Censura, cerceamento e punições rondam as salas de aulas do Colégio Militar de Porto Alegre
Foto: Igor Sperotto
“É um colégio. Não é um quartel”, desabafa um professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA) ao relatar episódios de assédio moral, cerceamento, censura e punições enfrentados nos últimos anos e que estão inviabilizando o CMPA enquanto instituição de ensino.
O colégio de educação básica mantido pelo Exército e exaltado no jargão militar como O centenário Casarão da Várzea – ou Escola de Presidentes, conforme uma inscrição do lado de dentro dos imponentes paredões do prédio localizado junto ao Parque da Redenção, já foi referência em educação de qualidade no estado.
“Hoje, apesar de ser uma instituição de ensino que emprega servidores civis e forme alunos civis, está mais para uma escola de cadetes, voltada mais para a hierarquia e a disciplina militares do que para a educação, o que não faz o menor sentido”, denunciam os professores da instituição em um documento enviado ao Ministério Público Federal (MPF).
O Colégio Militar que irá completar 112 anos no dia 28 de fevereiro de 2024 ostenta com orgulho fotos de ex-alunos ilustres, como os marechais e ex-presidentes Castelo Branco e Costa e Silva. Os generais mais truculentos da ditadura militar (1964-1985) Emílio Médici, Ernesto Geisel e João Figueiredo também passaram por seus “bancos escolares”.
Ali a lógica militar se impõe sobre o ensino-aprendizagem. Nos últimos anos, marcadamente o último do mandato do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), casualmente um ex-militar que foi expulso do Exército por indisciplina, o colégio vem acumulando denúncias de abuso de poder e arbitrariedades cometidos por oficiais contra servidores civis.
Para os professores, esses “desmandos” descaracterizaram a função docente da instituição. “A gente faz de conta que dá aula, porque tudo é proibido”, resume uma professora.
Na última semana de dezembro, os docentes do CMPA começaram uma mobilização para anexar mais uma denúncia a um procedimento aberto pelo Ministério Público Federal (MPF) em julho deste ano sobre a conduta de gestores da instituição, que vêm adotando mecanismos cada vez mais rígidos de controle da atividade docente a pretexto de prevenir violência na escola.
“A associação vai ao MPF denunciar os desmandos, a falta de transparência e muitas vezes até a falta de credibilidade que trespassa o trabalho do comando do Colégio Militar de Porto Alegre, especialmente na última gestão, que termina em fevereiro de 2024”, relatou o professor.
Câmeras em salas de aula
Na denúncia que será formalizada pela Associação dos Professores e Funcionários Civis do Colégio Militar de Porto Alegre (Aprofcmpa-RS) à Procuradoria da República no RS, são relatadas ações como a instalação de câmeras em salas de aulas, censura e controle externo dos conteúdos, interferência de alunos. Quem tem acesso às dependências internas durante os horários letivos pode notar um oficial circulando pelos corredores, atento ao que acontece dentro das salas.
“É a primeira vez (nossos professores civis mais antigos têm 29 anos de CMPA) que sofremos retaliações sobre o que ensinar, como ensinar. Tudo relacionado à forma está sendo regulado pela direção e o conteúdo de ciências humanas está sendo ministrado, em sua grande maioria, por militares. Não estão sendo renovados vagas em concursos para professores e professoras de filosofia, sociologia, história, geografia. A “escola sem partido” está totalmente partidarizada”, exemplifica outro professor que falou ao Extra Classe sob a condição do anonimato.
Muitos professores respondem a sindicâncias internas e também são confrontados com pais de alunos para explicar conteúdos abordados em sala de aula. “A gente vive respondendo e-mails de pais que são direcionados pela coordenação pedagógica, um constrangimento descabido”, reclama.
“Estamos vivendo uma forte perseguição à liberdade de cátedra e todo tipo de assédio aos que pensam de maneira mais progressista. Uma caça às bruxas como nunca havíamos presenciado. Dados do ranking de escolas públicas do Brasil do ano de 2007 apontavam sete colégios militares entre as 20 melhores escolas do Brasil. Hoje, não temos este número entre as cem melhores. Ou seja, com toda a perseguição, o nível do CMPA despencou sob qualquer análise quantitativa ou qualitativa”, analisa, explicando que as denúncias foram encaminhadas ao MPF para serem investigadas no âmbito dos direitos humanos e relações de trabalho”, anotou um professor de humanas.
