EDUCAÇÃO

Ditadura elitizou sistema de ensino no Chile

Redução de verbas para a educação pública e subsídios a colégios privados disseminaram germe da meritocracia e criaram sistema de ensino que exclui os pobres
Por Marcelo Menna Barreto / Publicado em 19 de março de 2019
No Chile, há uma elite de 33 universidades seletivas e disputadas, 25 estatais e 8 privadas, mas o acesso ao ensino superior não é gratuito e universal nas públicas

Foto: Instituto Mercado Popular/ Divulggação

No Chile, há uma elite de 33 universidades seletivas e disputadas, 25 estatais e 8 privadas, mas o acesso ao ensino superior não é gratuito e universal nas públicas

Foto: Instituto Mercado Popular/ Divulggação

Exemplo internacional de um sistema educacional em grande parte privatizado, operando com princípios de livre mercado, o Chile vem diminuindo seus resultados de aprendizagem com qualidade abaixo do esperado. Participante da última reunião anual da Sociedade Chilena de Políticas Públicas, o educador finlandês Pasi Sahlberg, especialista em reforma educacional no seu país e acadêmico de Harvard, foi categórico: “Não há sistema no mundo que tenha melhorado com as políticas educacionais que o Chile tem hoje”. Para Florencio Valenzuela Cortés, Secretário-Geral da Federação Nacional dos Sindicatos de Colégios Privados do Chile (Federacioncp), a grande mudança que deu origem aos principais problemas na educação chilena de hoje tem origem em 1980, quando a junta militar presidida pelo ditador Augusto Pinochet inspirada pelo projeto neoliberal de seus economistas fez uma ampla reforma educacional.

Sahlberg: no Chile as políticas educacionais baseadas no mercado incentivam a competição entre as escolas para matricular os estudantes, na Finlândia, a cooperação e rede de apoio são encorajados como os principais veículos de prática educativa e sua melhoria

Foto: Damir Klaic-Kljuc/ Divulgação

Sahlberg: no Chile as políticas educacionais baseadas no mercado incentivam a competição entre as escolas para matricular os estudantes, na Finlândia, a cooperação e rede de apoio são encorajados como os principais veículos de prática educativa e sua melhoria

Foto: Damir Klaic-Kljuc/ Divulgação

Para Cortés, que também integra a Federação Latino-americana de Trabalhadores da Educação e Cultura, de 1938 até 1980 o conceito de educação no Chile era a do ‘Estado Docente’. Com Pinochet, segundo o professor, houve uma guinada de 360 graus: “em 1980, mudou para ‘Família Docente’”, diz. Para dar concretude à política, as escolas públicas chilenas, conhecidas como liceus, saíram da pasta do Ministério da Educação e passaram a ser responsabilidade dos municípios. Com essa municipalização, as verbas tiveram uma queda significativa.

Paralelo à medida de municipalização, o Estado chileno instituiu uma linha de subsídios aos colégios privados. Com isso, criou no país outra espécie de escola particular, a escola particular subvencionada.

Cortés: “Houve toda uma política para desacreditar os professores, que antes eram muito valorizados no Chile"

Foto: Marcelo Menna Barreto

Cortés: “Houve toda uma política para desacreditar os professores, que antes eram muito valorizados no Chile”

Foto: Marcelo Menna Barreto

Na opinião de Cortés, foi aí que se instalou o “germe da meritocracia”, no sentido não positivo, na educação chilena. Agora com três tipos de estabelecimentos de ensino (municipal, privado puro e privado subvencionado pelo Estado), as particulares que se criaram com o objetivo de receber verbas estatais começaram a buscar formas de se diferenciar das municipais e, dentro de um ensino pragmático, ter bom desempenho na Prova de Seleção Universitária (PSU). “Mesmo com o subsídio do Estado, elas passaram a selecionar quem podia entrar ou não”, registra o professor, lembrando que nos governos de Michelle Bachelet essa discriminação passou a ser proibida. “Hoje, ao menos 30% dos estudantes dos estabelecimentos privados com subvenção do Estado têm que vir das camadas mais pobres”, ressalta.

Apesar disso, as marcas da “meritocracia” da ditadura ainda impactam fortemente o país, mesmo após quase 40 anos do fim do regime militar. “Esse assunto da segregação no Chile é muito forte. Antes, até os anos 1980, os liceus eram absolutamente republicanos, democráticos e conviviam lado a lado distintos extratos sociais”, explica Cortés.

