Entidades pedirão a Lula que vete ensino médio aprovado na Câmara
Foto: Mário Agra/Câmara dos Deputados
Foto: Mário Agra/Câmara dos Deputados
A aprovação do texto final que muda pontos da reforma do ensino médio (Lei 13.415/17) (Novo Ensino Médio) na noite desta terça-feira, 9, na Câmara dos Deputados reverteu os principais pontos alterados pelo Senado, o que desagradou a maioria dos movimentos e entidades ligadas à educação. Matéria que passou por idas e voltas no Congresso e virou um jogo de braço entre parlamentares e governo segue agora para sanção ou veto presidencial.
Na versão final, o relator Mendonça Filho (União/PE) rejeitou a inclusão do espanhol como disciplina obrigatória e o aumento da carga horária da formação básica, entre outros pontos, uns considerados como avanços e outros, retrocesso.
Apesar da comemoração do ministro da Educação, Camilo Santana (PT), e de think tanks ligadas à setores empresariais como a Todos pela Educação, o clima geral é de insatisfação e de promessas de luta para que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) vete o que foi aprovado na Câmara.
Um dos tons foi dado pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação (Campanha). “Foi um dia em que a educação nacional teve um enorme prejuízo na Câmara dos Deputados e é preciso registrar isso”. Afirma o coordenador honorário, Daniel Cara.
Formação técnica e profissional
No caso da formação técnica e profissional, um dos itinerários possíveis para as escolas ofertarem aos estudantes, a formação geral básica será de 1.800 horas. Outras 300 horas, a título de formação geral básica, poderão ser destinadas ao aprofundamento de estudos em disciplinas da Base Nacional Comum Curricular diretamente relacionadas à formação técnica profissional oferecida.
Como esses dois módulos totalizam 2.100 horas, outras 900 horas ficarão exclusivamente para as disciplinas do curso técnico escolhido pelo aluno quando ofertado pela escola, totalizando assim 3.000 horas.
Segundo o texto aprovado, o ensino médio será ofertado de forma presencial, mas será admitido, excepcionalmente, que ele seja mediado por tecnologia, na forma de regulamento elaborado com a participação dos sistemas estaduais e distrital de ensino.
Notório Saber
Ao contrário do texto original do governo, continua na lei a permissão para contratar profissionais de notório saber reconhecido pelos sistemas de ensino para ministrar conteúdos na educação profissional técnica de nível médio, mesmo que sua experiência tenha sido em corporações privadas.
Manobra de Lira
Cara entende que a condução da votação pelo presidente da Câmara, Artur Lira (PP/AL) como um desrespeito ao Senado Federal e ao direito à educação no Brasil.
O sentimento do presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), Heleno Araújo, é o mesmo. “Passaram o trator, né? Mais uma vez aí, desde o golpe lá de 2016, com o Mendonça como ministro (da Educação) atropelando com Medida Provisória”, lamenta.
A referência se dá pelo fato de que o processo deveria ter duas votações com debate.
Na primeira, tratando das incorporações feitas por Mendonça Filho ao texto do Senado o resultado para a Campanha já era esperado, uma vez que, nas palavras de Cara, “eram perfumarias”. Foram 437 votos a favor e um contra.
Indignação
A grande indignação se deu na segunda votação que tratava dos pontos não incorporados do Senado. Lira, sob protestos de deputados que queriam a manutenção do que foi discutido na Câmara alta, fez a votação de forma simbólica, não permitindo orientação de bancada, destaques e votação nominal.
Entre todas as bancadas, Psol, PDT e PcdoB foram contrárias à retirada dos pontos deliberados no Senado.
Tanto Cara quanto Araújo tecem críticas à posição do governo e de seu líder na Câmara, José Guimarães (PT/CE).
Para Araújo, houve “conivência do líder do governo” e má negociação do MEC junto à Mendonça Filho.
Já Cara, relata lamentar com “dor no coração” a postura de Guimarães e enfatiza o que chamou de “irresponsabilidade” do presidente da Câmara de ter colocado Mendonça Filho à frente da relatoria. “Simplesmente foi entregue para o autor da reforma (anterior). É claro que isso não pode dar certo”, disparou. Mendonça foi ministro da Educação do governo Michel Temer durante o encaminhamento do Novo Ensino Médio.
