Não basta ser pop, o agro quer fazer a cabeça de estudantes e interferir nas escolas
Foto: Donme/Reprodução
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O agro vai a escola e não é para aprender. Dois movimentos criados em 2021 dão conta de que lideranças do agronegócio brasileiro querem muito mais do que passar a ideia de que o “Agro é tech, agro é pop, agro é tudo”. Se o movimento Todos a Uma Só Voz declara a ideia de “conectar e unir toda a cadeia produtiva que compõem o Agro”, o De Olho no Material Escolar (Donme) tem na educação prioridades preocupantes para especialistas que veem nele uma nova versão do Escola sem Partido com o potencial de influenciar nos rumos da formação de crianças e adolescentes no país.
NESTA REPORTAGEM
Foto: Reprodução/Redes sociais
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Agora, na forma de uma associação, o Donme trabalha fortemente para que o documento elaborado pela Comissão Nacional de Educação (Conae), o Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD) e a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) sejam revistos.
O texto da Conae serve de referência para a elaboração do Plano Nacional da Educação (PNE) de 2024 que está em debate no Congresso e foi postergado até o final do ano pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
A ideia geral do Donme segue a lógica da famosa campanha publicitária criada pela Rede Globo em 2016: promover uma imagem positiva do agronegócio no Brasil. A diferença, segundo fontes ouvidas pelo Extra Classe, é que uma coisa é publicidade, a outra, tentativa de censura e moldar conteúdos conforme interesses específicos de um setor com gente e organizações muito poderosas por trás.
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Sociedade Civil Ruim
Para a cientista política e doutora em Ciências/Relações Internacionais, Andressa Pellanda, o Todos a Uma Só Voz e o Donme ilustram o conceito de Bad Civil Society (Sociedade Civil Ruim).
O conceito sociológico descreve organizações que atuam em oposição a valores democráticos e direitos fundamentais. Embora sejam parte da sociedade civil e utilizem a mobilização social, os interesses desses grupos podem ser prejudiciais ao bem-estar coletivo.
No geral, uma Bad Civil Society diverge de entidades que tradicionalmente defendem a promoção de direitos e o fortalecimento de valores democráticos.
O início do Donme ilustra bem a ideia. Foi uma carta remetida a uma tradicional escola privada de Barretos, interior de São Paulo. No documento, a fundadora e atual presidente da organização, Letícia Jacintho e outros pais criticaram um material didático por falar em desmatamento, incentivar as crianças a “manifestar piedade aos índios (Sic.) e repudiar a cultura da cana-de-açúcar”, por os ter desalojado.
Cientista política Andressa é coordenadora da Campanha Nacional pelo Direito à Educação (Campanha) e ao lado da doutora em Ciências Sociais Marcele Frossard realizou um estudo ainda não publicado onde é registrado que – dando suporte financeiro a atuação do Donme – há dezenas de corporações, empresários e entidades do agronegócio, como a Abag que tem entre seus associados empresas como Cosan, Cargil e JBS.
Quem está por trás
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Letícia Jacintho é considerada pela revista Forbes uma das mulheres mais poderosas do agro, ao lado de sua sogra, Helen Jacintho, que também participou da fundação da Donme. As duas integram o Conselho Superior do Agronegócio (Cosag) da poderosa Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp).
Fazem parte de um grupo responsável por três fazendas (uma em São Paulo e duas em Goiás) para a produção de cana de açúcar, borracha natural, madeira para corte (a teca) e pecuária de confinamento. Ainda mantêm um plantel de gado registrado (Brahman e Nelore Mocho) e criação de touros e matrizes.
A atuação no Cosag atraiu para o Donme outro nome de peso, o próprio presidente do conselho, Jacyr Costa Filho.
Bruno Bassi, coordenador de pesquisa do Observatório de Olho nos Ruralistas, relata que o Donme acabou “sendo apadrinhado pela Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA)” e foi daí que começou a crescer exponencialmente.
“Cresceram dentro da estrutura do Instituto Pensar Agro (IPA) que é o motor logístico da FPA”, explica Bassi ao se referir ao instituto privado fundado em 2012.
O IPA tem como principal fonte de financiamento associações e empresas ligadas ao agronegócio para e atuar como um think tank para o setor e trabalha em parceria com a FPA e outras entidades para formular propostas de políticas públicas, conduzir estudos técnicos e promover discussões sobre temas que afetam a agropecuária nacional.
Com este suporte, o Donme acabou deixando para trás o Todos a Uma Só Voz que foi mais ativo até 2023, diz Bassi. Coordenado pelo publicitário Ricardo Nicodemos da Silva, o movimento chegou a anunciar em 2021 uma parceria do com a Federação Nacional das Escolas Particulares (Fenep).
O objetivo, conforme registro, “valorizar ações voltadas para a pluralidade e a empatia, da sociedade brasileira, pela atividade do agronegócio, ressaltando a importância para a economia e o desenvolvimento do país”.
Tanto a iniciativa de Nicodemos da Silva quanto a de Letícia Jacintho tiveram as bençãos de Roberto Rodrigues, ministro da Agricultura durante o primeiro mandato de Lula (2003-2006), fundador da Associação Brasileira do Agronegócio (Abag) e um dos articuladores, segundo Bassi, da criação do Instituto Pensar Agro (IPA) que é o braço logístico da FPA.
Rodrigues, para Bassi, é uma das eminências pardas do setor e ocupa a posição de conselheiro do Donme.
“É a principal cabeça dessa história de agronegócio. É o cara que cunha o termo no Brasil. Antes se utilizavam outros nomes. Latifúndio, por exemplo. A esquerda perdeu essa disputa (latifúndio x pequenas propriedades rurais) graças ao Roberto Rodrigues, que fez essa construção ideológica com o pessoal da Esalq, da USP (Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da Universidade de São Paulo) e da FGV (Fundação Getúlio Vargas)”, afirma.
