EDUCAÇÃO

Condução de professora à delegacia por brigadianos pode ter sido ilegal

Ação de brigadianos da Ronda Escolar e de pai PM, na Escola Brasília, em Porto Alegre, é considerada ilegal e fato grave por juristas e especialistas em segurança pública
Por Marcelo Menna Barreto / Publicado em 12 de setembro de 2024

Condução de professora à delegacia por brigadianos pode ter sido ilegal

Foto: Felipe Dalla Valle/Palácio Piratini

Foto: Felipe Dalla Valle/Palácio Piratini

Na manhã do dia 29 de agosto, três soldados da Ronda Escolar do 11º Batalhão de Polícia Militar (BPM) retiraram uma professora de sua sala de aula na Escola Estadual de Ensino Fundamental Brasília, no Bairro Navegantes, em Porto Alegre, e a deslocaram até a Divisão Especial da Criança e do Adolescente (Deca) a bordo de uma viatura.  O objetivo era atender acusação de um colega de farda e de sua esposa por supostos maus tratos à filha adolescente, que estuda na escola. A ação dos brigadianos é considerada ilegal e um “fato grave” por juristas e especialistas em segurança pública que analisaram o caso para o Extra Classe. Mais grave ainda foi esta ação ter ocorrido diante de mais de 50 estudantes protegidos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

O advogado Carlos Frederico Guazzelli, Defensor Público-Geral do Rio Grande do Sul entre os anos de 1999 e 2022, é enfático. “A nenhuma autoridade, de qualquer grau, é dado invadir prédio público e daí retirar, sem ordem judicial e sem que estivesse praticando delito, qualquer pessoa, muito menos professora ou servidor que ali exerça atividade pública”, declara.

Primeiro Ouvidor de Polícias no Brasil, o sociólogo Benedito Mariano, vê uma ação absurda. “A Polícia Militar do Rio Grande do Sul e a Secretaria de Segurança Pública do estado têm a obrigação de tomar providências exemplares sobre essa ocorrência”, assevera.

Mariano foi Ouvidor das Polícias do Estado de São Paulo durante os governos tucanos de Mario Covas e Geraldo Alckmin (1995 a 2000) e de João Dória (1988 a 2020).

Brigada apura o ocorrido, mas diz que procedimento foi correto

Comandante-geral da BM, Coronel Claudio dos Santos Feoli, diz que há uma sindicância aberta desde o dia seguinte do ocorrido. “Eu não tenho o contexto para fazer maiores comentários. A sindicância foi aberta pelo Comando de Policiamento da Capital, a quem cabe a apuração”, registra o militar.

Segundo a assessoria de comunicação da BM, o prazo legal para a finalização dos trabalhos é de 20 dias, podendo ser prorrogado.

Apesar disto, após manifestação Centro dos Professores do estado do Rio Grande do Sul (CPERS/Sindicato), o comando da BM emitiu nota que diz que a atuação dos policiais se realizou conforme o procedimento adequado, com respeito aos envolvidos e que professora voluntariamente acompanhou os policiais à Deca sem ser algemada ou tratada de forma abusiva.

O diretor da Escola Brasília, Nei Colombo, disse que esse tipo de manifestação já era esperada. “Quem não iria ‘voluntariamente’ acompanhar brigadianos que pedem para interromper a sua aula, com uma viatura na frente da escola?, ironiza”.

Segundo o diretor, há uma série de contradições no que foi dito e não dito diante da ocorrência. Um exemplo se encontra no trecho do Boletim de Ocorrência (BO) onde o pai relata no que soube dos maus tratos no dia 28 e, um dia após, 29, teria ido falar com a orientadora pedagógica que ficou surpresa, mas não fez nada.

De posse do BO, Extra Classe constatou que a queixa teve sua conclusão na Deca às 10h49. Como a  escola abre suas portas às 8 horas, a conclusão da reportagem é que – em um pouco mais de duas horas após o pai ter relatado reunião com a orientadora – a professora foi conduzida, esperou o pai apresentar sua versão aos atendentes da delegacia e retornou com os mesmos policiais após ser informada que o delegado presente a tinha dispensado.

Polícia Civil instaura inquérito e encaminha documentos à Brigada

A dispensa da professora sem ter a oportunidade de confrontar o dito pelo pai foi outro motivo que causou estranheza.

