Uso abusivo de celulares é tema da educação e de saúde pública
Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil
Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil
O uso em larga escala e muitas vezes abusivo de smartphones por estudantes de todas as idades colocou em pauta um debate acirrado: o uso de celulares em sala de aula é uma ferramenta pedagógica útil ou tende a ser prejudicial a crianças e adolescentes? Fala-se, inclusive, em síndrome de abstinência, quando crianças, jovens e adultos são privados do uso dos aparelhos.
Nesse contexto, a Comissão de Educação (CE) da Câmara de Deputados aprovou em 30 de outubro o projeto de lei 104/2015, que proíbe o uso de celulares e outros aparelhos eletrônicos portáteis em salas de aula.
O projeto, aprovado em votação simbólica na CE, segue para análise da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ). Enquanto o PL tramita no Congresso Nacional, o tema ganha espaço na imprensa e nos debates. Recentemente, pesquisa do Datafolha mostrou que 62% dos entrevistados apoiam o banimento completo do celular nas escolas.
Um quarto dos países no mundo já vedam uso de smartphones nas escolas. No Brasil estados como São Paulo, Rio de Janeiro, Roraima, Distrito Federal, Paraná, Maranhão e Tocantins já possuem legislações com total ou algum tipo de restrição ao uso nas escolas, porém nem sempre há cumprimento ou fiscalização. O Rio Grande do Sul, por exemplo, possui desde 2008 a Lei nº 12.884, que proíbe o uso de celulares nas escolas, mas o que se vê é uma autorregulação de cada estabelecimento.
Sobre o assunto, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) reconhece o potencial dos dispositivos móveis para o aprendizado, mas destaca a necessidade de um uso responsável e estratégico. No “Relatório de monitoramento global da educação, resumo, 2023: a tecnologia na educação: uma ferramenta a serviço de quem?”, a Unesco enfatiza a necessidade de uma “visão centrada no ser humano”.
Segundo a pesquisa TIC Educação, também da Unesco, divulgada em agosto deste ano, com dados de 2023, ao menos 28% das escolas de Ensino Fundamental e Médio públicas e particulares do Brasil proíbem o uso de celular pelos alunos. O levantamento mostra também que 64% das instituições permitem, mas restringem o acesso aos telefones a determinados espaços e horários.
A professora Alexandra Lorandi, da Faculdade de Educação da Ufrgs, afirma que a restrição completa do uso do celular em sala de aula como medida emergencial é compreensível.
Segundo ela, é necessário que o debate seja ampliado e que sejam analisados aspectos favoráveis e contrários a esse uso sob a perspectiva de profissionais tanto da educação como da saúde.
Dentre os possíveis aspectos favoráveis, a professora destaca as possibilidades de pesquisa, as oportunidades para o desenvolvimento de projetos colaborativos, a dinamicidade dos objetos de aprendizagem interativos, a criatividade impulsionada pelas ferramentas de autoria que oportunizem a criação de conteúdos pelos estudantes, além dos estratégicos jogos digitais que podem mobilizar múltiplas competências.
Em contraponto aos possíveis benefícios, Alexandra chama a atenção para o poder que o celular tem em relação à distração. Segundo ela, “redes sociais, jogos e mensagens instantâneas são altamente atrativos e programados para serem viciantes, o que pode impactar severamente a concentração dos estudantes durante o uso concomitante às aulas presenciais”. A professora chama a atenção, também, para o perigoso e indevido uso de câmeras nos espaços educacionais que pode gerar severos problemas de segurança e de disciplina. “O fato é que não fomos educados e não estamos educando nossos jovens para o uso crítico e consciente da tecnologia”, diz Alexandra.
Além do relatório apresentado pela Unesco, Alexandra cita algumas experiências internacionais como a França, por exemplo, em que o uso de celulares em sala de aula é proibido para alunos do ensino fundamental. Outros países, como a China, implementaram políticas que restringem o uso de celulares nas escolas, permitindo apenas o acesso a plataformas digitais educacionais. No Reino Unido, a maioria das escolas possui políticas de uso de celulares que permitem a utilização baseada em atividades estratégicas para a aprendizagem, sob a supervisão dos professores.
