EDUCAÇÃO

Afastamento de professor do Anchieta aquece debate sobre perseguição ideológica  

Estudo aponta que 64,4% dos educadores já sofreram perseguição ou censura no trabalho, 63,7% têm medo de retaliações e 61,9% repensaram conteúdos por temor aos patrulhamentos
Por César Fraga / Publicado em 3 de novembro de 2023
Afastamento de professor do Anchieta aquece debate sobre perseguição ideológica  

Foto: Redes Sociais/ Reprodução

Foto: Redes Sociais/ Reprodução

Na última segunda-feira, 30 de outubro, ocorria audiência pública sobre perseguição ideológica a professores na Câmara dos Deputados, em Brasília. A 2.100 quilômetros dali, no Colégio Anchieta – uma das escolas privadas mais tradicionais e caras de Porto Alegre –, uma estudante adolescente do 9° ano do ensino fundamental gravava em áudio e vídeo trechos de uma aula de História sobre o conflito Israel e Hamas. Mais tarde, a gravação viralizaria e transformaria a vida do professor num verdadeiro inferno, resultando no seu afastamento pela escola.

Este não é o primeiro caso desde que eclodiu o conflito no oriente Médio. Cada vez mais tem ocorrido situações de patrulha a professores por questões de fundo político, por conta da inclinação ideológica dos pais ou dos próprios estudantes.

Poucas semanas atrás, os professores universitários Salem Nasser, da FGV (de origem árabe) e Michel Gherman, da UFRJ (judeu sionista e crítico a Netanyahu) foram hostilizados por suas posições sobre as ações militares em Gaza. Leia matéria do Extra Classe.

Não é de agora

Em 2022, auge da polarização política no país por conta das eleições presidenciais daquele ano, teve o caso do professor do Colégio Marista Sant’Ana, que foi demitido da instituição após fazer uma postagem em sua conta pessoal do Twitter na qual criticava o desperdício de água por latifundiários no município de Uruguaiana, que é um dos principais produtores de soja e arroz da região Oeste do Rio Grande do Sul. Em agosto passado a 2ª Vara do Trabalho de Uruguaiana entendeu que o professor sofreu danos morais. Com isso, o judiciário associou a demissão a um gesto de represália por parte da gestão escolar contra a livre manifestação do docente. O colégio foi condenado ao pagamento de R$ 30 mil e mais R$ 4,5 mil de honorários de advogados.

Em abril do mesmo ano, uma aula do ensino médio virou polêmica e cancelamento de um professor de biologia da escola Mario Quintana, de Pelotas, que usou dados científicos para demonstrar em sala de aula a relação entre a produção de carne e arroz e o efeito estufa.

A aula era preparatória para as provas do Programa de Avaliação da Vida Escolar (Pave), que serve de vestibular para acesso à Universidade Federal de Pelotas (UFPel).

Na ocasião, o proprietário e fundador da escola, que também é professor, não respeitou a liberdade de cátedra do colega, e se juntou a um grupo de pais de alunos e entidades ligadas ao agronegócio para publicar uma nota no Diário Popular, acusando o docente de ter cometido “um grande equívoco em sala de aula”.

Em março do ano passado, uma professora foi demitida por uma tradicional escola privada de Porto Alegre após acusações de “doutrinação” disseminadas em redes sociais por um aluno que não gostou de uma explanação em sala de aula. A docente abordava a histórica exclusão das mulheres do mundo do trabalho e da educação (do Iluminismo até a atualidade).

A professora de ciências humanas foi demitida aparentemente por pressão da família de um dos alunos. Ela tinha 19 anos de casa e é socióloga, pedagoga, doutora, mestre e licenciada em história. Em um ataque de fúria, o estudante acusou a docente de críticas a Bolsonaro.

Viés ideológico nas redes sociais

Inicialmente, o vídeo do caso do Anchieta repercutiu apenas em sites mais alinhados com a extrema-direita ou vinculados com o movimento Escola Sem Partido. E, aos poucos, foi ganhando as redes sociais com compartilhamentos em todo o país e em vários grupos no WhastApp.