Luta por veto
No meio da insatisfação, tanto CNTEE quanto a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino (Contee), que representa docentes e funcionários do ensino privado, já anunciaram que estão se mobilizando para que Lula vete a decisão.
Coordenadora da Secretaria Geral da Contee, Madalena Guasco Peixoto, destaca que foi mantido a ideia de professores por notório saber, “inclusive vindo de empresas privadas”, e a possibilidade de uma carga em ensino a distância (EAD) sem um limite específico, ficando a cargo de estados e municípios.
Na questão do EAD, ela frisa: “Ou seja, é como já é hoje. Tem estado defendendo até 60 % em EAD, como o de São Paulo”.
Da CNTEE, Araújo declara que, agora, “é tentar colocar para o presidente Lula que o texto, mesmo negociado com o MEC, não atende às demandas dos estudantes do ensino médio, nem dos trabalhadores em educação”.
A ideia é sugerir que Lula não faça a sanção e emita uma medida provisória, com base no que foi construído no Senado.
No entanto, análise mais fria da situação, vê dificuldades para esse movimento, em especial porque seria enfrentar a posição do ministro da Educação que tem a confiança de Lula.
Daniel Cara, vê possibilidade de vetos basicamente nas brechas abertas no relatório de Mendonça a permissão ao trabalho infantil, conforme denunciado pela Campanha. “Vem da defesa da Constituição e dos acordos que o Brasil é signatário”, explica.
O Coletivo em Defesa do Ensino Médio da Campanha já tem alertado de que a proposta aprovada na Câmara permite que o sistema de ensino reconheça “aprendizagens, competências e habilidades” desenvolvidas em “experiências extraescolares”, incluindo “trabalho remunerado ou voluntário supervisionado”, para fins de cumprimento da carga horária curricular.
Como fica se Lula não vetar
A partir de 2025, o Novo Ensino Médio terá carga horária de disciplinas obrigatórias, como matemática, português, inglês, Ciências Humanas e da natureza ampliadas. O espanhol, optativo. A reforma, aprovada pela Câmara, prevê mais aulas dessas disciplinas tradicionais nos três anos finais do ensino básico. No entanto, devido à demora na aprovação, algumas mudanças poderão ser implementadas apenas em 2026.
O relatório aprovado manteve restrições à educação à distância, embora de forma menos rígida que o Senado, e definiu que o Enem cobrará tanto disciplinas da formação geral básica quanto dos itinerários formativos, permitindo ao aluno escolher parte do que vai aprender.
Resumo das principais mudanças:
- A obrigatoriedade do ensino de espanhol foi retirada do texto.
- A carga horária da Formação Geral Básica (FGB) para alunos do ensino técnico profissional foi reduzida de 2.400 para 1.800 horas.
- Foi aprovada a obrigatoriedade de ter uma escola de ensino médio noturno em cada município.
- A adequação do Enem ao novo formato do Ensino Médio está prevista para 2027.
- A parte comum do currículo (FGB) foi ampliada de 1.800 para 2.400 horas.
- Haverá mais tempo para a parte comum do currículo e previsão de combinação de conteúdos de itinerários.
Outras mudanças:
- A etapa continua dividida em dois blocos: a parte comum e os itinerários formativos.
- Os deputados mantiveram os pontos principais que haviam sido acordados com o governo na primeira votação da matéria, em março.
O que ainda está em aberto:
- O formato do processo de implementação da reforma ainda será definido.
- Como será feita a adequação do Enem ao novo formato do Ensino Médio.
Impacto da reforma:
- A reforma deve aumentar o tempo de aulas de disciplinas tradicionais, como história, geografia e sociologia.
- Pode também ter impacto na carga de português e matemática.
- A obrigatoriedade de ter uma escola de ensino médio noturno em cada município deve beneficiar os alunos que não podem estudar durante o dia.
- A adequação do Enem ao novo formato do Ensino Médio deve exigir que os alunos se aprofundem em áreas específicas de conhecimento.
Itinerários
Os sistemas de ensino deverão garantir que todas as escolas de ensino médio ofertem o aprofundamento integral de todas as áreas de conhecimento, exceto o ensino profissional. Deverá haver, no mínimo, dois itinerários formativos de áreas diferentes.
