedientes muito questionáveis do campo constitucional, com sua utilização sendo justificada pelo conceito de maioria. Na verdade, já estamos bastante distantes de uma ordem democrática e constitucional, há flexibilização de direitos e garantias individuais e os direitos de cidadania já se encontram fragilizados”, elenca o sociólogo Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo, membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e professor da Escola de Direito da PUCRS.
Foto: Igor Sperotto
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Para o pesquisador, a intervenção no Rio tem muito mais este caráter simbólico da tutela militar sobre a sociedade civil do que o de uma medida concreta para reestruturar a área da segurança. “Da forma como foi encaminhado, é uma caixa de pandora. Sabe-se como começa, mas não como termina. Não há no decreto um detalhamento sobre a atuação do Exército. Talvez o aspecto mais lastimável seja o da confusão entre intervenção federal e intervenção militar. Porque não existe previsão constitucional de intervenção militar. Mas então o governo, em uma área específica, faz uma intervenção federal à qual, extraoficialmente, dá um caráter militar. Além de ser inédita, esta opção não foi por acaso”, completa.
Já o professor Carlos Sávio Teixeira, do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense (UFF), considera que, apesar do saudosismo de parte da população, da vontade de setores influentes da sociedade e da “crise grave de desorientação do país”, o caso do Rio de Janeiro é muito específico e a tutela militar hoje não é uma opção central no cenário nacional. “A segurança no Rio é só um capítulo dentro de uma crise generalizada. Não há governo, não há cadeia de comando, não há nada”.
Os pesquisadores assinalam que é preciso diferenciar o apoio popular que a intervenção recebeu do saudosismo da ditadura. Segundo Ghiringhelli, o respaldo social se deve em grande medida ao fato de que a população vive uma sensação real de insegurança causada pela incapacidade dos governos de oferecerem respostas efetivas, o que abriu caminho para um ‘populismo punitivo’. “Temos uma deficiência por uma cultura democrática e é fato que a esquerda muitas vezes tem dificuldade em lidar com este debate. É necessário chegar a um ponto de equilíbrio que admita que a demanda por segurança não é uma demanda fascista. A esquerda precisa se dar conta de que o debate estrutural é correto, mas não é suficiente”.
Conforme Teixeira, apesar de as alas profissionais e de inteligência das Forças Armadas não terem qualquer interesse em fazer papel de polícia ou comandar a política, o saudosismo da tutela militar se alimenta da combinação entre a campanha sistemática de setores específicos pela depreciação da política e o fato de as Forças Armadas serem uma instituição séria. “O pano de fundo é parte da sociedade ainda não ter entendido que um regime democrático, por melhor que funcione, é marcado por tensões e atualizações. E que em um governo militar a aparente inexistência de falhas e tensões se dá não porque de fato não existem, mas sim porque o controle é acionado pelo medo e por uma obediência cega à hierarquia”.
Ineficácia comprovada nas ações do Exército no Rio
Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil
O Rio de Janeiro acumula exemplos recentes da ineficácia da ingerência militar sobre a vida civil. No estado o deslocamento de tropas militares para ajudar na segurança vem sendo empregado desde 1992. Naquele ano, o então presidente Fernando Collor de Mello autorizou o envio de tropas por meio de uma Garantia da Lei e da Ordem (GLO) para a realização da conferência da ONU sobre o meio ambiente, a Rio-92. Desde então, ocorreram 36 operações envolvendo as Forças Armadas no estado. Em 1994 e 1995 foram as operações Rio, e, com elas, as denúncias constantes de violação de direitos, aumento da violência e envolvimento de efetivos militares com o tráfico de drogas e armas.
Após um intervalo propiciado pela política das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), os militares participaram da operação policial no Complexo do Alemão em 2007. Em 2011, a Marinha emprestou blindados para a invasão da Vila Cruzeiro, no Complexo da Penha. E GLOs voltaram a ser empregadas quase que anualmente: nas eleições municipais de 2008; na ocupação do Complexo do Alemão, entre 2010 e 2012; nos Jogos Mundiais Militares, em 2011; na Rio+20 e nas eleições municipais, em 2012; na Jornada Mundial da Juventude, em 2013; na Copa do Mundo em 2014 e na ocupação do Complexo da Maré, entre 2014 e 2015; nos Jogos Olímpicos e nas eleições municipais, em 2016; durante a votação do pacote de austeridade do governo, em fevereiro de 2017; e, ainda desde 2017, para a implantação do Plano Nacional de Segurança.
O próprio comandante do Exército, Eduardo Villas Boas Corrêa, em entrevista em setembro passado do Extra Classe admitiu que a participação das Forças Armadas nessas ações foi apenas pontual e que o saldo é zero. “Não temos visto mudanças nas comunidades após a nossa atuação. Passamos 14 meses nas favelas da Maré e, na semana seguinte à nossa saída, todo o status quo anterior a nossa presença tinha sido reestabelecido. Tivemos um grande gasto e não conseguimos ver, nos dias de hoje, os ganhos daquela operação”, explica.
