Autolesão: dor, escuta e acolhimento
Foto: divulgação
A incidência de comportamentos autolesivos entre crianças e adolescentes está aumentando nas escolas públicas e privadas do estado e desafia pais, professores e especialistas a uma revisão dos seus papéis na vida dos jovens. O alerta está menos nas estatísticas de pesquisas isoladas, as quais apontam em média uma ocorrência por escola, e mais na percepção de quem atua na prevenção e tratamento da automutilação: a autopunição como resultado de experiências emocionais frustrantes faz muito mais vítimas do que aquelas que conseguem ser alcançadas pelos raros programas de escuta e outras políticas adotadas no sistema de ensino.
O estudo Autolesão na adolescência: como avaliar e tratar, divulgado para a classe médica em julho pela Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), estima que todos os jovens já experimentaram pelo menos uma vez algum tipo de automutilação sem ideação suicida no processo de adolescência. Entre 4% e 46,5% dos jovens entrevistados na faixa etária de 13 e 14 anos relataram ocorrências de autolesão – as classificadas como mais graves pela SBP são os cortes, incisões, queimaduras e fricções feitos na própria pele e que resultam em sangramento ou hematomas.
Nas escolas particulares, não há um monitoramento por parte das direções, de acordo com o Sindicato da Rede Privada (Sinepe/RS), e as iniciativas para acolher e encaminhar para tratamento clínico os casos detectados são dos professores. “Dentre as violências que sofrem os jovens, talvez a mais difícil de solucionar seja a autolesão. Os professores precisam estar muito atentos na observação de seus alunos, dada a dificuldade de identificação do problema e, consequentemente, a impossibilidade de auxiliar no enfrentamento dessa questão”, alerta Cecília Farias, diretora do Sindicato dos Professores do Rio Grande do Sul (Sinpro/RS). Os professores que identificarem alunos com autolesão podem recorrer ao Núcleo de Apoio ao Professor contra a Violência (NAP), mantido pelo Sindicato. “O serviço oferecido aos associados com o objetivo prioritário de apoiar os professores que sofrem violência implícita ou explícita no ambiente de trabalho também assessora os docentes que se deparam com dificuldades como as situações de autolesão de alunos”, explica Cecília.
Na rede pública estadual, a proporção de relatos de alunos que recorrem à automutilação na tentativa de superar traumas e conflitos emocionais oscila em 1,6 por escola, conforme pesquisa realizada pelas Cipas e Violência Escolar (Programa Cipave), da Secretaria de Educação (Seduc), em 2018. O levantamento abrangeu metade das instituições da rede pública e serviu como base para um aprimoramento das políticas de prevenção. “Os números indicam que há uma subnotificação. Porém, mais importante que as estatísticas é o acompanhamento por escola e a escuta cada vez mais sensível por parte de pais, alunos e professores”, ressalta a coordenadora do Cipave, Patrícia Sanchotene.
“Crianças e adolescentes que se autolesionam, geralmente, apresentam dificuldades de lidar com emoções experimentadas como negativas e de forma intensa, além de déficits em habilidades importantes de comunicação e de resolução de problemas. É comum que, pela dificuldade de entender, ou lidar com afeto negativo – emoções sentidas como aversivas, como raiva, medo e ansiedade – e de comunicar o que estão sentindo, esses adolescentes usam a autolesão como uma ferramenta para manejar o sofrimento emocional”, esclarece a psicóloga Julia Schäfer, especialista, doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Psiquiatria da Ufrgs. “Compreender por que o jovem se engaja em comportamentos autolesivos é imprescindível para a condução de uma intervenção psicológica efetiva e sem julgamentos”, garante.
RELATO – Escuta do coração
“Ninguém dá o que não tem”, resume a professora e mestre em Educação Isabel Mantovani, que, desde 2016, coordena um dos mais efetivos projetos de prevenção a comportamentos autolesivos na rede pública, o Escuta do Coração, desenvolvido em uma escola estadual da Região Metropolitana – ela prefere omitir o nome da instituição para não expor os alunos. “O primeiro passo foi qualificar os professores para a escuta e o afeto, para que passassem a ser multiplicadores desse acolhimento como forma de enfrentamento da autolesão. Percebemos um alto índice de adolescentes e crianças com depressão, e o mais difícil foi perceber que a automutilação estava crescendo de maneira assustadora. Eles estavam gritando por socorro, pelos mais variados motivos, mas, principalmente, por não serem reconhecidos como seres humanos de valor”, relata.
Ao menos, três casos foram detectados pela equipe no início do projeto. “Hoje, é zero autolesão. Alunos novos chegam com marcas, mas logo são envolvidos pelo grupo que estuda na escola desde o início da vida escolar. Nosso trabalho é preventivo mesmo, em um ambiente muito acolhedor, em sintonia com vários outros projetos que envolvem esses adolescentes por meio de conversas em sala de aula, no recreio, no turno inverso. Depois que aprendemos a reconhecer a tristeza, a apatia, a indiferença em pequenas atitudes, se faz uma conversa no grupo e logo quem está nesse vazio procura ajuda e, então, vem conversar, diariamente às vezes. Existe uma grande parceria entre todos da escola, direção, professores e funcionários.”