De acordo com o Diretor do Departamento Estadual de Proteção a Grupos Vulneráveis (DPGV), Delegado Christian Nedel, foi instaurado inquérito policial na 3ª Delegacia de Polícia de Proteção Criança e Adolescente. Lá serão realizadas todas as investigações, inclusive o interrogatório da professora acusada pelo pai.

Sobre a conduta do pai, Nedel informou que foi encaminhado nesta quarta-feira, 11, cópia do procedimento à Polícia Militar, órgão responsável por apuração de crime militar.

Ouvido pelo Extra Classe, o diretor da Deca, Delegado Raul Souza Vier, explicou que em sede de plantão é feito apenas o registro de ocorrência. Perguntado se poderia se entender também que a professora não teria sido ouvida porque, em tese, a condução dela teria sido um procedimento equivocado dos policiais militares, ele foi categórico: “quem tem a atribuição de apurar se foi ou não equivocado é a Brigada Militar, por se tratar de policiais militares”.

O delegado Vier foi ainda indagado se, ao encaminhar um expediente para outro órgão com prerrogativa de investigação, não haveria uma avaliação prévia sobre possível abuso de autoridade. A resposta do delegado foi que, havendo discussão acerca da licitude de determinada conduta, a Polícia Civil encaminha cópia do expediente à Instituição responsável pela apuração dos fatos, conforme prevê a lei.

Foi levada para que, indaga jurista

O ex-defensor Público-Geral do RS, entende que, mesmo sendo correto a professora ser ouvida após notificação regular, as autoridades poderiam aproveitar sua ida à Deca para perguntar se havia algo a declarar diante da condução em viatura da BM. Por que a levaram lá?! Só para humilhá-la?! Parece que sim, né?”, fala indignado.

Guazzelli vai mais longe. Apesar de em 2017 ter sido devolvido à Justiça Militar a responsabilidade de julgar casos de abuso de autoridade praticado por policiais, a conduta também podem envolver outros crimes, como constrangimento ilegal.

Assim, entende que é importante que o caso seja encaminhado ao Ministério Público, seja estadual ou federal. Esses órgãos, destaca, têm a função de fiscalizar a polícia, proteger os direitos humanos e a democracia e devem promover investigações para garantir que os policiais usem sua força de forma legal e para proteger a população.

O ex-ouvidor das polícias de São Paulo, vê outra faceta em todo o ocorrido: grande prejudicada também é a aluna, que tem 11 anos. “Está muito objetivo o abuso de autoridade. E não ajuda em nada, porque a situação da criança fica ruim na própria escola”, conclui.

Cargo político há nove anos

O pai da aluna que acabou gerando uma crise envolvendo as secretarias de Educação (SEC) e da Segurança Pública(SSP-RS) entrou na BM em julho de 2005. Há 19 anos que ele mantêm a sua patente de soldado, sem maiores progressões na carreira.

Em 1° de janeiro de 2015, primeiro dia do governo de José Ivo Sartori (MDB), no entanto, ele foi cedido à  Secretaria de Segurança Pública. De lá para cá, ele tem tido a cedência renovada. Em uma das edições do Diário Oficial do Estado (DOE) é dito que a atuação dele estaria vinculada a Divisão de Apoio Operacional da Secretaria.

Atualmente, o policial que está fora do policiamento das ruas há nove anos tem uma função gratificada de R$ 1.170,00, segundo o Portal da Transparência do RS.

Profissional da segurança pública gaúcha ouvido sob condição de anonimato pelo Extra Classe disse que a SSP basicamente é dividida entre policiais civis e militares. Todos cedidos. Para ele, por mais técnico que o trabalho possa ser, sempre há uma indicação política para as funções.  Elas vão dos serviços mais prosaicos aos mais sensíveis que envolvem operações de inteligência, como o sistema Guardião, usado para interceptações telefônicas.

A Assessoria de Comunicação de SSP confirmou que o soldado da BM é cedido à pasta, tem um horário de expediente por escala, como previsto para servidores da Segurança Pública, e trabalha de forma presencial na sede da secretaria.

Apesar disto, no BO feito na Deca, ele informou um local de trabalho 6,4 km distante. É a sede do 11º BPM de onde saiu a equipe que conduziu a professora que se encontra afastada de seu trabalho por abalo emocional.

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