EDUCAÇÃO

A convivência na escola é tão importante quanto os conteúdos, diz especialista

A doutora em psicologia escolar, Luciene Tognetta, além de abordar a questão dos celulares, aprofunda o quanto a convivência escolar é tão importante quanto os outros temas do currículo
Por Stela Pastore / Publicado em 28 de outubro de 2024

A convivência na escola é tão importante quanto os conteúdos, diz especialista

Foto: Marcelo Casal Jr./Agência Brasil)

Foto: Marcelo Casal Jr./Agência Brasil)

Na noite desta segunda-feira, 28, a doutora em Psicologia Escolar, Luciene Tognetta falará para o público do 2º Seminário Educação em Tempos de Reparação sobre a regulação no uso de celulares e Sistemas de Apoio entre Iguais (SAI) para reduzir a violência escolar. Os subtemas estão inseridos no guarda-chuva Por uma Ética nas Relações – Aprender a Conviver em Comunidade, que dá título a sua conferência. O evento on-line e encerra o seminário promovido pelo Colégio João XXIII, em comemoração aos 60 anos da instituição.

“A temática da convivência escolar é tão importante quanto os outros temas do currículo. É preciso traçar objetivos e planejamento estratégico para este desafio como pensamos matemática, ciências e outras matérias. A convivência deve ser um valor na escola”, orienta a doutora em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pela Universidade de São Paulo (USP) e doutorada sanduíche pela Universidade de Genebra.

Crescentes casos bullying, ansiedade em crianças e adolescentes, o acesso irrestrito a redes sociais e conteúdos de internet, desconexões nos núcleos familiares, aumento de casos de violência e os diferentes impactos dos acontecimentos cotidianos acentuam a fundamental importância do cuidado na convivência na comunidade escolar como um fator fundamental na educação.

Em 2023 foram 121.671 registros de casos de bullying no Brasil. Os transtornos de ansiedade diagnosticados em crianças cresce a cada ano. O SUS registra mais casos de ansiedade em crianças e adolescentes do que em adultos. São 125,8 a cada 100 mil pacientes de dez a 14 anos atendidos com casos de ansiedade. Entre os adolescentes, a taxa sobe para 157 a cada 100 mil. Já entre adultos acima dos 20 anos de idade, são 112,5 casos a cada 100 mil.

Um currículo para o convívio

A escola enfrenta diferentes situações e precisa estar preparada de forma contínua para os novos desafios que serão abordados pela especialista na conferência de hoje. A pesquisadora e líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Moral (Gepem), da Unicamp/Unesp e organizadora do Programa de Implantação das Equipes de Ajuda no Brasil, Luciene Tognetta, fala sobre a construção da convivência mediada pela tecnologia, o valor do diálogo e a implantação de Sistemas de Apoio entre Iguais (SAI).

lei antibullying, de 2015, e a lei 14.811, de 2024 innstituem medidas de proteção à criança e ao adolescente contra a violência nos estabelecimentos educacionais ou similares e garantem o direito à aprendizagem da convivência na escola. “Mas judicializar, sem diálogo não é tarefa da escola”, explica Tognetta.

“Precisamos de muita capacidade de resolução de conflitos para continuar existindo. Ter objetivos e planejamento estratégico da mesma forma como pensamos matemática, ciências e outras matérias do currículo escolar”, defende.

Já Ianne Vieira,  Coordenadora do Núcleo de Formação da escola organizadora, situa que o Seminário fecha com essa temática da convivência, da ética nas relações porque todos os temas sensíveis da educação passam por essa perspectiva. “Poder pensar como as crianças, os jovens, as famílias, os professores, os profissionais da educação vão conviver e construir juntos uma possibilidade de educação faz toda a diferença. É um currículo para conviver. Compreender a dimensão da aprendizagem para além de conteúdos escolares historicamente construídos e trazer experiências em comunidade”, pontua. A conferencista conversou com o Extra Classe sobre o tema e aprofundou alguns de seus pontos e vista.