O primeiro a repercutir foi o blogueiro Políbio Braga ainda no dia 30, que opinou: “viraliza nas redes sociais o vídeo de um professor de história do tradicional Colégio Anchieta, dos jesuítas, Porto Alegre, que em sala de aula atacou Israel e justificou os ataques criminosos dos naziterroristas do Hamas”.  O jornalista citou em seu post o texto do ex-vereador e advogado Valter Nagelstein publicado no Instagram em que acusa o docente de “antissemita”.

Faixa em frente à escola

Nesta quarta-feira, 1º de novembro, dois homens adultos ostentavam uma faixa no portão da escola com os dizeres “quem defende o Hamas, defende o terrorismo”.

Um deles, que se diz ex-anchietano, pulverizou um vídeo no WhatsApp em que diz: “é um absurdo que um professor em sala de aula ensine o contrário”, disse.

Posição do Sindicato

Na terça-feira, 31, posterior aos acontecimentos, o caso chegou ao conhecimento do Sindicato dos Professores do Ensino Privado (Sinpro/RS), que procurou imediatamente a direção da escola para agendar uma reunião.

De acordo com a diretora do sindicato e coordenadora do Núcleo de Apoio ao Professor (NAP), Cecília Farias, não são raros os episódios em que conteúdos de aulas ou posicionamentos mais firmes geram acusações infundadas de “doutrinação” e até afastamentos. Além de se caracterizar como assédio, situações como essas são uma violação aos direitos e à liberdade para dar aulas inerente à docência.

“O Sindicato estará sempre ao lado dos professores, ajudando na superação de conflitos no ambiente escolar. Neste caso, uma situação de assédio de parte de pais do Colégio, que não conseguem ouvir o que o professor disse e sim forçaram uma interpretação que o professor não deu. A expectativa é que o Colégio consiga desarmar essa lamentável situação com espírito fraterno e considere que também nesses momentos se faz grandes aprendizagens”, explica Cecília.

Apoio dos colegas ao professor

No dia 1º de novembro o Centro de Professores do Colégio Anchieta (CPCA) se manifestou via nota (a que o Extra Classe teve acesso) em apoio ao docente junto à direção da escola.

“Na referida aula, o colega  abordou o conteúdo referente aos conflitos árabe-israelenses, buscando despertar, conforme cabe ao ofício de um professor de história, a reflexão sobre os acontecimentos a partir de diferentes fontes e pontos de vista. Ao se espalhar pelas redes sociais, no entanto, uma pequena parte gravada da aula foi interpretada de forma equivocada por um número significativo de pessoas, que viram na abordagem do colega a escolha de um lado”, diz a nota.

Em outro trecho, os professores alegam que “como consequência da desinformação viralizada, as redes sociais foram inundadas de xingamentos, calúnias, inverdades, impropérios e ameaças contra ele, contra a escola e até mesmo contra o conjunto dos docentes da instituição, fato que gerou angústia, tristeza e um forte sentimento de injustiça no professor, em muitos alunos e em nós, seus colegas”.

Também chama a atenção o pedido enfático na mesma correspondência do CPCA à direção da escola para que haja algum tipo de restrição ao uso de celulares, o que já é previsto na Lei Nº 12.884/2008 , assinada pela então governadora Yeda Crusius, mas que nunca foi respeitada, porém ainda vigora.

“Diante do acontecido, gostaríamos de enfatizar a importância da restrição do uso de celulares em sala de aula, de forma a preservar professores e alunos, assim como a integralidade e a veracidade das informações e das reflexões que estão sendo feitas. Assim, podem ser evitadas manipulações, edições e diferentes usos indevidos de nossa imagem e de nosso fazer pedagógico. Nada temos a esconder do nosso trabalho, mas é perceptível o quanto pode ser nefasta a desinformação gerada pela permissividade no uso desses aparelhos. Por fim, reiteramos o nosso apoio ao colega e à instituição, diante do acontecido”, diz o texto.

