EaD como tendência global e irreversível
Foto: Igor Sperotto
Foto: Igor Sperotto
Há um ano, a pesquisa Free Online Courses, Recruitment and the University Brand, do instituto internacional Icef, consultoria norte-americana responsável por eventos no campo da Educação, apontou a rapidez de crescimento do Ensino a Distância na maioria dos países ao redor do mundo. Concretamente, para especialistas, esse fenômeno é irreversível frente às novas tecnologias e demandas de trabalho em uma sociedade que acelera na busca de não ser engolida pelo ritmo frenético dos avanços cibernéticos e das crescentes rotinas on-line.
O trabalho do Icef apontou que alguns países apresentam ligeiramente uma ampliação e melhora em relação a outros e passaram a liderar o setor. São eles Austrália, Estados Unidos, Coreia do Sul e Índia. O Brasil ganha destaque pelo número de cursos de pós-graduação que são oferecidos para aqueles que buscam mais qualificação para a entrada no mercado de trabalho.
Já na Austrália, a educação a distância é a opção popular para os egressos do sistema escolar que querem voltar a estudar sem deixar suas carreiras. Nos últimos cinco anos, o mercado de educação on-line australiano cresceu quase 20% e está diretamente relacionado à crise econômica verificada entre os anos de 2008 e 2009.
Apesar de opção popular, o faturamento impressiona. Estima-se que o segmento chegou à casa dos U$ 4,6 bilhões no final de 2018, tendo como líderes a Kaplan e a Open Universities Australia. Os líderes do mercado australiano são instituições conhecidas no Brasil, pois têm uma política de recrutamento de estudantes sul-americanos para intercâmbios no país que integra a Commonwealth, Comunidade das Nações, uma organização intergovernamental da Grã-Bretanha composta por 53 países membros independentes.
EUA exercem a liderança
Na liderança mundial inconteste em educação on-line, os Estados Unidos apresentam centenas de universidades a distância, com milhares de cursos oferecidos. Mas o país não é apenas líder na quantidade, também em modelos de aprendizado. Universidades de prestígio norte-americanas oferecem ao menos um curso on-line. Algumas, inclusive, criaram programas de mestrado e doutorado.
Voltando aos números, já em 2011, segundo a consultoria Sloan Consortium, cerca de 6 milhões de alunos no país cursavam ao menos um programa virtual. Para estimar o nível de grandeza, isso significava um em cada três estudantes matriculados no nível superior na ocasião.
Dados atuais indicam que, no geral, as matrículas em cursos on-line nos Estados Unidos já estão se sobrepondo às da educação superior presencial. O fenômeno faz com que hoje 65% das instituições de ensino superior americanas afirmem que o investimento em EaD tornou-se uma parte crítica de suas estratégias.
Brasil no contexto mundial
Com dados de 2018, o último censo da Associação Brasileira de Ensino a Distância (Abed) aponta um momento de crescimento vertiginoso no setor, aliado a uma consolidação no mercado educacional e marcado por um pequeno aumento em relação à concentração no Sudeste. Segundo a Abed, existem EaDs com sedes em praticamente todas as unidades da federação, com exceção do Amapá, e, se houve uma pequena redução em comparação ao período anterior (de 351 para 259), o mesmo não aconteceu no número de matrículas.
Pelo contrário, o número de alunos contabilizados em todas as modalidades passou de 7.773.828 para 9.374.647. Só nos cursos regulamentados totalmente a distância, o número de matrículas aumentou de 1.320.025 para 2.358.934, mais de 100%. Um dado interessante registrado no censo é que a avaliação do quesito qualidade em relação às categorias administrativas e aos valores cobrados também revelou que os cursos mais baratos não são necessariamente os que oferecem menos recursos, e vice-versa.
Para a Abed, ficou ainda evidente em seu censo que no Brasil o conceito de qualidade no EaD tem vínculos à titulação dos docentes. Existe, segundo o relatório, a valorização da presença de mestres nas instituições privadas e de doutores nas públicas.
Sul-coreanos preferem modalidade presencial
Somente nos anos recentes é que universidades sul-coreanas começaram a oferecer cursos on-line, em especial pelo alto valor que é dado para o aprendizado presencial, face a face, e a visão negativa que a sociedade do país asiático tem sobre a qualidade dos cursos a distância.