A convivência na escola é tão importante quanto os conteúdos, diz especialista

Foto: Reprodução/YouTube

Luciene Tognetta, doutora em Psicologia Escolar

Foto: Reprodução/YouTube

Extra Classe A Escola é o novo território comunitário?
Luciene Tognetta A escola é onde mais se encontram os pares numa geração que não tem mais primos, que pouco se encontram nas ruas ou cujas ruas são trocadas pelas telas com encontros vazios e rasos entre amigos virtuais, sem identidade, sem apego, sem intimidade, sem pertencimento. Será na escola a convivência da exclusão ou do pertencimento, da ameaça ou da empatia, da covardia ou da ajuda, da solidão ou do companheirismo.

EC Quais são os novos desafios da convivência escolar?
Luciene Na pandemia vivemos aquele momento de solidão, de tensão, perdas de expectativa de futuro, de sentido para a vida. Além das questões econômicas e sociais tanto no Brasil como no mundo. Acumulamos problemas que chegaram até a escola e se manifestaram na forma de sofrimentos emocionais, como no aumento do transtorno de ansiedade entre crianças e jovens. Esse dado mostra um problema a ser tratado, um desafio ainda maior de transformar a escola num espaço de bem-estar emocional e social.

EC Como mediar a cyberconvivência?
Luciene A convivência mediada pela tecnologia não é um problema em si. Se torna um problema quando expande os limites,  principalmente em crianças que não podem ser expostas às telas e conteúdos da mesma forma que adolescentes e adultos. É preciso uma regulação deste tempo, do acesso que essa criança tem nesses espaços. Esta convivência tem que ser regulada.

O grande problema da vida online ainda tem sido essa provisoriedade das formas de regulação, das fake news, das distorções ignorantes do que é liberdade de expressão. Este é o grande prejuízo que a gente ainda tem a superar na internet –  tanto para crianças quanto para adolescentes, como para adultos. Crianças nem deveriam ter esse acesso; adolescentes devem ter um acesso explicitamente reduzido para determinados conteúdos e todos precisam ter essa regulação.

De forma equivocada, muitas pessoas chamam de liberdade de expressão falar qualquer coisa na internet, como ofensas, discriminações, ameaças, perseguições como se fossem formas de liberdade de fazer o que na vida real não se faria. A vida em sociedade tem regras e a vida mediada pela tecnologia deveria ter a mesma forma de regramento.

EC Como tratar o uso de celular na escola, na sala de aula?
Luciene Alguns países saíram na vanguarda na proibição do uso de celular em sala de aula. Sem julgamento se é bom ou não, essa restrição precisa ser fundamentada numa boa justificativa porque se está num ambiente, em que a natureza é formar. A segurança,  a saúde e a falta de mecanismos reguladores para proteger a criança são motivos para a restrição do celular na escola. Proteger é um bom motivo para a restrição ao uso do celular na escola.

Mas, se estamos proibindo o uso de celulares da escola apenas para minimizar problemas de professores, para as crianças obedecerem,  ou criar sujeitos  obedientes a uma regra, sinto muito dizer: mas estamos formando apenas sujeitos conformistas que estão pagando o preço do pecado do próprio homem de criar mecanismos de progresso tecnológico e proibir os próprios seres humanos do acesso a esses mecanismos.

EC Esta regulação pode ser temporária?
Luciene Esta questão é comparável a sociedade de cotas: são necessárias para equilibrar um erro histórico. Se justifica proibir o celular neste momento como um equilíbrio momentâneo para dar conta deste compromisso social da regulação e do controle para que essas crianças então tenham a proteção necessária.

Mas o ideal e que professores e alunos pensem juntos para chegar a acordos coletivos de “por que é que não podemos utilizar mais os celulares na escola”. Chegar a esses acordos coletivos seria muito mais eficaz para que as crianças entendam o motivo pelo qual o uso dos celulares está sendo um prejuízo hoje nas escolas.

EC Qual a melhor maneira de preparar os/as educadores/as na questão da violência?
Luciene A formação docente é um aspecto essencial para a superação dos problemas de violência nas escolas. Não estamos falando de cursos de especialização, mas de políticas públicas que incorporem momentos de estudo e instrumentalização, de troca, de articulação entre a equipe gestora, equipe de professores e outros profissionais que atuam indiretamente no restante da rede de proteção em que a escola está inserida.

