Ensino superior privado busca saídas para sobreviver
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A Cogna Educação, conglomerado com 2,4 milhões de estudantes, dos quais 844 mil no ensino superior, e que engloba a Kroton/Anhanguera, registrou prejuízo líquido de R$ 451,9 milhões no segundo trimestre de 2020 contra um lucro de R$ 139,8 milhões no mesmo período do ano passado. A holding é apresentada como o maior grupo educacional do mundo.
A Yduqs, por sua vez, com 750 mil estudantes e cuja principal marca é a Estácio, também teve prejuízo líquido no segundo trimestre deste ano: R$ 79,5 milhões, contra um lucro de R$ 194,8 milhões obtidos no mesmo período de 2019. No Brasil, três de cada dez universitários do ensino privado frequentam instituições mercantis, listadas em bolsas de valores.
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Por trás dos números desastrosos, que atingem também os grupos Ser Educacional e Ânima, estão a alta evasão de alunos durante a pandemia e o aumento expressivo nos níveis de inadimplência, cenário agravado pela falta de uma sinalização clara do Ministério da Educação (MEC) para o ensino a distância durante a pandemia.
O ministro Milton Ribeiro afirmou em setembro, em entrevista para o jornal O Estado de São Paulo, que cabe aos estados determinar o retorno das aulas presenciais, em todos os níveis de ensino. “Não temos esse tipo de interferência”, disse em relação às atribuições do MEC.
Também criticou a proliferação de cursos superiores no país que, segundo ele, faz parte de uma política equivocada. “Muitas vezes o sonho brasileiro é ter um diploma, o pessoal mais simples, mais pobre. Não sou contra isso. As pessoas devem ter uma ambição sadia de ter um curso superior, o primeiro formado na família, tudo isso acompanho e sei que tem o seu valor, mas em termos de política nacional é equivocado. Não adianta ter o diploma e não ter a expertise, o conhecimento”, declarou ao jornal.
Na contramão de seu antecessor, Abraham Weintraub, Ribeiro criticou ainda o corte de R$ 1,5 bilhão no orçamento das universidades públicas e institutos federais para 2021 e pediu “reconsideração” por parte da equipe econômica do governo.
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A opinião não foi bem recebida pelo “mercado”, onde se abrigam os principais grupos educacionais do país que fizeram fortuna nos últimos anos justamente com a expansão dos cursos superiores para populações que até então não tinham acesso às universidades.
As declarações de Ribeiro se contrapõem à posição do MEC bolsonarista até então, que visa turbinar as chamadas “instituições mercantilistas” em detrimento das universidades federais, consideradas um antro de esquerdistas pelo governo. Weintraub já havia sinalizado, durante o 12º Congresso Brasileiro da Educação Superior Particular, em 2019 (a edição deste ano não foi realizada devido à pandemia), que o setor é prioridade para a ampliação do número de vagas. Ele defendeu a desregulamentação do ensino privado e novas formas de crédito estudantil.
PANDEMIA – O movimento, agravado pela pandemia, é de um esvaziamento paulatino das universidades federais e um crescente avanço da educação privada – não apenas no campo superior, mas em todos os níveis de ensino. O reposicionamento da Kroton, nesse sentido, é exemplar: consolidado em outubro do ano passado, fatiou o grupo em quatro segmentos sob o guarda-chuva Cogna e concentrou investimentos em prestação de serviços para o ensino básico por meio das marcas Saber e Vasta. O objetivo é dominar o fornecimento de material para o Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD) – um mercado de 33 milhões de alunos comandado pelo MEC.
A aposta do mercado na educação básica
Passada a euforia do Financiamento do Ensino Superior (Fies), que em 2014 garantiu 690,5 mil novos contratos para as redes privadas, de acordo com dados do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), num valor de transferência estimado em R$ 12 bilhões, a hora é de, segundo os analistas de mercado, investir na educação básica. A ponto do segmento já representar cerca de 30% da receita do grupo Cogna, ante meros 12% há dois anos. “O setor da educação superior está sangrando, mas a educação básica é um oceano azul parecido com o que era o ensino superior há alguns anos”, disse o corretor de valores Marcel Zambello.
A mudança na Estácio ocorreu um pouco antes, em julho de 2019. Também voltada para o desenvolvimento de novos negócios no segmento de serviços de gestão e de fornecimento de material didático, o grupo Yduqs teve receita líquida de R$ 3,5 bilhões no ano passado e concentra 15 diferentes “marcas” de ensino, entre elas Estácio e Ibmec.
“Hoje a educação superior brasileira está praticamente dominada por esses dois grupos (Cogna e Yduqs), e desde pelo menos dois anos atrás que já observamos esse interesse também pelo mercado da educação básica. O processo de expansão, que deve tomar um rumo imprevisto a partir da pandemia, fez surgir diferentes empresas educacionais que oferecem um vasto cardápio de formação acelerada para as necessidades do mercado”, avaliou a professora Fátima Silva, vice-presidente da Internacional de Educação para a América Latina (IEAL).
