No ensino público, aulas a distância são na base da folhinha
Fotos: Foto: Igor Sperotto (esq e dir. inferior)) e Anna-lena Menna Barreto (dir. superior)) Fotos: Foto: Igor Sperotto (esq e dir. inferior)) e Anna-lena Menna Barreto (dir. superior))
Na casa de Samantha Nassif, a rotina segue intensa apesar da quarentena. Os três filhos − de cinco, 12 e 16 anos − acordam cedo para ter aulas on-line pelo computador ou smartphone. “Todo mundo acorda no horário de sempre. Eles começam a assistir às aulas e eu vou trabalhar no home office”, conta. O mesmo acontece na casa de Milene Wainberg, mãe de uma menina de sete e de um adolescente de 14 anos. Eles recebem todo material pelo Google Classroom e têm aulas diárias pelo Zoom, um programa de reuniões on-line por meio de vídeo. “É como se eles estivessem em aula mesmo”.
Os filhos de Nassif e Wainberg estudam nos colégios particulares Leonardo da Vinci Beta e Israelita, de Porto Alegre, que rapidamente se adaptaram às novas condições de ensino impostas pela pandemia. Uma realidade muito diferente daquela enfrentada pelas escolas públicas do Rio Grande do Sul, onde o “ensino a distância”, quando muito, se resume a algumas folhinhas de exercício enviadas pelo WhatsApp.
Quando as aulas da rede estadual foram suspensas, em 19 de março, a Secretaria Estadual de Educação informou que caberia à cada escola decidir a melhor maneira de prosseguir com as atividades, conforme suas condições. As “aulas programadas”, segundo o governo, “estão disponibilizadas de modo que todos tenham acesso, seja por mensagens de WhatsApp ou Facebook, compartilhamento de arquivos de áudio e vídeo, por e-mail, por salas virtuais, ou até mesmo pela entrega de materiais didáticos nas áreas rurais do Estado”.
Esta garantia de acesso, no entanto, existe apenas na cabeça dos gestores do governo do estado. “Não sei se o material está chegando a todo mundo”, afirma Jorge Luiz Santos de Souza, professor de Geografia na Escola Estadual Adonis dos Santos, de Viamão, que manda atividades para seus alunos pelo Facebook. “Tu imagina, meus alunos da Vila Martinica, aqui em Viamão. Alguns têm um aparelho celular, mas boa parte não tem nada”, conta. Ele próprio está tendo dificuldade para trabalhar de casa: “A Secretaria de Educação mandou um aplicativo que é tipo um caderno de chamada virtual, mas no meu celularzinho eu não consigo abrir”.
Para piorar, Souza só entrou em sala de aula uma vez este ano, já que o início do semestre atrasou por causa da greve do magistério. “Os alunos nem me conhecem, e agora estão recebendo a matéria sem nenhuma explicação. O efeito é desastroso, isso é antididático”.
Periferia e interior têm problemas parecidos
O desafio de quem trabalha com alunos da periferia é parecido com o enfrentado pelos educadores no interior do Rio Grande do Sul. Milton Volnei Bobsin é diretor de uma pequena escola estadual de campo em Itati, no Litoral Norte. Para manter as atividades durante a quarentena, os estudantes foram autorizados a levar os livros didáticos para casa. As crianças menores, que ainda não têm livros, receberam folhinhas de exercícios preparadas às pressas pelos professores. O contato para tirar dúvidas é feito por grupos de WhatsApp. “Mas em muitas casas o celular não pega. Imagina, aqui nós estamos no interior do interior”, diz Bobsin.
Na outra ponta do problema, nas residências dos estudantes em distanciamento social, também são inúmeras as dificuldades. Henrique, de oito anos, estava recebendo as atividades da escola no formato de folhas de exercício preparadas pelos professores e enviadas pelo WhatsApp. Como não tem impressora, a mãe Marília Filippelli tinha que copiar tudo a mão para o papel. Os livros didáticos de Henrique – os mesmos que a escola de Itati permitiu que as crianças levassem para casa – ficaram na Escola Estadual Imperatriz Leopoldina, do bairro Petrópolis, em Porto Alegre. Para piorar, o menino não recebeu nenhuma nova tarefa desde o dia 6 de abril. “Estou tendo que liberar ele para jogar videogame e assistir vídeos no Youtube, porque não tem absolutamente nada para ele fazer. Às vezes, é só olhar para as paredes mesmo. O colégio é maravilhoso, mas acho que está sendo difícil para as escolas públicas”, desabafa Filippelli, que também se divide entre Henrique, uma filha de dois anos, as tarefas domésticas e o trabalho em um call center.
E quando a escola não mantém nenhum contato com os alunos, e a maior preocupação é dar de comer aos filhos? É esta a situação na casa de Vanessa, moradora do bairro Glória e mãe de um menino de cinco anos: “Eu fico ensinando ele a escrever o nome. Mas ele gosta da aula, fica perguntando quando vai voltar”. Ela e o marido são autônomos e estão praticamente sem trabalho desde que começou a pandemia. “Recebo mensagens de mães dizendo que a família está sem comida em casa. Estão mais preocupados com a sobrevivência do que com o próprio ensino”, resume uma professora da rede municipal de Porto Alegre, que prefere não se identificar.
