EDUCAÇÃO

Indígenas seguem abrindo espaço na educação superior do país

O aumento no número de indígenas na academia se deve muito às políticas de cotas adotadas a partir de 2012, mas também ao esforço individual e comunitário dos povos originários
Por Marcelo Menna Barreto / Publicado em 14 de abril de 2022

Foto: Igor Sperotto

Angélica Kaingang, mestranda em Política Social e Serviço Social na Ufrgs.

Foto: Igor Sperotto

Saber quantos já se graduaram no Brasil é uma informação que não é fácil de ser conseguida, afirma uma das maiores autoridades sobre o assunto no país, o professor do Instituto Federal da Bahia (IFBA) Edson Kayapó. “Sabemos que houve um aumento na entrada, mas dados como graduação ou pós-graduação são praticamente desconhecidos”, afirma. O Inep não informa. A Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) confirma a dificuldade. Em seus dados, registra que “o percentual de não informados para o item raça/cor é de quase 50%”.

Edson Kayapó, 49, saiu aos oito anos de idade de sua aldeia no estado do Amapá para dar sequência aos seus estudos e iniciar a sua carreira acadêmica. Após cursar História em Minas Gerais, abordou a importância da educação indígena diferenciada em seu mestrado e doutorado. Atualmente, ministra aulas no curso de Licenciatura Intercultural Indígena (Linter) na IFBA.

Para ele, o desafio agora é fazer as Instituições de Ensino Superior (IES) destinarem mais vagas em todas as áreas de conhecimento e colaborar com a autodeterminação e sustentabilidade dos territórios desses povos. Hoje, as cinco graduações mais procuradas por indígenas são Direito, Pedagogia, Administração, Enfermagem e Engenharia Civil.

No seu dia-a-dia, porém, os universitários de várias etnias se deparam com inúmeras dificuldades:  choque de culturas, necessidade da migração, preconceito e muita falta de informação. A região Sul é a que conta com menos presença indígena na academia.

Retrocesso durante a pandemia

Foto: Reprodução Diffocus/Acervo Pessoal

Entre 2018 e 2020 houve um decréscimo superior a 10 mil indígenas matriculados nas IES do país

Foto: Reprodução Diffocus/Acervo Pessoal

Até 2019, o percentual de indígenas nas IES vinha crescendo paulatinamente. O último censo do Inep mostra mais do que uma interrupção nessa curva ascendente. Por exemplo, em 2018, havia 57.706 indígenas matriculados e, em 2020, 47.267.

O decréscimo pode ser maior. No contexto da pandemia, tudo indica que a evasão aumentou. Em especial, ao levar em conta que as aulas presenciais foram suspensas e substituídas por aulas on-line.

A lógica é simples. Segundo o último Censo Demográfico nacional, realizado em 2010 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), dos 897 mil indígenas na ocasião identificados, 517 mil destes viviam em aldeias.

Em um país onde 43% dos residentes em zonas rurais não têm acesso à internet, o que se imaginar dos territórios indígenas? Basta lembrar que esses povos chegaram a ser ameaçados por uma tentativa de veto de Bolsonaro a medidas de segurança durante a crise sanitária, como o acesso à água potável, materiais de higiene, leitos hospitalares e respiradores mecânicos.

O isolamento causado pela pandemia afetou a população indígena no acesso às aulas online. Isso também acabou influenciando na inscrição do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), principal porta de entrada ao ensino superior no país.

Além de despencar o número absoluto de inscritos no exame, o qual registrou, em 2021, a menor participação desde 2007, a redução mais expressiva se deu na presença de pretos e indígenas ao se comparar ao período de 2020.

Indígenas lideraram esse triste índice. Com uma redução de 54,8%, 20.752 estudantes remanescentes dos povos originários não conseguiram fazer suas inscrições.

72% dos estudantes indígenas estão nas IES privadas

Estudantes indígenas estão mais presentes nas IES privadas, 72% do total, conforme estudo da pesquisadora e antropóloga Antonella Tassinari. “Isso pode ter a ver com o fato de elas serem realmente mais acessíveis. Não têm o funil de alguns vestibulares, e, muitas vezes, elas estão em localidades mais próximas das terras indígenas”, explica.

Importante lembrar que existem, hoje, 305 etnias. Nelas, apesar de representar menos de meio por cento da população brasileira, ainda se verificam 274 línguas.

Outra triste realidade é que, com o passar do tempo, caso não haja uma política de preservação, esses idiomas e toda a sua cultura tendem a desaparecer. Os dados oficiais revelam: a maioria dos indígenas brasileiros não fala sua língua nativa, 57%.

Geograficamente, as regiões que concentram mais estudantes indígenas são Norte e Nordeste, com 56,5%. O Sudeste comparece com 26,1%, o Centro-Oeste, 9,5%, enquanto o Sul fica na última posição, 7,9%.