Foto: Arquivo Nacional/Reprodução
A corrupção na ditadura militar no auge da censura
Entre os saudosistas da tutela militar do Estado, uma máxima voltou a ganhar fôlego desde que a operação Lava Jato mostrou seus primeiros resultados: a de que não existia corrupção durante a ditadura. O combate à corrupção institucionalizada e a “limpeza” do país serviram de mote para o golpe de 1964. Um mito que a abertura política, o acesso a dados dos governos, as leis de Acesso à Informação e da Transparência e obras de fôlego de jornalistas, historiadores e cientistas políticos como René Dreifuss, Ricardo Kotscho e Heloísa Starling ajudaram a revelar.
Os desvios, o pagamento de propinas, os superfaturamentos de obras, os acordos entre agentes públicos e políticos e empresários para drenar recursos públicos rondaram as chamadas obras faraônicas, entre elas Itaipu, Transamazônica e as usinas nucleares de Angra, apesar de, à época, o governo coibir com força denúncias e questionamentos. Foi durante o regime que algumas das construtoras cujos executivos-delatores hoje revelam sistemas de corrupção experimentaram uma espécie de apogeu, estreitaram seus laços com o Estado e se tornaram gigantes.
A repressão característica do regime, aliada à inexistência de mecanismos de fiscalização que só viriam a existir décadas depois e a investigações pró-forma ajudaram a manter a aura de incorruptíveis dos governos militares. Enquanto isso, não apenas as grandes obras podiam ser usadas para os chamados ‘malfeitos’ na administração pública. Os escândalos da Agropecuária Capemi, das comissões pagas pela General Electric, do caso Lutfalla (protagonizado por Paulo Maluf), e o da Magnesita (um dos que teve a atuação de Antônio Carlos Magalhães) exemplificam a diversificação.
No cotidiano do poder público, já eram conhecidos os privilégios que hoje seguem estampando capas de jornais. Recebimento de supersalários, auxílio-mobília, criadagem numerosa, compras de mercado custeadas pelo contribuinte, acúmulo de generosas aposentadorias e direito a viagens em jatos da Força Aérea Brasileira (FAB) constituíam algumas das benesses à disposição de parte dos agentes de alto coturno.
O preço do milagre foi o desastre econômico
Durante a maior parte dos 21 anos em que perdurou a ditadura militar, a economia se desenvolveu em ritmo acelerado, de tal forma que uma parte do período ficou conhecido como ‘milagre brasileiro’. Na época, o incremento do PIB, que entre 1967 e 1973 chegou a crescer a mais de 10% ao ano, o aumento da renda média e o desenvolvimento da indústria ajudaram a manter a população satisfeita e inerte ante a violação de direitos humanos e políticos perpetrada pelo regime. Os números contribuem hoje para discursos de grupos que atribuem aos militares a qualificação de “gestores eficientes”. A forma como os governos militares criaram e sustentaram o ‘milagre’, contudo, começou a se esgotar ainda durante a ditadura e, entre suas consequências, está não apenas uma recessão que se estendeu por décadas, mas, também, um aumento da desigualdade ainda não superado.
Foto: Reprodução
É fato que naquela época o governo controlava preços de determinados produtos, as taxas de juros que podiam ser praticadas no setor financeiro e o câmbio. E o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE) ofertava crédito a taxas que auxiliaram em muito o aumento do consumo. Mas, ao contrário do que muitos apregoavam à época, o país não vislumbrou a possibilidade de resolver seu problema histórico de concentração de renda. Pelo contrário: apesar de a pobreza diminuir, a desigualdade aumentou. São criações do regime militar a correção monetária e a fórmula de cálculo dos salários que levava em conta a reposição de parte da inflação acumulada no período e parte daquela projetada, o que determinou perdas constantes nos salários e ajudou a conter a inflação pela velha fórmula do arrocho.
E foi durante a ditadura (após a crise do petróleo de 1973) que o governo optou por financiar a si mesmo e a outros investimentos via uma pesada captação de recursos externos, o que, menos de dez anos depois, fez a dívida pública explodir e tornou o país uma espécie de refém de instituições financeiras. Quando a ditadura acabou, em 1984, a inflação chegava a mais de 200% ao ano. Após a volta dos governos democráticos e uma série de planos econômicos, a inflação recuou a patamares ‘civilizados’. Mas, além do problema básico da desigualdade, a herança do endividamento segue um dos principais entraves ao desenvolvimento. Conforme levantamentos realizados pela Auditoria Cidadã da Dívida, nos dias atuais quase metade do orçamento da União é destinado ao pagamento dos serviços da dívida. E não há perspectiva de mudança.