Aporte milionário prepara cessão de prédio do Instituto de Educação à empresa privada
Foto: Igor Sperotto
Criado em 1937 como primeira escola de formação de professores do Rio Grande do Sul, o Instituto de Educação General Flores da Cunha, em Porto Alegre, está sendo direcionado pelo governo para a implantação de um museu privado e de um centro tecnológico de formação de professores.
Em Madri (Espanha), no início do mês, na sede da Organização de Estados Ibero-Americanos para a Educação, a Ciência e a Tecnologia (OEI), Leite assinou um protocolo de entendimento com o IDG para o início da concepção do projeto Museu Escola do Amanhã, que será instalado no Instituto.
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A expectativa é de que a primeira fase de implementação seja iniciada já no primeiro semestre do próximo ano.
Para tanto, Leite anunciou recursos de R$ 59,3 milhões no orçamento de 2022 para a conclusão da reforma do prédio e para a implantação do museu e dos centros de formação. Só para concluir a reforma capaz de abrigar o museu serão R$ 25 milhões. Um negócio milionário.
O restante da estrutura do Instituto, que totaliza 8.500 metros quadrados de área construída, servirá para a implantação do chamado Centro de Desenvolvimento de Profissionais da Educação, que deverá funcionar em convênio com universidades.
Além disso, também está prevista a instalação do Centro Gaúcho de Educação Mediada por Tecnologias. A comunidade escolar não foi ouvida sobre a nova finalidade do prédio, que é tombado pelo patrimônio histórico estadual.
“Precisamos estar dispostos a sempre repensar a forma como trabalhamos o ensino e a aprendizagem. Por isso, queremos rechear este prédio (do Instituto de Educação) para dar a ele a vida que entendemos que é importante que tenha: não ser apenas a formação para uma centena de alunos, mas ser uma escola de escolas”, disse o governador na cerimônia que formalizou o negócio com o IDG.
Foto: Gustavo Mansur / Palácio Piratini
Figurinha carimbada
O diretor de projetos do IDG, Robson Almeida, confirmou que o Instituto foi “convidado” pelo governo do Estado a pensar na implantação do que chamou de “grande complexo” de educação. “O edifício do Instituto não vai ser um museu, e sim um complexo educacional voltado para o futuro”, disse.
Segundo ele, o IDG atua como parceiro técnico do governo gaúcho “nessa primeira fase de conceituação”. A assessoria de imprensa do Museu do Amanhã afirmou que o prazo para implantação do museu, a partir da assinatura do protocolo, é de dois anos.
Mas Almeida advertiu que, “até o momento”, não há nenhuma proposta formal para o IDG administrar esse equipamento cultural no Rio Grande do Sul. “Não se trata de uma filial ou apêndice do Museu do Amanhã. O que podemos afirmar é que, em razão da discussão dos futuros possíveis fazerem parte de ambas as instituições, (os museus) poderão encontrar caminhos que possam percorrer juntos, em redes de discussão ou até projetos executados em colaboração”, informou.
A secretária de Educação do estado, Raquel Teixeira, disse que Almeida será responsável pelo restauro do prédio do IE e também pela implantação do museu, que abrigará uma escola modelo.
Segundo ela, as dificuldades burocráticas para a adaptação do projeto original de reforma à atual proposta do governo, elaborado em 2014 sem a previsão de equipamentos culturais, já foram vencidas junto à Procuradoria-Geral do Estado (PGE). Mas não deu mais detalhes.
E tampouco recebeu a comunidade escolar do Instituto de Educação, que é contra a mudança de perfil da escola.
“Foge totalmente do propósito educacional que orienta nossa instituição. Estamos esperando até hoje, desde julho, a reunião prometida pela secretária de educação para nos inteirarmos da proposta. Mas até agora nada”, criticou a presidente da Comissão de Restauro do IE, Maria da Graça Ghiggi Moralles.
O IDG é figurinha carimbada no recente processo de privatização de equipamentos culturais do país.
Organização social (OS) sem fins lucrativos, mas levantando recursos milionários em contratos com o poder público, a maioria sem licitação, o Instituto é dirigido pelo executivo Ricardo Piquet, engenheiro de formação que fez carreira à frente da Fundação Roberto Marinho, das Organizações Globo.
Em 2020, o pernambucano Piquet chegou a ser cotado para assumir a Secretaria Especial da Cultura do governo federal, que herdou as funções do ministério extinto pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido) logo que tomou posse.
Ele também é sócio de uma empresa de construções e de projetos arquitetônicos – a Arcopleno – e da Juno Cultural, empresa especializada na gestão de museus e na exploração de lugares e prédios históricos.
