EDUCAÇÃO

Liberdade para ensinar e aprender

Movimento de pais de alunos e iniciativa de entidades educacionais em parceria com procuradores estaduais e federais se aliam a professores no enfrentamento ao assédio de grupos políticos
Por Márcia Santos / Publicado em 11 de setembro de 2019

Foto: divulgação Mães e pais pela democracia

Foto: divulgação Mães e pais pela democracia

Quando um pequeno, porém ruidoso grupo ocupou uma praça em frente ao tradicional Colégio Rosário, em Porto Alegre, no início de agosto, para protestar contra o que chamaram de doutrinação no ensino, uma informação divulgada pela própria escola deixou claro o que estava acontecendo. Do grupo – cerca de 30 pessoas –, apenas dois eram pais de alunos daquela comunidade escolar. O restante era ligado a movimentos como o Escola Sem Partido. Apesar do nome, os manifestantes eram liderados por dois deputados estaduais, Eric Lins (DEM) e Luciano Zucco (PSL), e ainda pela vereadora eleita pelo MDB, Comandante Nádia, que hoje ocupa uma Secretaria na Prefeitura de Porto Alegre. O motivo da manifestação foi uma briga entre estudantes e resultou na expulsão de três adolescentes e na demissão de um professor.

Desde a eleição presidencial, no ano passado, a tensão se instalou nos ambientes escolares e na sociedade como um todo. “O processo eleitoral abriu a possibilidade de um determinado grupo começar a interagir de forma muito agressiva e ruidosa. Trouxe de volta a discussão da escola sem partido que é, de fato, para quem defende escola com partido, partido de direita, que não quer aceitar a discussão e a diversidade”, alerta a professora Cecília Farias, diretora do Sinpro/RS e coordenadora do Núcleo de Apoio ao Professor (NAP).

Três grandes escolas de Porto Alegre registraram em 2018 conflitos provocados por um grupo disposto a cercear a liberdade de ensinar e de aprender. Tudo se acirrou quando, no primeiro dia de aula depois do segundo turno eleitoral, alguns alunos do ensino médio do Colégio Rosário foram para a aula vestidos de preto, para marcar o descontentamento com o resultado das urnas. Na hora do recreio, fizeram uma movimentação. “Os pais de direita ficaram indignados. Aí reagiram de uma forma muito agressiva, tentando colocar a responsabilidade nos professores. Mas nem sabiam que tinha sido uma iniciativa dos próprios alunos, pelas redes sociais”, assinala Cecília. No outro dia, alguns alunos do ensino fundamental foram para a aula com roupas em verde e amarelo e não foram reprimidos por isso, lembra.

Como a cada ação corresponde uma reação, logo surgiu um movimento de pais dispostos a manter um ambiente democrático dentro das escolas. “Nós nos organizamos em defesa de nossos filhos. Quando eles fizeram a manifestação (indo para a escola de preto), foram expostos nas redes sociais pelos defensores do dito projeto Escola sem Partido, na minha opinião, de pensamento único e de extrema-direita”, relata a socióloga e especialista em segurança e prevenção da violência Aline Kerber. Ela é mãe de um estudante do Rosário e presidente da Associação Mães e Pais pela Democracia.

“Iniciamos com um grupo de 30 pessoas diretamente envolvidas na constituição da Associação, a partir da organização de aproximadamente 200 pais do Rosário em um grupo de WhatsApp. Hoje somos mais de 6 mil pessoas oriundas de 70 escolas públicas e privadas”, diz Aline.

A Associação está organizada com uma diretoria, comissões e tem dois conselhos, de ética e finanças. Existe formalmente desde fevereiro de 2019, e o lançamento oficial foi em 8 de março, na Esquina Democrática. “Mas, na verdade, iniciamos nossa luta antes disso, em outubro de 2018. Desde então, a gente vem pensando em possibilidades de neutralizar e de reverter a situação de perseguição contra professores e escolas, barrando censura e autocensura, pois é isso que tem impedido o direito integral à educação e à pluralidade de ideias no ambiente de ensino/aprendizagem dos nossos filhos.”

A socióloga comenta que chegam até eles inúmeros relatos e casos que fizeram entender a necessidade de registrar, sistematizar e encaminhar as denúncias de assédio e violência contra professores e alunos. “Sobretudo, as situações envolvendo intimidação e gravação”, além de situações de racismo e homofobia, “agudizadas por esta lógica de ódio, violência e desconfiança que se evidenciaram na sociedade a partir da eleição do presidente da República”.

O jornalista Marcelo Prado, vice-presidente da Associação, aponta que a composição do movimento “é a mais plural possível”, para que as ideias circulem. “Quando nossos filhos se vestiram de preto, se deram as mãos e disseram serem resistência, houve uma reação e espalharam notícias falsas afirmando que eram grupos de marxistas, com sindicalistas infiltrados”, ele recorda. “Um colega do meu filho teve fotos espalhadas dizendo que era um sindicalista, imagina!” E acrescenta: “Nós nos organizamos para proteger nossos filhos dessas exposições e dos ataques”.

