EDUCAÇÃO

Antes que comecem a queimar os livros

Campanha está mobilizando professores e a sociedade com um alerta sobre o clima policialesco de constrangimento e patrulha no ambiente escolar
Por Gilson Camargo / Publicado em 10 de setembro de 2024

Antes que comecem a queimar os livros

Fotos: Igor Sperotto

Fotos: Igor Sperotto

O lançamento da campanha Liberdade de ensinar e aprender, pelo Sindicato dos Professores do Ensino Privado do Rio Grande do Sul (Sinpro/RS), no dia 9 de agosto, elencou episódios recentes que exemplificam o acirramento do patrulhamento contra professores no ensino privado e também na educação pública.

Em fevereiro de 2019, a deputada federal Bia Kicis (PL/DF), cunhada do fundador do escola sem partido, Miguel Nagib, protocolou na Câmara dos Deputados um projeto de lei que defendia que alunos pudessem filmar os professores para combater uma suposta doutrinação de esquerda.

Em 2021, pressionado por pais conservadores, o Colégio Farroupilha, de Porto Alegre, cancelou apresentações teatrais do Grupo Cerco devido ao uso de linguagem neutra.

Em janeiro de 2022, o professor Ronan Moura Franco, mestre em ensino de Ciências, foi demitido do Colégio Marista Sant’ana, de Uruguaiana, após fazer uma postagem em sua conta pessoal do Twitter, criticando o desperdício de água em plena seca por latifundiários produtores de soja e arroz da região.

No mesmo ano, uma aula do ensino médio no Colégio Mario Quintana, em Pelotas, virou polêmica e cancelamentos ao professor de Biologia Enrico Blota, que usou dados científicos para demonstrar a relação entre a produção de carne e arroz e o efeito estufa.

No dia 18 de março de 2022, um estudante do oitavo ano de uma escola privada de Porto Alegre interrompeu uma aula sobre exclusão e invisibilidade histórica das mulheres na política, desde o Iluminismo, com ataques à ex-presidente Dilma Rousseff e em defesa de Jair Bolsonaro. Foi convidado a se retirar da sala pela professora de Ciências Humanas, que acabou demitida após a família apresentar uma queixa à direção. A professora é socióloga, pedagoga, licenciada, mestre e doutora em História.

Acesse os materiais da campanha no site: eventos.sinprors.org.br/liberdade

Depoimentos

Antes que comecem a queimar os livros

Foto: Igor Sperotto

Enrico Blota, o professor de Biologia que sofreu ataques e cancelamentos em 2022, durante uma aula no Colégio Mario Quintana, de Pelotas

Foto: Igor Sperotto

“Quando o professor tem medo, não está mais dando aula, mas sobrevivendo por um salário. Isso não pode mais acontecer. E nós vamos até o fim defendendo nossa liberdade, porque é nossa profissão”, conclama o professor de Biologia Enrico Blota, que sofreu ataques e cancelamentos em 2022, durante uma aula no Colégio Mario Quintana, de Pelotas, ao demonstrar, por meio de dados científicos, a relação entre agricultura e pecuária e o efeito estufa.

Antes que comecem a queimar os livros

Foto: Igor Sperotto

O professor Ronan Franco é doutor em Educação em Ciências, sofreu ataques e acabou demitido da Colégio Marista Sant’ana, de Uruguaiana, como represália por criticar em suas redes sociais o desperdício de água por latifundiários locais

Foto: Igor Sperotto

“Quando posturas fascistas tomam conta da escola, o teu currículo não vale nada. Eu considerava minhas aulas pautadas nos conhecimentos e valores democráticos, um arcabouço teórico-histórico que a ciência nos presenteou e achava que as minhas aulas e a satisfação dos meus alunos e dos pais dos meus alunos com as minhas aulas eram suficientes para eu consolidar minha prática. Ledo engano”, frisa o professor Ronan Franco. Licenciado em Ciências da Natureza e doutor em Educação em Ciências pela Unipampa, em 2022 ele sofreu ataques e cancelamento e foi demitido como represália por criticar em sua rede social privada o desperdício de água por latifundiários em Uruguaiana.