Apesar disso, a Coreia do Sul lidera hoje no ambiente de inovações nas metodologias de cursos a distância. Os motivos são as forças da indústria tecnológica e a velocidade da conexão via Internet do país.
Com facilidades de conexão e softwares de última geração, atualmente cerca de 17 instituições sul-coreanas estão investindo forte no EaD.
Para o Icef, a tendência mundial fará com que a Coreia do Sul supere a resistência cultural ao EaD e não deixará que o país fique – já não está – de fora do caminho do desenvolvimento de programas on-line de educação.
Para encorajar mais estudantes sul-coreanos a se matricular, a utilização de games – uma das preferências nacionais daquela população – está sendo um apoio para a participação de atividades educacionais de forma virtual.
Concretamente, a Coreia do Sul já está usando seus recursos não apenas para ensinar sua população, mas também para atrair estudantes de outros países, oferecendo cursos em inglês e promovendo a habilidade de entregar o chamado smart learning (aprendizado inteligente, em tradução livre).
Polo asiático cresce
Movido especialmente pela preocupação econômica de que na Índia a maioria das pessoas não pode ficar dois ou mais anos fora do mercado de trabalho enquanto estudam, o país acabou se tornando um importante cenário para o aumento de oportunidades de graduação on-line não só em seu território, mas também para outros países da Ásia.
Com o desenvolvimento de universidades de nível mundial, como a Sikkim-Manipal University, da cidade de Gangtok, capital da província de Sikkim, e faculdades que estão se tornando rapidamente destinos para estudantes do continente asiático, os programas de EaD indianos estão vivenciando um crescimento intenso.
Com programas que devem aportar por volta de US$ 1 bilhão em receitas até 2020, nos últimos anos, instituições de ensino americanas também começaram a atuar no mercado de educação no país.
Certificação dos MOOC deve ser novo “boom do mercado”
Para a doutora Wilsa Maria Ramos, professora do Instituto de Psicologia Escolar e Desenvolvimento Humano da Universidade de Brasília (UNB), “vamos continuar com a existência dos dois sistemas (presencial e on-line), com a tendência de aumento do on-line”.
Ela, que registra que na própria UNB já começa a surgir uma geração de professores formados pelo EaD, acredita que em cinco anos haverá muito mais professores acostumados com as novas tecnologias, o que ainda é uma espécie de lacuna no país.
Mas, sobre tendências, Wilsa vai mais longe. Tendo participado em maio do CEUR Workshop Proceedings, evento sob a égide da Universidade alemã RWTH Aachen realizado este ano em Milão, a professora aposta que o novo boom do EaD será muito em breve a busca de certificação das grandes instituições para os seus cursos MOOC, do inglês Massive Open Online Course (Curso On-line Aberto e Massivo). Essa modalidade EaD é relativamente recente e visa oferecer para um grande número de pessoas uma oportunidade de ampliação de conhecimentos e competências em um processo de co-produção no ambiente virtual. No EaD, apesar de semelhante, a forma ministrada aos cursos de faculdades e universidades a distância, os MOOC em geral são de curta duração (horas ou semanas) e normalmente são oferecidos de forma gratuita até mesmo por grandes instituições, não exigindo pré-requisitos. Entre as mais influentes está Harvard, que iniciou um grande projeto de ensino a distância em 2012 ao lado da Massachusetts Institute of Technology (MIT).
Em uma realidade em que cada vez mais o ambiente tecnológico mostra o quão valioso é o tempo, onde os fatores distância e transporte, por exemplo, impactam no dia a dia, Wilsa entende que a grande tendência do EaD será a busca de certificações para esses cursos que, em suas palavras, eram “considerados uma pílula para aprimorar determinada competência”.
Para a professora da UNB, em um mundo em constante transformação, onde posições de teletrabalho começam a surgir como alternativa para a racionalização de custos e tempo, cada vez mais os processos educacionais também são impactados e o aluno, diante do mercado competitivo, vai necessitar de certificações antes mesmo da conclusão de um curso superior de dois ou quatro anos. “As universidades vão em busca dessas certificações para os seus MOOC, que poderão, quem sabe, ser somados como créditos para a sua formação”, pontua.