Além do Museu do Amanhã, que é bancado pela prefeitura do Rio de Janeiro e sustentado pelas Organizações Globo, além de outros patrocinadores, o IDG faz a gestão operacional do Fundo da Mata Atlântica, que tem um aporte anual de R$ 50 milhões com recursos do governo estadual carioca. Desde 2018, administra também o Paço do Frevo, em Recife (PE).
Dono igualmente da Sinax, empresa desenvolvedora de sistemas informatizados, em 2018 Piquet foi denunciado junto com outras nove pessoas, pelo Ministério Público do Paraná, de superfaturar o depósito e a digitalização de documentos para a prefeitura de Maringá e de fraudar o próprio processo licitatório que resultou na sua contratação.
A Operação Arquivo apurou que a Sinax, contratada em 2011, pode ter causado prejuízo de R$ 18 milhões ao município. A denúncia foi aceita pela Justiça do Paraná, em processo que tramita na 2ª Vara Criminal de Maringá e o empresário virou réu.
A prefeitura da cidade era então comandada por Sérgio Barros II (PP), irmão do ex-ministro da Saúde Ricardo Barros – atual líder do governo na Câmara e acusado por diversos crimes na CPI da Covid.
No dia 8 de outubro, a promotora Roberta Brenner de Moraes, da Promotoria de Defesa do Patrimônio Público de Porto Alegre, abriu procedimento de investigação sobre a conduta do governo estadual na decisão e instalar um museu no IE. A secretaria de educação tem até a próxima quinta-feira para responder ao questionamento do Ministério Público estadual.
Foto: Igor Sperotto
2.500 alunos
A reforma do Instituto de Educação, com capacidade para abrigar 2.500 alunos em todos os níveis de educação, está recheada de problemas. A escola começou a apresentar os primeiros sinais de deterioração ainda em 2007, quando o ginásio de esportes foi interditado.
A partir de 2011, os danos estruturais se estenderam para as salas de aula e para o auditório, culminando com o desabamento de uma parte do teto de gesso, em 2013. Foi a senha para uma reforma ampla do prédio, erguido 1937 a partir de projeto do arquiteto Fernando Corona.
No ano seguinte, um amplo estudo de restauro foi elaborado e aprovado pela comunidade escolar, secretaria estadual de educação e secretaria de obras. A empresa de engenharia Porto Novo venceu a licitação de reforma e foi contratada no final de 2015, o que obrigou os quase 2 mil alunos de então a se dividirem entre quatro espaços distintos. A obra andou pouco: menos de 7% do projeto foram executados pela construtora que, alegando falta de liquidez, rescindiu o contrato em 2017.
A construtora carioca Concrejato Engenharia, um das empresas mais conceituadas no país em restaurações de edifício históricos, venceu a segunda disputa para a reforma do Instituto de Educação, em outubro de 2018, e tocou o projeto até agosto de 2019. Parou alegando que o governo Leite não fez nenhum repasse do valor contratado – cerca de R$ 23 milhões, que seriam bancados pelo Fundo Nacional da Educação. Desde então, o espaço tem se deteriorado.
Comunidade escolar excluída do debate
A diretora do IE, Alessandra Lemes, salientou que a comunidade escolar, que inclui professores, pais de alunos e funcionários, não foi consultada sobre a instalação de um museu privado na instituição e que não recebeu nenhuma informação sobre o projeto. “Esperamos que a escola retorne em sua integralidade, com nosso espaço de atuação pedagógico preservado”, disse.
A diretora de obras da Concrejato, Maria Aparecida Soukof, informou que a empresa e o governo do estado estão negociando desde agosto um aditivo ao contrato para viabilizar a retomada das obras. E que o projeto deverá mesmo ser readequado para receber as novas estruturas.
O aditivo inclui o pagamento de valores atrasados, da ordem de R$ 5 milhões, e a repactuação do prazo de entrega, prevista agora para os próximos 15 meses – ou seja, em meados de março de 2023. Soukof espera retomar o restauro ainda em 2021.
A construtora fez uma vistoria no prédio e constatou que as estruturas estão preservadas, embora parte do patrimônio cultural – incluindo mobiliário e três pinturas históricas para as artes plásticas do estado – esteja mal armazenado e não tenha sido examinado pela empresa.
As telas Garibaldi e a esquadra farroupilha (1919), de Lucílio de Albuquerque, e A chegada dos casais açorianos (1923) e A tomada da ponte da azenha (1922), ambas de Augusto Luiz de Freitas, que foram restauradas entre 2005 e 2009, fazem parte desse acervo mal abrigado.
A comunidade escolar organizou um movimento de âmbito estadual para pressionar o governo a retomar o projeto original de 2014. Um abaixo-assinado havia coletado, até a segunda-feira, 25, mais de 6,6 mil assinaturas contra a proposta do governador.