As dificuldades, o choque cultural e o preconceito

Foto: Antônio Carlos Banavita/Divulgação

Edson Kayapó, professor do Instituto Federal da Bahia (IFBA)

Foto: Antônio Carlos Banavita/Divulgação

Para cursar um ensino superior, os indígenas enfrentam uma série de desafios diários. Começa nos deslocamentos, na maioria das vezes, uma migração das comunidades para as IESs, localizadas nos centros urbanos; passam por dificuldades financeiras para arcar com custos de alimentação e moradia e o preconceito, entre outras situações.

Em Porto Alegre, desde março passado, estudantes indígenas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs) estão acampados em um prédio que foi cedido pela prefeitura da capital e, posteriormente, devolvido pela instituição. Essa foi a forma de protesto encontrada para que se viabilize uma Casa do Estudante Indígena naquela instituição.

O movimento teve início, principalmente, por universitárias que são mães, e não se trata da busca de um privilégio. A ideia, segundo Angélica Kaingang, mestranda em Política Social e Serviço Social na Ufrgs, é a criação de um espaço onde o modo de vida indígena seja respeitado.

“No nosso modo de vida, convivemos ligados fortemente com as várias gerações, das crianças aos mais velhos”, justifica. Nas demais residências universitárias mantidas pela UFRGS, os indígenas, diz ela, têm até acesso, mas a presença de crianças não é permitida.

Para o professor Edson Kayapó, o veto é um absurdo. “É inconcebível pensar uma criança separada da mãe. A unidade nuclear familiar é fundamental, é sagrada. Faz parte da tradição indígena”, lembra.

Com base em sua própria experiência nos estudos até chegar à posição que ocupa, Kayapó é taxativo: “Foi uma trajetória dolorosa que, acredito, não precisa ser assim. Os povos indígenas precisam ter acesso a todos os graus de ensino, mas com as suas tradições respeitadas pelas instituições de ensino e pesquisa”.

Foto: Autorretrato/Acervo Pessoal

Marília Pokwyj Krahô, estudante da
Universidade Federal do Tocantins (UFT)

Foto: Autorretrato/Acervo Pessoal

Marília Pokwyj Krahô, estudante de Engenharia Florestal no campus de Gurupi da Universidade Federal do Tocantins (UFT), relata uma tradição desconsiderada que sentiu com muito pesar.

“Minha avó faleceu e, pelos ritos do meu povo, eu deveria ficar um período de resguardo. A universidade não aceita isso, ao contrário do caso de outras religiões, como os Adventistas do Sétimo Dia. Eles não podem ter atividades aos sábados. No caso deles, a universidade aceita e se adapta”, compara.

Marília integra a coordenação do Encontro Nacional dos Povos Indígenas (Enei), que terá sua fase presencial no próximo mês de julho, em Campinas (SP). Para a estudante, o primeiro impacto significativo para um indígena que vai para um curso superior é o choque cultural. Depois, o preconceito.

“Vivemos em um país extremamente miscigenado e tem gente que olha um cotista, por exemplo, que não pareça indígena – como se indígena tivesse só uma cara – e vem com piadinhas tipo ‘índio Nutella’”, lamenta.

Mesmo assim, diante de outra série de adversidades, como a luta pela manutenção do Programa Bolsa Permanência (PBP), Marília elenca um motivo de comemoração. “Conquistamos uma sala no campus onde nós, indígenas, podemos fazer as nossas reuniões, fumar nosso cachimbo, celebrar nossas vidas”, ressalta ela, que é a Cacique da comunidade no campus de Gurupi.

Diferenças entre os diferentes

Paulo André Ixati Karajá, estudante de Direito da UFT, se situa em uma posição mais privilegiada que seus colegas da UFRGS. Desde 2015, por empenho da União dos Acadêmicos Indígenas do Estado do Tocantins (Uneit), ele conta com uma casa de estudantes para chamar de sua.

Sua e de 17 outros colegas de cinco povos (Javaé, Karajá, Guarani, Krahô-Kanela e Xerente) e de futuros indígenas que um dia passarão por seus quartos.

A Casa Kranipí iniciou com a doação de um lote do estado e de recursos para a edificação, viabilizada por meio do Conselho Indigenista Missionário (CIMI). Hoje, integrando por convênio a política de ações afirmativas da UFT, o desafio é a manutenção.

“Sempre tivemos demora para a solução de problemas como goteiras e infiltrações, mas, desde que entrou o novo reitor (indicado por Bolsonaro), a situação piorou”, relata.

Paulo, por outro lado, salienta uma questão importante já resolvida entre os próprios residentes: o estabelecimento de uma forma de organização pluriétnica, devido às culturas diversas que coabitam a residência.

“Abrimos mão de um ou outro hábito que possa ser ofensivo para outra etnia”, diz o Karajá. “Grosso modo, a casa é como um aeroporto, onde gente das mais variadas culturas circulam. Nós somos os passageiros e temos que construir respeito”, ensina.

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