Como os itinerários são formatados de acordo com o contexto local e as possibilidades dos sistemas de ensino, o estudante poderá optar por uma complementação com itinerários focados em duas áreas diferentes: matemática e ciências da natureza, por exemplo; ou linguagens e ciências humanas.
A montagem dos itinerários dependerá de diretrizes nacionais a serem fixadas pelo Conselho Nacional de Educação com a participação dos sistemas estaduais de ensino, reconhecidas as especificidades da educação indígena e quilombola.
Esses sistemas, por sua vez, deverão apoiar as escolas para a realização de programas e projetos destinados a orientar os alunos no seu processo de escolha dos itinerários.
Carência de escolas
Do total de municípios brasileiros, 51% (2.831) possuem apenas uma escola pública de ensino médio, e a maior parte delas está em cidades com os menores níveis para o Indicador de Nível Socioeconômico do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep).
Segundo o Ministério da Educação (MEC), em 2022, 48% das unidades federativas não haviam iniciado a implementação do novo ensino médio nas turmas de Educação de Jovens e Adultos (EJA), 15% declararam que não iniciaram nas turmas do ensino noturno e 22% não o fizeram em escolas indígenas.
O projeto surgiu de consultas públicas do MEC junto às escolas e à sociedade organizada em razão das dificuldades de infraestrutura para ofertar os itinerários formativos.
Por outro lado, em estados nos quais a mudança foi implementada, houve casos da oferta de 33 trilhas de aprofundamento nas áreas de conhecimento, provocando um excesso de diversificação que poderia agravar a desigualdade.
Ensino técnico
Quanto ao ensino técnico, o texto aprovado prevê sua oferta por meio de cooperação técnica entre as secretarias estaduais de Educação e as instituições credenciadas de educação profissional, preferencialmente públicas.
Na versão anterior da proposta, o ensino técnico teria de ser previamente aprovado pelo Conselho Estadual de Educação, homologado pela Secretaria de Educação e certificado pelos sistemas de ensino.
Disciplinas
Em relação às disciplinas que o projeto original pretendia garantir na formação geral básica, o substitutivo de Mendonça Filho especifica que elas integrarão o ensino médio dentro da base comum curricular nas quatro áreas de conhecimento.
No entanto, o espanhol continuará a ser disciplina não obrigatória, que poderá ser ofertada como outra língua estrangeira preferencial no currículo de acordo com a disponibilidade dos sistemas de ensino.
Para comunidades indígenas, o ensino médio poderá ser ministrado nas suas línguas maternas.
Com a nova redação proposta, não constará mais da LDB a obrigatoriedade de ensino de língua portuguesa e de matemática nos três anos do ensino médio, tema que será tratado na Base Comum Curricular.
Propostas pedagógicas
Segundo o projeto, as escolas deverão montar suas propostas pedagógicas considerando elementos como promoção de metodologias investigativas no processo de ensino e aprendizagem e conexão dos processos de ensino e aprendizagem com a vida comunitária e social.
Deverá haver ainda reconhecimento do trabalho e de seu caráter formativo e uma articulação entre os diferentes saberes a partir das áreas do conhecimento.
Aprendizagens e competências
Em regime excepcional, para fins de cumprimento das exigências curriculares do ensino médio em regime de tempo integral, os sistemas de ensino poderão reconhecer aprendizagens, competências e habilidades desenvolvidas pelos estudantes em experiências extraescolares.
Para isso, deverá haver formas de comprovação definidas por esses sistemas de ensino, considerando, por exemplo:
- a experiência de estágio, programas de aprendizagem profissional, trabalho remunerado ou trabalho voluntário supervisionado;
- a conclusão de cursos de qualificação profissional com certificação; e
- a participação comprovada em projetos de extensão universitária, iniciação científica ou atividades de direção em grêmios estudantis.
No planejamento da expansão das matrículas de tempo integral, deverão ser observados critérios de equidade para assegurar a inclusão dos estudantes em condição de vulnerabilidade social, da população negra, dos quilombolas, dos indígenas, das pessoas com deficiência e da população do campo.
Transição
O substitutivo prevê a formulação das novas diretrizes nacionais para o aprofundamento das áreas de conhecimento até o fim de 2024 e a aplicação de todas as regras pelas escolas a partir de 2025.
Alunos que estiverem cursando o ensino médio na data de publicação da futura lei contarão com uma transição para as novas regras.