Manifestação da escola

Um dia antes, no dia 31 de outubro, o Colégio Anchieta emitiu uma nota sobre o caso. Embora alguns sites, blogs e jornais on-line tenham noticiado a demissão do professor, a assessoria da escola, que é mantida pela Rede Jesuíta de Educação, a mesma da Unisinos, garantiu que por ora, o docente permaneceria afastado de suas atividades enquanto a instituição apurava os fatos e ouvia todas as partes.

Leia a íntegra da nota da escola

Porto Alegre, 31 de outubro de 2023.

O Colégio Anchieta lamenta o ocorrido durante uma aula de História do 9o Ano na segunda-feira, dia 30 de outubro de 2023. Dentro do processo de parceria escola, aluno e família, a Direção está averiguando o episódio, ouvindo pessoas da comunidade educativa e acompanhando os desdobramentos para discernir sobre as providências a serem tomadas.

Entendemos que nossa responsabilidade é agir cuidando dos nossos estudantes e de todas as pessoas que fazem parte de nossa comunidade. Objetivamente, precisamos, em contraponto ao mundo marcado pelo conflito e pelas dificuldades relacionais, estabelecer, o mais breve possível, o clima de normalidade, fundamental para a melhor condução do processo de ensino-aprendizagem.

Estamos cientes de que os conflitos fazem parte do cotidiano escolar, cabendo à Instituição a mediação educativa dos fatos, à luz dos princípios que regem a educação da Companhia de Jesus, pautada pela defesa inconteste do diálogo, da isenção e de uma cultura da paz, não compactuando com qualquer ato de violência ou de terrorismo.

Relembramos que nosso Colégio, em seu Projeto Educativo, caracteriza-se como espaço de construção de conhecimento e de uma convivência plural regida pelo respeito aos princípios, aos valores inacianos e ao bem comum.

Reafirmamos a disposição de manter abertos todos os canais de acolhida, escuta e diálogo com a comunidade escolar.

Perseguição ideológica a professores foi motivo de audiência na Câmara

Foi justamente por casos recorrentes como estes que as Comissões de Educação e de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados realizaram justamente na segunda-feira, 30, audiência pública sobre o aumento da perseguição ideológica a professores no Brasil.

Ataques de viés ideológico a docentes em escolas públicas e privadas têm sido cada vez mais corriqueiros, o que se agrava com as mídias sociais e a possibilidade de viralização de vídeos, áudios e denúncias de todo o tipo, com ou sem fundamento.

Para todos os participantes da audiência, tal prática é um tipo de violência sofrida pelos educadores e um ataque aos direitos humanos.

A sessão atendeu a um requerimento emitido pelas deputadas Talíria Petrone (PSol-RJ), Erika Hilton (Psol-SP) e professora Luciene Cavalcante (PSol-SP).

De acordo com Luciene, que coordenou a sessão, o ambiente escolar sempre foi caracterizado como um território de disputa, por ser um local de promoção e fortalecimento dos direitos humanos  fundamentais.  Entretanto, ela disse que a perseguição aos docentes têm sido intensificadas nos últimos anos por conta da onda conservadora no país.

“Temos casos em que professores/as são agredidos fisicamente, verbalmente, casos de violência moral, além de questões que afetam a saúde mental do trabalhador. Em escolas particulares, até terminam na demissão do profissional”, lamentou.

Para o diretor da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense do Rio de Janeiro (UFF), Fernando Penna, os atos  carregam o ódio direcionado a temáticas de direitos humanos e aos membros da comunidade educativa, já que “professores são defensores dos direitos humanos”, afirmou.

Ele ainda salientou os prejuízos que a liberdade de aprendizado dos alunos recebem quando um professor é privado de exercer o seu trabalho. “Uma gravíssima ameaça à garantia do direito à educação no Brasil”, criticou.

