A aposta do ensino privado no bilionário mercado dos cursos de Medicina
Foto: UnirG/ Divulgação
Uma disputa judicial em torno do bilionário mercado dos cursos de Medicina avança no Supremo Tribunal Federal (STF) em meio a críticas de entidades médicas, que pedem mais foco na qualidade de hospitais e postos de saúde, e menos na quantidade de profissionais.
Hoje, o país soma mais de 572 mil profissionais, segundo a Demografia Médica de 2024, a maior média da história nacional. Um aumento que não solucionou desigualdades regionais, como a falta de médicos no interior, problema que políticas para novos cursos previstas na Lei do Mais Médicos tentaram solucionar, sem sucesso.
Só a capital do Espírito Santo, Vitória, tem uma densidade de 18,6 médicos por mil habitantes, enquanto o interior do Amazonas tem 0,2 profissional a cada mil pessoas, por exemplo. Em paralelo, só entre 2018 e 2021, as matrículas de novos cursos injetaram até R$ 312,6 bilhões anuais no ensino superior privado.
No segmento educacional, esse debate chegou ao STF contrapondo grupos privados e instituições comunitárias interessadas nessa fatia de mercado: a Associação Nacional das Universidades Particulares (Anup) e o Conselho de Reitores das Universidades Brasileiras (Crub), os quais moveram ações opostas na corte.
Setor dividido
Foto: Ascom/Cremers
Enquanto a Anup pede que se cumpra a Lei do Mais Médicos, em que a abertura de novos cursos deve seguir as chamadas públicas abertas pelo Ministério da Educação (MEC), o Crub afirma que a norma é inconstitucional e que esses editais beneficiam grandes grupos, em detrimento das instituições comunitárias.
Apesar do conflito, ambas as entidades dividem as mesmas faculdades entre algumas de suas associadas. “No próprio setor brigam entre si, sobre quem pode abrir e quem não pode”, critica o médico cirurgião Eduardo Trindade, presidente do Conselho Regional de Medicina do Rio Grande do Sul (Cremers).
Só no Rio Grande do Sul, são 20 instituições com cursos de Medicina autorizados pelo Ministério da Educação (MEC), 13 delas privadas, de acordo com consulta do Extra Classe à plataforma e-Mec.
As instituições com curso de Medicina autorizado pelo MEC são as privadas sem fins lucrativos: UCS; Unisinos; UCPel; UPF; PUCRS; Feevale; Unisc; URI; UFN; Ulbra; Unijuí, Univates; a privada com fim lucrativo Imed e as públicas federais Furg; Ufrgs; UFSM; UFPel; UFCSPA, Unipampa, UFFS.
O total é de 1.863 vagas anuais no estado, 63% delas no ensino particular, onde a média das mensalidades é de cerca de R$ 9,75 mil para calouros, mas pode passar dos R$ 15 mil nos anos finais de graduação.
Trindade lembra que, enquanto isso, hospitais de municípios como Canoas e Uruguaiana enfrentam seguidas crises sem que se discutam investimentos em mais leitos ou na qualificação da assistência. Muitas vezes, são as unidades deficitárias que contratam os recém-formados para atender em emergências ou postos de saúde, que deveriam requerer mais experiência, diz o presidente do Cremers.
“Como as universidades perderam muito dinheiro com o ensino a distância, o único curso com procura grande ainda é a Medicina, que tem mensalidades entre R$ 8 mil e R$ 12 mil. Então, as instituições querem se capitalizar com a formação médica”, deduz.
STF julga novas graduações
Foto: Andrieli Siqueira/ Universidade Feevale
No âmbito do embate entre Anup e Crub no STF, em agosto de 2023 a Corte impediu liminarmente a abertura de novas graduações pela via judicial, enquanto uma decisão final não chega.
Ainda assim, só a liminar já freia a intensa judicialização que afetou o setor nos últimos anos, sobretudo após uma moratória imposta pelo governo Temer, ainda em 2018, a qual impedia o MEC de avaliar novos cursos. Um edital aberto em outubro pela pasta prevê um limite de quatro novos cursos e 240 vagas para o Rio Grande do Sul.
Apesar disso, da gestão Temer até a liminar de Gilmar Mendes, surgiram mais de 300 ações pela abertura de novos cursos de Medicina pela via judicial no país inteiro, segundo uma lista da Advocacia-Geral da União (AGU). Em cerca de 180 desses processos, juízes deram razão a instituições particulares.
Foi o caso, por exemplo, da Ulbra, que, no ano passado, garantiu na Justiça uma autorização para abrir 480 novas vagas no estado à revelia do MEC. A decisão foi suspensa semanas depois pela Justiça.
“Quando olhamos a distribuição dessas ações, 75% delas estão em grandes centros, regiões metropolitanas, e só o resto em áreas deficitárias pela ótica de concentração de médicos”, explica a advogada Antonella Consentino, que assessora a Anup em sua ação no STF.
A associação pede à Suprema Corte que a Lei do Mais Médicos seja cumprida à risca, já que a política pública exige que novos cursos sejam abertos apenas onde há déficit de profissionais, o que não é o caso das capitais brasileiras. “Há um viés de mercado e de oportunidade para se abrir cursos em grandes centros”, critica Antonella.
Processos via MEC continuam
Foto: Fabio Rodrigues-Pozzebom/ Agência Brasil
Embora mire a judicialização, a suspensão do STF não alcança processos administrativos que já tramitam no MEC. Na liminar, o relator do caso, ministro Gilmar Mendes, permitiu que o ministério mantivesse a análise dos pedidos que cumprem as normas da pasta.
Até o ano passado, só o Rio Grande do Sul somava 15 desses pedidos por novos cursos de instituições gaúchas, a maior parte deles na Região Metropolitana e na Serra Gaúcha. O Cremers informou ao Extra Classe não ter notícia do avanço de nenhum deles. Já o MEC não respondeu às tentativas de contato da reportagem.
Entre março de 2022 e maio deste ano, essas foram as instituições que solicitaram ao MEC autorização para abertura de cursos de Medicina: Faculdade de Ciências da Saúde Moinhos de Vento; Universidade do Vale do Taquari (Lajeado); Ritter dos Reis (Porto Alegre); Centro Universitário da Serra Gaúcha (Caxias do Sul); Faculdade Dom Alberto (Santa Cruz do Sul); Cesuca (Cachoeirinha); Uniftec (Bento Gonçalves e Caxias do Sul); Ulbra (Porto Alegre, Gravataí e São Jerônimo); Anhanguera e Ideau (Caxias do Sul), Estácio (Porto Alegre) e Ideau (Getúlio Vargas).
Em meio a isso, o Crub aguarda a avaliação do STF sobre sua ação contra a constitucionalidade da chamada pública do MEC. Isso porque os editais tendem a beneficiar grandes grupos e a excluir pequenas e médias faculdades, afirma o reitor da Unochapecó, Cláudio Jacoski, presidente da Associação Brasileira das Instituições Comunitárias de Educação Superior (Abruc).
“Há um histórico de editais mostrando que grandes corporações sempre tiveram vantagem para acessar as vagas de Medicina de uma forma diferenciada às comunitárias, que têm outro perfil, que nascem da própria comunidade”, declara Jacoski.
Até o momento, o “placar” está três a um a favor do pedido da Anup, mas um pedido de vista do ministro Alexandre de Moraes em fevereiro parou o julgamento, o qual agora depende do voto dele para continuar.