Ensino superior
A partir de 2027, o processo seletivo para o ensino superior deverá considerar as diretrizes nacionais de aprofundamento definidas. O estudante terá o direito de optar por uma das áreas de conhecimento, independentemente do itinerário formativo cursado no ensino médio.
Assim, por exemplo, o itinerário poderá ser linguagens mais matemática e suas tecnologias, e o aluno escolher ciências naturais e suas tecnologias no vestibular.
Escola do campo
No texto aprovado, o deputado Mendonça Filho aceitou emendas para incluir benefícios a estudantes do ensino médio de escolas comunitárias que atuam no âmbito da educação do campo.
Assim, esses alunos se juntarão àqueles de baixa renda que tenham cursado todo o ensino médio em escola pública no acesso aos benefícios de bolsa integral no Prouni para cursar o ensino superior em faculdades privadas e à cota de 50% de vagas em instituições federais de educação superior.
Poderão contar ainda com a poupança do ensino médio (Programa Pé de Meia).
Pronatec
Mudança do Senado aprovada pela Câmara concede, para escolas que ofertem matrículas de ensino médio articulado com educação profissional e tecnológica, prioridade no recebimento de recursos federais no âmbito do Programa Escola em Tempo Integral. A prioridade deverá ocorrer por meio do Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec).
A matrícula nesses cursos será considerada ainda critério para escolha do aluno para receber a poupança do programa Pé de Meia.
Cooperação técnica
A Câmara aprovou trecho do texto dos senadores para determinar aos entes federados que promovam cooperação técnica no âmbito da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica a fim de estimular a oferta desse tipo de curso em articulação com o ensino médio.
Debate em Plenário
Vários deputados criticaram o relatório de Mendonça Filho por retirar mudanças feitas pelo Senado Federal. Entre elas, trecho incluído pelos senadores que obrigava o ensino médio a ter, no mínimo, 70% da grade como disciplina básica e apenas 30% para os itinerários formativos. Mendonça excluiu esse ponto. Assim, os itinerários formativos poderão abarcar mais que esses 30%.
Outro ponto retirado pelo relator foi a exigência de condição excepcional para o ensino médio a distância.
Deputados do Psol falaram ser contra o Novo Ensino Médio, desde sua concepção em 2016 ainda na gestão de Michel Temer na Presidência da República. Eles afirmaram, porém, que o texto do Senado é melhor que a versão proposta por Mendonça Filho.
A deputada Sâmia Bomfim (Psol-SP) criticou ponto que autoriza o trabalho remunerado a ser contado como tempo de cumprimento de horas curriculares. Esse dispositivo havia sido retirado no Senado. “É um salvo-conduto e um elogio ao trabalho de adolescentes. Conta como formação curricular, educacional. Isso é inadmissível”, disse.
A deputada Professora Luciene Cavalcante (Psol-SP) afirmou que os caminhos propostos pelo projeto não vão ao encontro das melhorias para o ensino médio. “A escola precisa de professor bem formado, capacitado, valorizado. E isso não se faz com notório saber”, afirmou.
Espanhol
Para o deputado Jorge Solla (PT-BA), o Brasil precisa incorporar capacidade de interlocução com países da América Latina e, por isso, seria necessário o ensino de espanhol obrigatório. “Se o objetivo é fazer com que, no ensino médio, se tenha a oportunidade de ter educação profissional, o acesso às duas línguas (espanhol e inglês) é imprescindível para qualquer qualificação”, declarou.
O deputado Felipe Carreras (PSB-PE) ressaltou que o espanhol não é uma imposição de língua obrigatória, mas apenas uma opção em relação ao inglês. “Não estamos obrigando os estudantes a escolher a língua espanhola: 70% dos estudantes que fazem o Enem escolhem o espanhol”, afirmou.
Para a deputada Adriana Ventura (Novo-SP), não há sentido tornar o espanhol obrigatório, a “não ser atender demanda e lobby para dar obrigatoriedade a uma coisa que o mercado não pede”. Ela também defendeu a manutenção do notório saber como critério para contratação de profissionais para os cursos técnicos.
Para o relator, deputado Mendonça Filho, o espanhol pode ser obrigatório, desde que a rede estadual adote isso. “Não dá para impor essa regra ao Brasil todo”, afirmou. Ele lembrou que nenhum país sul-americano adota o português como segunda língua, além do inglês.