“Tenho esperança que a educação seja valorizada e que os saberes que os professores carregam sejam compreendidos como algo muito valioso, que os nossos alunos e a educação sejam valorizados no sentido de que nenhum saber seja negado.”

“O Sinpro/RS vem acompanhando a situação de vários professores que sofrem cerceamento ao seu trabalho, censura a livros escolhidos e conteúdos, preconceito sobre raça e gênero, sendo, muitas vezes, ameaçados e atacados”, destaca Cecília Farias, diretora do Sinpro/RS e coordenadora do Núcleo de Apoio ao Professor Contra a Violência, o qual proporciona assistência psicológica e jurídica a professores atingidos por episódios de violência, assédio ou cerceamento da atividade docente. “Essas situações foram acirradas nas eleições de 2018, quando a campanha de um candidato à Presidência da República adotou o discurso de ódio, promovendo a desestabilização entre as pessoas pelo medo e preconceito. Desde lá, o Sinpro/RS passou a acolher muitos professores que foram acusados injustamente de doutrinação dos estudantes. Alguns fatos históricos passaram a ser combatidos por grupos ideológicos de extrema direita”, observa.

Para a dirigente, “é impensável que a escola, um espaço de conhecimento e interação entre as pessoas, não ensine que os conflitos existem e entenda que uma de suas tarefas é a busca dialogada de consensos, que gere aprendizagens, de fato, significativas para o convívio social”.

Frente pela Liberdade de Ensinar e Aprender

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Foto: Igor Sperotto

Cecília Farias, diretora do Sinpro/RS e coordenadora do Núcleo de Apoio ao Professor Contra a Violência

Foto: Igor Sperotto

O Sinpro/RS ampliou o trabalho do NAP no acolhimento e na assistência jurídica a professores acusados injustamente de doutrinação dos estudantes.

No início de 2023, diante do acirramento das interferências danosas de pessoas alheias à escola, o Sindicato articulou a formação da Frente pela Liberdade de Ensinar e Aprender, que congrega diversas entidades ligadas à educação para pensar estratégias a fim de garantir a autonomia dos professores.

A Frente promoveu manifestações públicas e um ato pela liberdade de ensinar e aprender, em novembro, no Parque Farroupilha, em Porto Alegre, com o objetivo de reafirmar a liberdade de cátedra dos professores e o direito dos estudantes de aprenderem.

Com o ressurgimento das discussões sobre a escola sem partido nos legislativos e a criação e instalação da Frente Parlamentar Contra a Doutrinação ideológica no Ensino, a Frente pela Liberdade apresentou uma Notícia de Fato à Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão, do Ministério Público Federal. A denúncia foi assinada pelas 12 entidades da Frente pela Liberdade.

O movimento se fortaleceu ainda mais em abril, com a realização do Sinpro/RS Debate, o qual, durante três horas, discutiu a crescente perseguição ideológica aos professores e o cerceamento de ideias praticadas por ativistas conservadores e militares extremistas nas escolas públicas e privadas do estado.

“Não podemos esmorecer na ratificação do direito à liberdade e à democracia em nosso país, porque, de um momento para o outro, é bem possível que ações contra a liberdade, a ciência e a democracia recomecem. Nossa campanha pretende chamar a atenção da sociedade para a necessária vigilância na defesa dos valores democráticos. Temos o dever de barrar essas investidas ou testemunhar a volta da queima de livros, tão comum na Idade Média”, adverte Cecília.

A liberdade de ensinar e o pluralismo de ideias, assim como a liberdade de manifestação do pensamento são princípios proclamados na Constituição Federal, em seus artigos 205, 206 e 220.

De acordo com o preceito constitucional, o direito à liberdade de cátedra se expressa na liberdade de atuação do professor em sala de aula, de pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber, assim como a autonomia na escolha de recursos, métodos e instrumentos pedagógicos, considerando o pluralismo de ideias e a coexistência de valores, teorias e doutrinas.

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