DESAFIOS – Segundo Elena Maria Mallmann, doutora em Educação e professora adjunta da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), em artigo escrito em conjunto com a doutora em Didatologia das Línguas e Culturas e pesquisadora da Universidade Aberta de Portugal, Ana Maria Ferreira Nobre, a inovação pedagógica mediada por tecnologias em redes no mundo digital é um desafio contemporâneo no ensino superior. Na concepção das acadêmicas, os MOOC e os Recursos Educacionais Abertos (REA) na formação universitária não podem apenas ficar na disponibilização de conteúdos educativos on-line e na busca massiva de matrículas.
Para elas, mesmo com “um vasto leque de ferramentas em plataformas tecnológicas sofisticadas”, os REA e os MOOC sem uma reflexão didática maior “não serão um caminho aberto para o ensino superior digital, mas mais um mecanismo para colecionar certificados e aligeiramento da formação do aprender a fazer por competências”.
Com um certo alinhamento com Elena e Ana, as professoras Carla Netto, Lucia Giraffa e Elaine Faria em seu livro Graduações a Distância e o Desafio da Qualidade (EdiPUCRS) apontam que o EaD “traz necessariamente um novo conceito de professor”, que − além das competências de conteúdo −precisa ter competência de metodologias em EaD, entre outras.
Curiosamente, em um país onde o governo atual questiona o legado de Paulo Freire, o livro da EdiPUCRS acaba registrando que, no ensino on-line, cabe ao professor “a função de mediação da construção do conhecimento”, não havendo mais espaço para o perfil “transmissor de conteúdos”, com o aluno sendo o centro do processo.
Altruismo, marketing e modelo de negócio
Com investimentos que ultrapassaram os US$ 110 milhões entre 2002 e 2010, grande parte do trabalho inicial sobre as bases que se sustentam hoje o atual EaD foi financiada por universidades e instituições como a Fundação William e Flora Hewlett e organismos de financiamento do Reino Unido.
De acordo com Wilsa Maria Ramos, a Universidade de Harvard foi a primeira a usar o termo Open Educational Resources, quando decidiu que todo o seu conteúdo deveria estar “aberto para a humanidade”.
Em parte do meio acadêmico, no entanto, dúvidas foram lançadas sobre o quão eram realmente altruístas os motivos. O projeto acabou sendo acusado de imperialista, uma vez que refletia basicamente as realidades de países altamente desenvolvidos, com interesses muito claros na criação e disseminação de conhecimento.
Em extenso artigo para a espanhola Revista de Educación a Distancia, o professor António Teixeira, do Departamento de Educação e Ensino a Distância da Universidade de Lisboa, acaba revelando que, dos momentos iniciais do movimento, caracterizados pelo fascínio da disseminação livre de materiais de estudo produzidos por instituições de prestígio, “de simples mas poderosos instrumentos de marketing institucional”, os REA passaram a ser “entendidos como elementos mais centrais da cadeia de valor”. Entre suas credenciais acadêmicas, ele, além de professor visitante na Universidade Nacional Aberta da Coréia, já ministrou cursos na Universidade de Oxford, na Universidade Roma 3, na Universidade Nacional de Educação a Distância e na Universidade Estadual do Ceará.
De forma clara e objetiva, Teixeira disse: “A utilização de REA poderia constituir uma forma de proporcionar uma aprendizagem massificada, de modo mais económico e rápido”, pontuou ao indicar ainda que a descoberta de que os REA poderiam gerar receitas não apenas pelo eventual número de futuros estudantes que uma instituição poderia aspirar recrutar em função da exposição do conteúdo produzido, mas também por um conjunto de serviços complementares que se poderia oferecer.
O artigo, datado de setembro de 2012, profetizou a possibilidade das universidades conjugarem simultaneamente estratégias de competição e colaboração entre si, o que já se tem verificado através de joint-ventures e franquias. São as escolas de nível superior reproduzindo uma realidade consolidada no setor industrial, onde as empresas partilham recursos e fornecedores independentes ao mesmo tempo em que competem entre si.
Resta agora saber se, com a adoção generalizada de práticas educacionais abertas, a profecia de Teixeira se completa com a desregulação da prática do magistério e a diminuição dos corpos docentes e acadêmicos próprios, com a crescente subcontratação externa de serviços nesses domínios funcionais. Não é a toa que Teixeira terminou seu artigo com essa pergunta: “Como poderão as universidades, independentemente do seu modelo de organização atual, adaptar-se a este desafio da abertura à rede e em rede?”.
Uma preocupação também para as entidades representativas dos professores mundo afora, advinda do mais novo “modelo de negócio” educacional.