Organizar esses espaços de articulação é trabalho de uma política pública que implementa,  planeja, sistematiza a longo prazo um espaço em que os professores, os gestores e esses outros profissionais tenham tempo de estudar necessariamente o que é fundamentação teórica mas também estudar casos que acontecem na escola e pensar quais soluções mais eficazes para acompanhar e propor soluções como estes meninos e meninas podem receber medidas eficazes para os seus problemas.

EC Como o apoio dos pares reduz a violência escolar?
Luciene Uma das ações mais promissoras que conhecemos para transformar as relações na escola, a partir do seu papel de formar pessoas melhores, são os Sistemas de Apoio entre Iguais (SAI). É uma estratégia de preparação de alunos e alunas para atuar acolhendo, incentivando, orientando, aconselhando, mediando conflitos, cultivando amizades e promovendo ações de bem-estar entre seus pares.

Principalmente quando as violências são escondidas — como é o caso do bullying, das exclusões, da solidão e dos sofrimentos emocionais entre os adolescentes ou mesmo entre as crianças — há quem veja: os pares sabem do que acontece com seus iguais. Há escolas que conseguem reduzir esses números trabalhando com a prevenção: vendo o que não se vê, não com os olhos dos adultos, mas dos pares.

Consistem em grupos de alunos e alunas que são escolhidos (pelos próprios pares, por suas relações de confiança) para ajudar, em seu sentido mais pleno, nas questões de convivência na escola. Não se trata de mediar ou resolver os desafios dos pares, mas de ajudá-los a encontrar as soluções e de fomentar as ações de convivência.

Esses alunos e alunas são preparados para acolher, reconhecer e saber intervir nos diversos problemas cotidianos enfrentados nas escolas, sempre com a supervisão e acompanhamento de um tutor, um professor que é escolhido também em função de sua competência para tanto e formado para essa ação.

Países como Chile, Espanha e Colômbia já perceberam que, para superar e combater as violências escolares é necessário investimento na formação de professores e ações que possibilitem uma convivência positiva e de bem-estar, para evitar que os problemas venham a acontecer.

Será inútil toda e qualquer ação que não implique na construção de um ambiente de acolhida, de bem-estar.

EC Quais os resultados das Equipes de Ajuda no Brasil?
Luciene No Brasil, em 2015, iniciamos o trabalho de implementação de um tipo de SAI, as chamadas Equipes de Ajuda. Esse sistema foi originalmente criado na Espanha, a partir de um antigo modelo de “alunos ajudantes” já existente no país. A frequência das intimidações nas escolas era menor, em comparação com as escolas sem as equipes. Mas, comparadas às escolas espanholas, mesmo nossas escolas com Equipes de Ajuda apresentam maior frequência de intimidação do que as escolas sem equipes na Espanha.

Nas escolas pioneiras no Brasil, estamos construindo um modelo para o partir do zero. Diferentemente da Espanha, o Brasil não possui políticas públicas de convivência já em funcionamento.

Não há como uma Equipe de Ajuda funcionar em uma escola sem que seus professores entendam que é preciso espaços de diálogo; ou sem que professores e gestores entendam que as sanções a serem dadas aos comportamentos equivocados dos alunos precisam ser por reciprocidade e não com punições. Isso requer um trabalho anterior e concomitante, capaz de transformar a convivência em um valor na escola. Algo que a Espanha já consegue garantir na formação sistemática de seus professores.

EC A escola é um centro de debate sobre as violências?
Luciene O combate a este problema não se faz apenas com a escola, porque a escola não pode assumir uma missão salvacionista. Atuar na escola é uma entre as várias ações necessárias para se mudar esse contexto de violência, e deve se somar a outras, como o acionamento e o funcionamento efetivo da rede de proteção em que a escola está inserida ou a regulação das plataformas digitais.

Infelizmente, pouco se fez desde as diferentes chacinas para transformar os espaços escolares e introduzir a discussão sobre essa temática tanto na formação de professores como na organização de políticas públicas.

Além disso, questões políticas e ideológicas também impactam os padrões de comportamento de jovens e suas famílias – como a falta de políticas de controle de armas no país nos últimos anos.

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