A conselheira do Sindicato dos Trabalhadores em Educação de Santa Catarina (Sinte-SC), Juliana Andozio, reforçou ainda o sofrimento que discursos de ódio impõem aos alunos, principalmente àqueles pertencentes a grupos minoritários.

“Isso (violência contra educadores/as) precisa ser investigado! É um absurdo, principalmente para nós, professores/as, que, além de mal remunerados, damos a nossa vida pela escola e ainda sofremos essa tortura e medo em sala de aula. Não dá para continuarmos assim!”, lamentou Juliana.

64% dos professores já sofreram algum tipo de perseguição

Pâmela Passos, diretora de extensão comunitária e tecnológica, da Pró-Reitoria de Extensão (Proex) no Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ), apontou que “não se trata de um fenômeno menor ou tampouco que irá passar”.

Segundo ela, há uma escalada de ódio e perseguição que acarretará consequências sérias no presente e para o futuro do país, baseada em um processo de “desdemocracia”, informou.

Resultados de um estudo coordenado por Pamela em 2021, na IFRJ, financiado pela Protect Defenders, que avalia a criação de programa de acolhimento de professores/as perseguidos no Brasil, mostram um cenário difícil enfrentado por docentes em todo o país.

Um questionário preenchido por cerca de 837 profissionais das cinco regiões do país aponta que, no total, 64,4% dos educadores/as já sofreram algum tipo de assédio, perseguição ou censura no trabalho.

Já 63,7% disseram ter medo de sofrer retaliações no ambiente de trabalho; 61,9% já repensaram o conteúdo de uma aula por temer uma repercussão negativa. Em relação a questões jurídicas, 48% mencionaram ter sofrido com processos judiciais por conta de seu trabalho e 91% relataram  o desejo de ter apoio psicológico para lidar com o dia a dia da profissão.

MEC se compromete com políticas para evitar perseguição a docentes

Erastos Mendonça, coordenador-Geral da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização de Jovens e Adultos, Diversidade e Inclusão (Secadi), do MEC, lamentou a situação em que muitos profissionais ainda vivem no dia a dia do trabalho em sala de aula.

Segundo Erastos, medidas de prevenção, conscientização e combate a qualquer tipo de violência no meio educacional são desenvolvidas no âmbito dos sistemas de ensino estadual, municipal e do Distrito Federal, porém reiterou que não cabe ao MEC promover essa proteção diretamente. “O papel do MEC é coordenar a política nacional para que esta promoção de fato ocorra, assegurando a autonomia do sistema de ensino”, declarou.

Ele citou o apoio oferecido pelo MEC ao Observatório de Violência Contra Educadores/as, da Universidade Federal Fluminense, com a distribuição de recursos para apoio técnico.

O coordenador-geral de Políticas Educacionais em Direitos Humanos, da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização de Jovens e Adultos, Diversidade e Inclusão (Secadi/MEC), Erasto Fortes Mendonça, representou o MEC e destacou que defender os professores é defender o direito à educação dos estudantes. “Na medida em que um professor é perseguido, é o estudante que perde também, com a perseguição que é perpetrada contra ele”, afirmou.

Também participaram da audiência: Letícia Cesarino, chefe da Assessoria Especial de Educação e Cultura em Direitos Humanos do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDH); Henrique Maffei, professor da rede municipal de ensino de Porto Alegre (RS); Débora Diniz, professora da Universidade de Brasília (UnB); Fernando Penna, diretor da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF); Renata Aquino, professora de história e membro do Coletivo Professores contra o Escola sem Partido; Salomão Ximenes, professor da Universidade Federal do ABC (UFABC); Juliana Andozio, conselheira do Sindicato dos Trabalhadores em Educação de Santa Catarina (Sinte-SC) e orientadora educacional do estado de Santa Catarina; Pâmela Passos, professora e pesquisadora; e Marcele Frossard, coordenadora de Programa e Políticas da Campanha Nacional pelo Direito à Educação.

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