Constituição Federal
“A gente vê que está havendo trocas e estão sendo tomadas decisões que são absolutamente arbitrárias dentro da escola, sem que haja sequer consulta às pessoas que estão envolvidas nessas mudanças e definições. A gente simplesmente chega e recebe as determinações. O Colégio Militar é um colégio, não é um quartel. É uma organização militar, mas está abaixo e responde à Lei 9394/1996 (LDB)”, relata o professor.
É uma instituição que pertence às instituições federais de educação, destaca o docente que defende que o CMPA é uma escola e não um quartel. “A gente não está querendo por exemplo votar para definir quem será o comandante, aí sim, nesse caso, o que é muito diferente nos Institutos Federais ou na rede pública em que se vota em quem vai ser o próximo diretor… No caso do CMPA, esse lugar de diretor é ocupado pelo comandante, que muda de dois em dois anos por determinação do Exército. Mas não é isso. A gente não está querendo, eleger o comandante”, diz.
A demanda do corpo docente, explica, é o cumprimento da legislação educacional. “As decisões que mudam o dia a dia do colégio devem pelo menos levar em conta os servidores civis. A hierarquia e disciplina são válidas para os militares dentro do ambiente militar, nós, civis, estamos acostumados com uma lógica de conversa, de diálogo, de tentar chegar a um meio termo e de decisões tomadas democraticamente, especialmente na área da educação, o que não está ocorrendo”, protesta.
A Associação pontua que o CMPA está ainda subordinado e condicionado à Constituição Federal. “Portanto não é uma instituição à parte do ambiente democrático firmado e guiado por este documento. Nesse sentido, de acordo com o Art. 206 da CF, o ensino será ministrado com base na “igualdade de condições para o acesso e permanência na escola”, “liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber”; “pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino”.
O exemplo mais recente de arbitrariedade que afeta o trabalho docente, explica outro professor, ocorreu no último dia letivo de 2023.
“Tivemos que esperar até o último segundo para saber que turmas e que séries a gente vai pegar no próximo ano letivo. No ano passado eu estava lecionando para o sétimo ano do fundamental; neste ano eu lecionei no primeiro ano do ensino médio e no ano que vem eu vou para o nono ano do ensino fundamental. Nada disso foi pedido por mim. Eles simplesmente deliberaram dessa forma. E assim, vários outros professores de Língua Portuguesa tiveram nos últimos três anos séries e níveis diferentes para trabalhar. E você não é informado por que aquilo está acontecendo. Quando você vai cobrar, o coordenador de disciplina diz que você é um professor atividade remunerada em regime de dedicação exclusiva, tem que dar aula desde o sexto ano do fundamental até o terceiro ano do ensino médio. E aí é discricionário do comandante decidir pra quem você vai dar aula”, desabafa.
Da cavalaria para a escola
A entidade também aponta que os cargos de comando da instituição são exercidos por pessoas que não são da área da educação. “O comandante, o subcomandante são pessoas que via de regra não vieram da área da educação. Foram instrutores dentro do Exército em vários momentos, de várias turmas, cavalaria, mas não são profissionais da área da educação. Mesmo assim, eles gerem uma instituição pública da área da educação. Isso para nós é algo bastante complicado”, ressalta.
Nomeado em março de 2022 o coronel de infantaria do Exército Ítalo Mainieri Junior, comandante e diretor de ensino mandou dizer por sua assessoria que “o Colégio Militar não tem nada a declarar” sobre as denúncias. O Exército Brasileiro não respondeu aos inúmeros pedidos de esclarecimentos encaminhados à sua assessoria. Consultado sobre a denúncia IC 1.29.000.000460/2023-69 encaminhada em julho pela associação de professores, o Ministério Público Federal não informou que providências foram tomadas e limitou-se a responder que o procedimento é sigiloso.