Atividades a distância contarão como dias letivos
Foto: Igor Sperotto
Segundo o Plano de Trabalho definido pela Secretaria Estadual de Educação para a rede estadual de ensino, os exercícios que estão sendo feitos em casa vão contar como dias letivos, desde que os alunos entreguem as atividades e elas sejam avaliadas pelos professores.
Ao mesmo tempo, o Plano determina que as atividades domiciliares sejam elaboradas “com base em objetos de conhecimentos já abordados em sala”. Como não é permitido o ensino de novos conteúdos neste período, o cronograma das disciplinas invariavelmente vai atrasar. “Essa é a nossa preocupação. Como fazer depois para que os alunos possam vencer os conteúdos?”, questiona Helenir Schürer, presidente do Cpers, sindicato dos professores estaduais. Schürer não considera as atividades que vêm sendo feitas em casa como educação a distância – EaD – e tampouco acha que o governo deva seguir este caminho. “Não são 100% dos alunos que têm acesso à internet, e pedagogicamente não é adequado”, afirma.
A avaliação é a mesma da presidente do Conselho Estadual de Educação, órgão responsável por fiscalizar e regrar o ensino das redes pública e privada, com a exceção das cidades que têm seus próprios conselhos municipais, como Porto Alegre.
Segundo Sônia Maria Seadi Veríssimo da Fonseca, caberá a cada instituição avaliar a necessidade de recuperar as aulas após o fim do isolamento: “Cada professor sabe as dificuldade que tem, então não dá para impor uma regra geral. A escola poderá estender o período de aula, ou dar aulas extras no contraturno, ou usar o recesso de julho”.
SALÁRIOS – Os professores da rede estadual estão recebendo com atraso há mais de 50 meses. Aqueles que participaram da greve do ano passado também estão tendo descontos de até 30% nos vencimentos, segundo o Cpers. “Eu tenho que usar a minha internet para mandar os materiais para os alunos. Eu pago isso, mas quase não estou recebendo, apesar de termos recuperado as aulas”, reclama o professor de Viamão, Jorge Luiz Santos de Souza.
O recurso da categoria contra o corte do ponto dos grevistas iria ser julgado no dia 23 de abril, mas foi retirado de pauta a pedido do governo do estado. Os professores também reclamam das novas regras anunciadas pelo governo Leite para calcular a gratificação de difícil acesso. Segundo um cálculo do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), antes um professor com jornada de 40h poderia ganhar no máximo R$ 1.260,00, de difícil acesso. Pelas novas regras, este valor cai para R$ 504,00.
Cada escola faz como pode
O governo federal retirou a obrigatoriedade de as escolas cumprirem os 200 dias letivos previstos em lei, mas manteve a exigência de 800 horas de aula. Isso quer dizer que as instituições poderão concentrar mais horas em um único dia. Mas ninguém sabe como medir o tempo das atividades feitas em casa durante a pandemia. “Não dá para contar estas atividades hora-a-hora. A escola mensura mais ou menos por aquela quantidade de material que está mandando”, diz Fonseca.
Se na rede estadual a ordem é “cada escola faz como pode”, na rede municipal de Porto Alegre não há ordem nenhuma. As aulas dos ensinos fundamental e médio estão suspensas desde o dia 18 de março, e a educação infantil parou no dia 23. No site da Secretaria Municipal de Educação (Smed) da capital não há nenhum comunicado para as escolas e professores, e tampouco informações sobre a contagem dos dias letivos.
A falta de orientação fica clara no relato da professora citada no início da reportagem, que prefere não se identificar. Ela trabalha em duas escolas municipais da periferia de Porto Alegre, e cada uma está agindo de uma maneira. “Em uma das escolas a supervisora pediu que cada professor elaborasse uma atividade para contar como dia letivo. Na outra escola a diretora está esperando alguma orientação da Smed”, conta. A reportagem entrou em contato com a Smed, mas não obteve retorno até o fechamento desta reportagem.
“Em momentos de crise como esse, sinto muita falta de uma palavra do setor educacional do estado. Essa falta de planejamento contrasta com o que se vê em alguns outros estados”, diz a professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), Maria Beatriz Luce. Em São Paulo, o governo estadual criou um aplicativo para os alunos da rede pública terem aulas em vídeo, que também estão sendo transmitidas pela TV Cultura. O mesmo formato poderia ser adotado no Rio Grande do Sul com a TVE, mas segundo a Secretaria Estadual de Educação “ainda não há uma parceria estabelecida com a TVE” para transmitir as aulas. O governo paulista também fez um acordo com as operadoras de internet para que o consumo de dados neste período seja pago pelo Estado, e não pelas famílias dos alunos.
[Nota da redação: Em 5 de maio (após o fechamento da edição impressa do Extra Classe), 45 dias depois a suspensão das aulas na rede estadual, o governador Eduardo Leite anunciou que a TVE vai transmitir aulas preparatórias para o Enem. As transmissões, que também serão feitas pelo Youtube, começam no dia 15 deste mês, sempre entre 19h e 22h15min.]
Para Luce, especialista em políticas públicas na área da Educação, a pandemia aumenta as desigualdades não só entre os ensinos público e privado, mas também dentro do próprio setor particular. “As desigualdades de qualidade dentro do setor privado são tão grandes quanto no setor público”, afirma.