Sob cinzas: metáfora e realidade
A reflexão sobre a realidade pode partir de diversas motivações, dependendo da percepção que o pensador tem sobre a realidade e da sua visão de mundo. Pode-se partir da pura admiração, de uma paixão e, entre outras tantas, como diria Enrique Dussel, por indignação ética. Parece improvável, quase impossível, pensar sobre a atual realidade brasileira sem ser motivado por uma profunda indignação ética. A não ser que se joguem mais cinzas sobre ela com o intuito de ocultar o que, de fato, está acontecendo.
Em 28 anos de magistério, nunca poderia imaginar que precisaria escolher conceitos/palavras para ministrar minhas aulas, nas falas e abordagens dos conteúdos para evitar dissabores para com aqueles que optaram pelo retorno do obscurantismo e estão absolutamente seguros de si e prepotentes. Nunca antes precisei insistir com tanta veemência na desconstrução de uma narrativa e senso comum genocidas, e na defesa da ciência, da cientificidade, das humanidades.
Obscurantistas e fanáticos sempre fizeram parte da nossa história e da nossa realidade. Mas recentes acontecimentos deram visibilidade e legitimidade para suas ideias e ações, não somente no Brasil. Qualquer assunto, desde discussões sobre gênero, racismo, sexismo até interpretações sobre fatos históricos ou leituras sobre estes fatos, passa por cores cinzas, querendo ser apresentado em viés superficial, ingênuo, parcial, desconexo, manipulado, numa narrativa estranha às diversas ciências. Quase um deboche ao pensamento científico, crítico, diferente, contextualizado…
Nota-se um triunfo da irracionalidade, da bestialidade, da desumanização movida pelo ódio aos pobres, aos homoafetivos, às minorias étnicas, aos estrangeiros, às mulheres e a tantos outros sujeitos que não cabem no universo dos “homens de bem”. O medo, por sua vez, também faz parte desta irracionalidade, levando à morte todos aqueles que precisam ser eliminados segundo a lógica “witzeliana”. Quem questiona essa irracionalidade é posto à prova, recebendo alcunhas depreciativas por não tecer um discurso neutro (sic).
Cabe, num primeiro momento, resgatar o valor da ciência como conhecimento atento, sistemático e aprofundado, embora, não definitivo, sobre fenômenos ou coisas, que se caracteriza pela racionalidade, por um método, pela observação sistemática para chegar mais próximo à realidade ou ao entendimento desta.
Acima de tudo, cumpre resgatar o papel fundamental da escola, como espaço necessário, intransferível e, quem sabe, para muitos estudantes, o único onde se trabalha com informações qualificadas, onde há espaço para o conhecimento historicamente produzido, revisto e reproposto. Que a escola possa ser o lugar do conhecimento, da ciência e que os educadores possam cumprir à altura sua tarefa. Parafraseando Peter Burke, que os educadores possam lembrar à sociedade o que ela quer esquecer. A esperança é de que o conhecimento, a ciência possam ‘des-cobrir’ a realidade coberta pelas cinzas do obscurantismo, pelo fanatismo e pela irracionalidade o quanto antes.