Bassi não têm dúvidas, Esalq e FGV são os centros formadores da ideologia do agronegócio brasileiro. “Importaram esse conceito dos Estados Unidos e passaram a incutir na cabeça das pessoas que o cara que cria cabras lá no interior da Paraíba, como a nova campanha da Globo diz, é agronegócio. Não é, não. Não tem nenhum dos subsídios que os grandes têm”, pontua.
Os pequenos produtores rurais e a agricultura familiar, nessa lógica, ainda servem de escudo para o discurso do Donme. Letícia, fala que os livros didáticos do Brasil mostram na maioria das vezes o agro de forma negativa, ao mesmo tempo que defende a agricultura familiar. Isso, para ela, seria uma incongruência já que, na sua visão, fazem parte de um mesmo sistema econômico, o agronegócio.
A pesquisa e o lobista
A presidente do Donme se recorre de uma pesquisa encomendada à Fundação Instituto de Administração (FIA) criada em 1980 por professores do Departamento de Administração da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da USP.
O trabalho analisou 94 livros didáticos utilizados nos ensinos Fundamental I e II e no Ensino Médio no Brasil e afirma ter encontrado 746 citações negativas, contra 472 positivas ao agronegócio.
Ao todo, a FIA teria encontrado 345 unidades de registro ligados ao agronegócio nos livros pesquisados. Destes, 110 com “viés político ideológico”, 45 classificadas como “informação desatualizada”, 153, como “informação imprecisa” e 105 “como “informação ausente a ponto de prejudicar a compreensão para o aluno”.
Os dados estão sendo utilizados pelo Donme para justificar uma atualização sobre o que é ensinado no Brasil sobre a questão agrária. Segundo o que a associação diz, para que “a ciência esteja presente nos livros didáticos com dados e informações técnicas e reais”.
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Só neste ano, o Donme já se reuniu pelo menos duas vezes com os presidentes do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), e da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL). Um encontro também foi realizado com o presidente da Comissão de Educação da Câmara, o deputado Nikolas Ferreira (PL/MG) que já prometeu pautar a discussão no colegiado.
Na mira, o PNE. O plano que tem validade de 10 anos deve ser votado pelo Congresso em 2025. “O forte lobby do grupo, com o apoio da bancada ruralista, pode impedir avanços em temas como as mudanças climáticas”, declara Andressa.
A pesquisa do Donme teve como um dos principais financiadores a CropLife Brasil, subsidiária no país da CropLife International, associação dos principais fabricantes de agrotóxicos do mundo.
Na ocasião, o presidente da CropLife Brasil era o cientista político Christian Lohbauer que, curiosamente, ao sair da organização para dar lugar a Eduardo Sousa Leão, vai para o Donme na posição de vice-presidente Institucional.
Lohbauer é um dos mais expressivos lobistas do agro brasileiro. Antes da CropLife Brasil ele ocupou a posição de diretor de Assuntos Corporativos da Bayer, foi presidente executivo da Associação Nacional de Exportadores de Sucos Cítricos e diretor executivo da Associação Brasileira de Proteína Animal.
“Ele entra no De Olho no Material Escolar já com esse viés de influenciar diretamente projetos na área de educação, principalmente o Plano Nacional de Educação; para retirar conteúdos negativos ao agronegócio, aos agrotóxicos, entre outros temas, e, também, tirar menções positivas à luta pela terra. Ou seja, reescrever os livros de história, por um lado, e por outro, disputar recursos da própria educação”, entende Bassi.
O lobista foi dos fundadores do partido Novo e foi candidato a vice-presidente do Brasil pelo partido em 2018 na chapa de João Amoedo. Chegou a sair do partido quando o Novo ameaçou se distanciar da presidência de Jair Bolsonaro (PL), mas retornou a tempo de participar do processo de expulsão de Amoedo por ter declarado voto em Lula no segundo turno de 2022.
Ele ainda participa como comentarista em um programa da Brasil Paralelo, empresa de mídia independente conhecida pela criação de conteúdos de extrema-direita,
Ciência negacionista
Foto: Donme/Reprodução
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Sobre a alegada atualização da literatura escolar brasileira “com base na ciência”, carro chefe do Donme, a presidente da Campanha lembra que uma das questões pontuadas pelo movimento nega que o Brasil seja o maior consumidor de agrotóxicos do mundo.
Essa informação consta da Agroteca, biblioteca virtual criada em uma parceria da Donme com a Esalq, da USP. No entanto, a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) registra que o Brasil é líder absoluto no consumo de pesticidas ao se levar em consideração os dez países com as maiores áreas agriculturáveis no mundo.
Em tese, a ideia do Donme é que não deve ser ensinado nas escolas que o alimento que chega à mesa dos brasileiros está carregado de agrotóxicos.
“Há agrotóxicos proibidos em outros países, mas permitidos no Brasil, como é o caso da atrazina, do glufosinato e do hexazinona. O Brasil é um dos principais receptores de agrotóxicos proibidos na União Europeia, por exemplo. Ou seja, há muitas controvérsias inclusive globais no uso exacerbado e extensivo que se faz aqui” explana Andressa.
Outra controvérsia na ciência defendida pelo Donme é a negação de que a pecuária é a uma das responsáveis pelo desmatamento na Amazônia e do trabalho escravo no cultivo da cana-de-açúcar.
Só para se ter uma ideia das inverdades, nos últimos quatro anos 1.105 pessoas em situação análoga de trabalho escravo foram resgatadas em canaviais brasileiros. Já sobre os desmatamentos na Amazônia, a criação de gado é apontado por uma série de estudos como a principal responsável pela devastação.