Diante desse conflituoso e sensível cenário, Alexandra enfatiza que a utilização de celulares em sala de aula apresenta desafios e oportunidades. Segundo ela, é fundamental que o debate sobre o tema seja pautado no compromisso de utilizar a tecnologia a favor da aprendizagem e que seja conduzido com base em evidências científicas e em políticas educacionais eficazes. A integração estratégica dos celulares, com o acompanhamento dos professores, e o desenvolvimento de políticas que promovam o uso responsável e educativo podem contribuir para uma experiência de aprendizagem mais engajadora e significativa para os estudantes.
Alexandra Lorandi é doutora em Informática na Educação (PGIE/Ufrgs) e dedica-se a estudos sobre tecnologia digital na educação, estratégias educacionais baseadas na tecnologia de mineração de texto, educação a distância e formação de professores. É professora da Faculdade de Educação/Ufrgs, Pesquisadora do Núcleo de Tecnologia Digital aplicada à Educação (Nuted/Ufrgs), colaboradora no Programa de Pós-Graduação em Informática na Educação/Ufrgs e colaboradora da Secretaria de Educação a Distância/Ufrgs. Ela conversou com o Extra Classe sobre o assunto.
Extra Classe – Além da questão da distração, cada vez mais os celulares tem sido uma ferramenta de vigilância e até mesmo de patrulha ideológica, quando vídeos e gravações descontextualizadas de aulas viralizam em grupos de pais no WhatsApp e criam situações que interferem diretamente na liberdade de cátedra, com perseguições a docentes e há muitos relatos de autocensura. Como a senhora avalia essa situação?
Alexandra Lorandi – A perspectiva do celular como ferramenta de vigilância e de patrulha ideológica é bastante complexa. A utilização de vídeos e gravações descontextualizadas nos espaços educacionais pode gerar um clima de autocensura, no qual os educadores se sentem pressionados a evitar certos temas ou abordagens para não serem alvo de críticas ou perseguições. Tenho dado ênfase à necessidade de uma educação crítica e permanente em relação ao uso da tecnologia, tanto para alunos quanto para professores. A presença dos smartphones dentro das escolas é bastante recente e, para que se construa um ambiente seguro e profícuo em relação aos benefícios que a tecnologia pode nos oferecer, precisamos saber usá-la explorando seu potencial e respeitando os limites de ordem social.
EC – Mesmo que todo aparato tecnológico sempre possa ser usado como ferramenta pedagógica (caso do celular, da internet e computadores pessoais), qual a saída para as comunidades escolares diante dos atuais contras que têm se apresentado, inclusive o cyberbullying?
Alexandra – Não há resposta única ou receita sobre “qual a saída para as comunidades escolares em relação ao uso do celular”. Instituições de vários países ao redor do mundo estão pesquisando sobre o assunto em busca de possíveis soluções. A restrição completa do celular nos espaços educacionais está sendo uma medida emergencial diante dos riscos e dos efeitos do uso irrestrito e, algumas vezes, irresponsável que estamos assistindo. Até que tenhamos políticas claras e eficazes sobre o uso responsável da tecnologia, integrando essas ferramentas de maneira estratégica no processo de aprendizagem, a restrição está sendo uma medida de proteção para os estudantes e professores.
EC – Para além da sala de aula, a senhora acha que está na hora da sociedade como um todo repensar a utilização dos smatphones e debater seu uso abusivo com a mesma importância que se estuda uso abusivo de cigarro, álcool e outras substâncias, para que se tenha diretrizes e até mesmo políticas de uso?
Alexandra – A reflexão sobre o uso dos smartphones na sociedade, especialmente entre os jovens, é extremamente necessária. O uso saudável e equilibrado da tecnologia, focando em práticas de educação digital tanto nas escolas quanto na sociedade em geral é urgente. Temos pesquisas científicas que estão nos apresentando importantes evidências sobre o uso da tecnologia nos espaços educacionais e esse debate pode auxiliar em políticas públicas eficazes. A resposta para o tema sugere que o debate seja multifacetado, envolvendo aspectos pedagógicos, sociais e de saúde pública, e que as políticas educacionais e as práticas sociais devem ser reformuladas para promover um uso mais consciente e equilibrado dessas tecnologias.