A política adotada no auge dos princípios neoliberais dos Chicago Boys que influenciaram Pinochet, gerou um crescimento expressivo de estabelecimentos de ensino privados com subsídios estatais. “Várias universidades nasceram desse sistema. Filomena Narvaez teve um império, além da Universidade Iberoamericana, mais de vinte colégios”, ilustra.

Desintegração social e ataque aos professores

Filomena Narvaez, a matriarca da educação subvencionada

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Filomena Narvaez, a matriarca da educação subvencionada

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A Matriarca da educação subvencionada, como ficou conhecida em 2012, na época com 82 anos, acabou enfrentando a amargura de ver seus negócios expostos nos tribunais porque seus filhos buscavam sua interdição e o controle de um patrimônio que, além da Universidad Iberoamericana de Ciencias y Tecnología (Unicit) e demais estabelecimentos de ensino, compreendia plantações de uvas para vinicultura e diversas propriedades rurais. Filomena iniciou  exatamente nos anos 1980,  administrando dois colégios particulares subvencionados. Com um extraordinário rendimento vindo de verbas públicas, como disse o secretário-geral da Federação Nacional dos Sindicatos de Colégios Privados do Chile, acabou construindo um império econômico que extrapolou a área da educação.

Cortés enfatiza que, em seu mandato, Bachelet trabalhou para minimizar os danos e avançar na gratuidade do ensino superior. Mas lamenta o saldo da mudança de enfoque realizada pelos militares. “Havia uma integração social e isso é algo muito importante. Já o elemento neoliberal quer exatamente a desintegração. Cada um com cada um”, esclarece, ao apontar o grande caráter individualista que permeia a sociedade chilena na atualidade.

Para o pesquisador finlandês, Pasi Sahlberg, o sistema em seu país é o oposto: “enquanto no Chile as políticas educacionais baseadas no mercado vêem a competição entre as escolas para matricular os estudantes como o mecanismo-chave, na Finlândia cooperação e rede e apoio são encorajados como os principais veículos de prática educativa e sua melhoria”, registrou durante a reunião Anual da Sociedade Chilena de Políticas Públicas.

Unicit, ícone do império construído por Filomena com dinheiro público, sofreu intervenção em 2018 por conta de uma dívida de mais de 2 bilhões de pesos, não pagamento de salários para professores e alunos sem aulas

Foto: t13/ Reprodução

Unicit, ícone do império construído por Filomena com dinheiro público, sofreu intervenção em 2018 por conta de uma dívida de mais de 2 bilhões de pesos, não pagamento de salários para professores e alunos sem aulas

Foto: t13/ Reprodução

O dirigente sindical aponta que, para dar início ao que classifica como desmonte do ensino público no país, os militares atacaram primeiramente os professores. “Houve toda uma política para desacreditar os professores, que antes eram muito valorizados no Chile. Começaram tirando a formação dos professores das universidades, passando-a para centros técnicos”, lembra, Cortés pondera que, com o retorno da democracia, o título universitário foi devolvido para os professores e houve uma pequena melhoria nos salários, apesar de o sistema municipal ainda apresentar uma diferença grande de investimentos em relação às privadas subsidiadas pelo Estado.

Já para Sahlberg, se, no Chile, o sistema dos neoliberais da escola de Chicago baseia sua prestação de contas em testes, na Finlândia as reformas se concentraram em aumentar a confiança nos professores e em compartilhar a responsabilidade dentro das escolas para proporcionar uma excelente educação para todos. Nesta linha, disse: “o Chile tem decrescido por anos para manter a profissão de professores valorizada pela sociedade e desejada pelos jovens. A Finlândia tem investido sistematicamente no ensino de uma profissão semelhante à medicina, arquitetura e educação”. Sahlberg  registrou que é difícil entender como o lucro privado obtido com o orçamento do Estado pode melhorar a qualidade e a equidade na educação. “Uma das conclusões dos pesquisadores e do teste Pisa, da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) é que quase todos os países com sistemas bem-sucedidos, como Canadá, Coreia e Finlândia, possuem sistemas de educação pública fortes, em que o dinheiro do Estado é gasto onde é mais necessário”, explicou.

Sobre o processo “meritocrático” da ótica chilena, que o atual presidente Sebastian Piñera pretende enfatizar novamente, diz o finlandês: “as evidências internacionais sugerem que a seleção precoce de alunos quase sempre traz consequências negativas para a equidade e a qualidade dos sistemas educacionais”. Para Sahlberg, seria muito importante para a sociedade civil e para os políticos no Chile entender que o que é bom para alguns indivíduos – estudantes ou seus pais – não é necessariamente bom para a nação.

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