A Associação Mães e Pais pela Democracia tem página no Facebook e, apesar do pouco tempo de existência, já ultrapassou 10 mil curtidas. Promove atividades como cafés culturais ao menos uma vez por mês. O passo seguinte foi o lançamento de uma campanha com distribuição de cartazes em todas as instituições de ensino – escolas e universidades – no dia 3 de setembro, na Assembleia Legislativa. No dia 4, às 13h30, no auditório Ipê do Centro Cultural da Ufrgs, ocorrerá o seminário “Silenciamento na educação: da liberdade de expressão à autocensura”. Na Feira do Livro de Porto Alegre neste ano, será lançado um livro de crônicas das mães e dos pais pela democracia.

“Falamos da educação que acreditamos, que deve gerar autonomia e emancipação para que tenhamos cidadãos conscientes dos problemas sociais e capazes de pensar em soluções criativas para questões da sociedade”, assegura Aline. Ela diz que a entidade enfrenta muitas barreiras. “Houve até uma tentativa de denúncia contra nós no Ministério Público por acharem que queríamos doutrinar estudantes. Mas nosso grupo é suprapartidário, temos pessoas da esquerda, da direita e liberais, porém todos defensores da democracia e da liberdade.” A Associação já entrou com diversas ações judiciais por notícias falsas contra membros da comunidade escolar. “Nossa atuação, além de resistente e combativa, é propositiva, pensando nos problemas públicos da educação.”

Diretora de Comunicação do Sindicato dos Professores das Instituições Federais de Ensino Superior (Adufrgs/Sindical), a professora Sônia Ogiba informa que a entidade vê com preocupação as ações que visam à censura/cerceamento de professores em sala de aula. “Agimos para que os professores tenham o direito de ensinar garantido e, por consequência, os alunos mantenham o direito de aprender. A Educação deve ter como princípios básicos a pluralidade, a diversidade de opiniões. O que aparece em oposição a esses princípios é censura.”

Ela revela que a entidade vem recebendo denúncias desde a definição do processo eleitoral de 2018. “No dia seguinte da eleição, por exemplo, uma professora de Física relatou que alunos filmaram sua aula, o que não é permitido sem a anuência do docente. Imediatamente, pensamos em abrir um canal de denúncias.”

Entidades e procuradores assinam termo de cooperação
“Não vimos nada tão grave assim desde a ditadura”, constata Sônia Ogiba, da Adufrgs/Sindical. Conforme ela, o clima de desconfiança com o professor nunca esteve tão alto. Para fazer frente às pressões sofridas por professores, alunos e pela própria escola, seja pública ou privada, em novembro do ano passado foi criado o Fórum de Combate à Intolerância e ao Discurso de Ódio, idealizado pelo Ministério Público Federal (MPF), sob a liderança do procurador Enrico Rodrigues de Freitas. O Fórum reúne diversas entidades ligadas ao ensino e mesmo fora dele que assinaram um Termo de Cooperação mútuo em agosto. “O objetivo é criar uma rede de resistência e reação a preconceitos de qualquer natureza. Sozinhos, não teríamos a mesma força de ação.”

O Fórum é um canal de denúncias dos casos de intolerância e ódio com foco na garantia dos direitos humanos. “E a Educação, sem dúvida, se relaciona com essa ideia. O Termo de Cooperação é a materialização dessa rede, e institucionaliza, formaliza o processo de fluxo e responsabilidade sobre as denúncias, explica a diretora da Adufrgs. O MPF recebe a denúncia e toma as providências cabíveis quando um professor, por exemplo, se sente pressionado ou limitado no seu direito de ensinar. O mesmo acolhimento terá o aluno que se sentir ameaçado no ambiente de aprendizagem. “Recebemos muitos professores oprimidos, censurados, constrangidos, que precisam desse espaço de acolhimento”, diz Cecília Farias, que assinou o Termo pelo Sinpro/RS.

Para o Procurador Regional dos Direitos do Cidadão do MPF, Enrico Rodrigues de Freitas, o Termo de Cooperação é a criação de um canal oficial informal que visa a criar condições para que as entidades de professores e estudantes levem ao MPF “denúncias, informações, notícias de fatos referentes a assédio, constrangimento, violência a professores ligadas à violação da liberdade de aprender e ensinar”. As consequências concretas, segundo ele, “são a apuração devida por quem tem atribuição para tanto até as consequentes sanções. Mas a finalidade primordial é criar um clima de prevenção, mostrar que esse tipo de crime não fica sem consequência e prevenir, para que tenhamos uma normalidade dentro das salas de aula e que se garanta a ampla liberdade de aprender e ensinar”. Freitas é coordenador do Fórum Permanente de Combate à Intolerância e ao Discurso de Ódio, que mantém o Grupo de Trabalho Fórum pela Escola Livre e Democrática, dedicado ao debate sobre o tema educacional frente aos constantes ataques à liberdade de ensinar e aprender. “Estamos garantindo o direito de fala a todos e garantindo o direito e o respeito à diversidade e às diferenças”, define a coordenadora do Centro de Apoio Operacional dos Direitos Humanos, da Saúde e da Proteção Social, do MPRS, Angela Salton Rotunno.

A presidente da Associação dos Juízes pela Democracia (AJD), Valdete Souto Severo, considera essencial a união das entidades para monitorar o que está acontecendo nas escolas e universidades e explicar a todos que esse tipo de censura é passível de punição. Ela defende a realização de um observatório para agir nos casos de censura e violência, inclusive no âmbito judiciário. “Reconhecemos a gravidade do momento atual e é importante que pessoas de diferentes lugares da sociedade mostrem que os professores não estão sozinhos, porque os atingidos não são somente eles ou os alunos, mas toda a sociedade”, conclui.

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