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Para ela, a briga pela fatia do livro didático não é apenas mercantil. “O PNLD é o maior programa de distribuição gratuita de livro didático do mundo. E vai crescer ainda mais, pois a nova Base Nacional Comum Curricular prevê que essa distribuição seja anual, e não mais a cada três anos. Isso abre a possibilidade de uma disputa curricular, de conteúdo, muito forte, inclusive com articulações envolvendo o próprio MEC”, disse a dirigente, que alerta para outro aspecto: no Brasil, em função da dimensão continental do país, há um forte investimento na educação a distância.
“Como o objetivo dessas universidades é lucrar e distribuir dividendos para acionistas que garantem a capitalização, as novas tecnologias de comunicação são usadas para fazer uma formação aligeirada. Isso é uma realidade, principalmente nas licenciaturas. Quem, de fato, garante a pesquisa, garante a ciência, são as universidades públicas, é o investimento estatal”, completa Fátima Silva.
Hegemonia do setor privado e guerra ao conhecimento
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Valeska Fortes de Oliveira, educadora da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e integrante do Grupo de Estudos sobre Universidade (GEU), liga esse movimento de hegemonia das instituições privadas também à guerra ideológica travada pelo governo contra o conhecimento.
“O interesse em desqualificar as universidades públicas compõe as narrativas que o grupo no governo, e seus apoiadores, construíram para passar à sociedade a ideia de que se trata de espaços de formação ideológica, de pessoas de esquerda e, numa concepção de vida, com ideias e concepções libertárias”, ponderou a pesquisadora. O contraponto dessa tese seria uma universidade de capital privado, voltada às técnicas objetivas de ensino, altamente tecnológica, moderna e do mundo corporativo.
O problema é que o contraponto não se encaixa no discurso de qualificação que o setor privado recebe no Brasil: de 2.066 faculdades, universidades e centros universitários com indicador de qualidade (IGC) divulgado em dezembro do ano passado pelo Inep, apenas 26 instituições privadas tiveram nota máxima (5). Nenhuma delas integra qualquer um dos grupos com ações listadas em Bolsa de Valores. Os indicadores federais de cursos e instituições são classificados em uma escala de 1 a 5.
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VORACIDADE – Mesmo em plena crise, ou talvez por causa dela, a guerra pelo mercado se acirrou ainda mais no segundo semestre do ano. A Ser Educacional, grupo do bilionário paraibano José Janguiê Bezerra Diniz, que detém marcas importantes nos mercados em ascensão do Norte e do Nordeste brasileiro, anunciou no dia 13 de setembro um compromisso com a Laureate, que em 2010 incorporou o Centro Universitário Ritter dos Reis, para formar o terceiro conglomerado de ensino superior privado do país.
Se o acordo for de fato confirmado, até meados de outubro, o grupo terá 454 mil alunos. Valor do negócio: R$ 1,7 bilhão e mais um montante não estimado referente a 44% das ações da Ser Educacional que ficarão de posse do conglomerado norte-americano.
A Yduqs, que detém o grupo Estácio, já anunciou que fará uma proposta de aquisição à Laureate, que registrou receita líquida de R$ 2,2 bilhões no ano passado em 50 campi e mais de 500 polos de ensino a distância, especialmente em São Paulo. Para a controladora da Estácio, uma proposta pode significar a liderança do segmento privado de ensino superior com mais de um milhão de estudantes. O prazo para novas propostas se encerra no dia 13 de outubro.
O diretor do Sinpro/RS, Marcos Fuhr, vê com preocupação a disputa comercial pela hegemonia da educação superior no país. “Lamentamos que se consolide essa prática mercantil de ensino. A voracidade das aquisições nos leva a uma perspectiva de agravamento da flexibilização das garantias de trabalho e de uma desregulamentação cada vez maior do segmento, com a respectiva queda na qualidade do ensino”, avalia.
Raio-X das instituições de ensino brasileiras com ações na Bolsa de Valores
COGNA
Sede: São Paulo
Marcas principais: Kroton (ensino superior), Plato (gestão para ensino superior), Saber (prestação de serviços para ensino básico) e Vasta (gestão para escolas e produção e material didático).
Alunos de nível superior: 844 mil (2,4 milhões em todos os níveis)
Lucro líquido no segundo trimestre: – R$ 451,9 milhões
YDUQS
Sede: Rio de Janeiro
Marcas principais: Estácio e IBmec
Alunos de nível superior: 750 mil
Lucro líquido no segundo trimestre: – R$ 79,5 milhões
Foto: Gabriel Zanella / Divulgação
SER/LAUREATE
Sede: Pernambuco
Marcas principais: Uninassau (PE), Unama (PA) e UNG (SP)
Alunos de nível superior: 183 mil (271 mil da Laureate)
Lucro líquido no segundo trimestre: + R$ 54,7 milhões
ÂNIMA
Sede: São Paulo
Marcas principais: UMA (MG), São Judas (SP), Unisociesc (SC) e Unicuritiba (PR)
Alunos de nível superior: 145 mil
Lucro líquido no segundo trimestre: + R$ 9,4 milhões