Professores da educação infantil recebem baixos salários, e 10 mil crianças estão sem vagas

Foto: Igor Sperotto
Com apelos para mobilizar uma categoria que lida com a fase mais sensível da educação básica e recebe irrisórios R$ 11,10 por hora-aula, o encontro preparatório lotou o Auditório Araújo Vianna no dia 13 de fevereiro. Perdeu o dia quem achou que os debates sobre os rumos da educação infantil na capital passariam pelas principais pautas da categoria, a desvalorização profissional e os baixos salários
Foto: Igor Sperotto
Manhã de verão escaldante na capital gaúcha. Na preparação do ano letivo – que em 2025 deixará aproximadamente 10 mil crianças de zero a cinco anos fora das escolas de educação infantil conveniadas à prefeitura de Porto Alegre (antigas creches) devido à falta de vagas –, a Secretaria Municipal de Educação (Smed) organizou uma Jornada Pedagógica, com palestras, cases motivacionais e música ao vivo.
Com apelos para mobilizar uma categoria que lida com a fase mais sensível da educação básica e recebe irrisórios R$ 11,10 por hora-aula, o encontro preparatório lotou o Auditório Araújo Vianna no dia 13 de fevereiro. Perdeu o dia quem achou que os debates sobre os rumos da educação infantil na capital passariam pelas principais pautas da categoria, a desvalorização profissional e os baixos salários.
O sistema de escolas de educação infantil parceirizadas, que responde por 80% da demanda de educação infantil em Porto Alegre, conta com cerca de 220 instituições privadas e recebe em torno de R$ 900,00 por aluno. Com o aumento do déficit, a Smed abriu editais para compra de vagas na rede privada, pagando R$ 1,3 mil por vaga e um acréscimo de R$ 359,47 para berçário. “A política da compra de vagas não tem sustentação e não assegura educação de qualidade”, denuncia Aline Kerber, presidente do Conselho Municipal de Educação (CME).
O piso salarial das escolas municipais de ensino infantil exclusivo da capital é de R$ 14,48 por hora-aula, enquanto que as instituições da rede privada de educação básica que ofertam educação infantil pagam R$ 22,83 a hora-aula. A menor remuneração nesse nível de ensino está nas instituições parceirizadas das prefeituras, R$ 11,10 – valor que equivale a menos da metade da remuneração da hora-aula em uma escolinha particular.
Jogo sem regras
A Jornada Pedagógica que ocorreu no início do ano atraiu mais de 4,5 mil docentes e outros profissionais da educação infantil, interessados na validação do referencial curricular e das demais propostas pedagógicas com as quais a Smed pretende “elevar os indicadores” desse nível da educação na capital gaúcha.
“Os profissionais que atuam na ponta, no dia a dia das nossas escolas, são essenciais para o debate. Atuando como um verdadeiro time, conseguiremos elevar os índices da nossa educação”, exultou o secretário Leonardo Pascoal. A comparação com o mundo do futebol faz sentido. De fato, nessa cruzada para melhorar os indicadores da educação e zerar o déficit, são muitas as apostas feitas pela prefeitura, que nem sempre joga pelas regras da legislação educacional.
O edital da compra de vagas atropela as normas do órgão regulador dos sistemas de ensino na capital ao habilitar escolas não credenciadas e não autorizadas pelo Conselho de Educação. De um total de 11 instituições fiscalizadas pelo CME por determinação das Promotorias de Justiça Regionais de Educação (Preducs) do Ministério Público do RS, apenas uma tinha autorização para funcionar e, mesmo assim, estava com o prazo expirado. “A compra de vagas não tem transparência e não garante a legalidade dessas escolas”, alerta Aline. O CME relatou ao MPRS a violação de direitos, como agressões físicas e até abuso sexual contra crianças em escolas. “Zerar a fila de espera sem respeitar as regras do jogo é complicado”, critica.
Uma das palestrantes, a professora e mestre em Educação pela Ufrgs Lisiane Rossato Tebaldi, chamou a atenção para o maior desafio enfrentado pelas educadoras e que deveria nortear as políticas educacionais, o referencial socioeconômico das crianças atendidas na rede parceirizada. “No final do ano letivo de 2024, das 16 mil crianças matriculadas, 11,6 mil eram de famílias beneficiárias do Bolsa Família, ou seja, pertencem a núcleos familiares em situação de vulnerabilidade social, que vivem na pobreza ou na extrema pobreza”, situa.
As dificuldades enfrentadas por esses profissionais foram pontuadas por algumas professoras, na condição de anonimato. “Somos desvalorizadas em todos os sentidos, a começar pela remuneração, que não condiz com o nível de demanda das crianças e da nossa formação. Não há estrutura, nem profissionais de apoio”, aponta L., 43 anos. Professora de educação infantil há 28 anos, revela que recebe cerca de R$ 2 mil por mês por 40 horas semanais.
A auxiliar pedagógica A. afirma que a baixa remuneração e a falta de condições de trabalho também prejudicam a atuação dos profissionais de apoio. “Estamos há mais de seis anos sem reajuste, convivendo com salas de aulas superlotadas, sucateadas, sem estrutura e sem ar-condicionado”, relata.
A Smed não retornou aos pedidos de informações.
Privatização das escolas comunitárias
Para Cíntia Mattos, do Movimento Professoras Sim, Técnicas em Desenvolvimento Infantil Não, a falta de investimentos e os baixos salários são reflexos dos valores repassados pela prefeitura, cerca de R$ 900,00 por aluno. “Atualmente, o movimento da prefeitura e da Secretaria de Educação é a ‘desparceirização’: estão retirando a administração das escolas das Organizações da Sociedade Civil. O edital de credenciamento 04/2023 mostra que três grandes redes privadas assumirão boa parte das escolas comunitárias. Acredito que essa nomenclatura ‘comunitárias’ nem cabe mais nessa situação”, avalia Cíntia.
“As escolas comunitárias estão estacionadas, sem um reajuste real e sem valorizar seus professores. Muitas conveniadas se comprometeram em reconhecer os profissionais de sala (professores). Contudo, o município precisa respaldar financeiramente as instituições sem fins lucrativos. Não temos de onde tirar o dinheiro, senão pelo repasse da Smed”, argumenta.
O piso salarial das escolas de educação infantil exclusiva do município é de R$ 14,48 e da rede privada (educação infantil e ensino fundamental – 1º ao 5º ano), R$ 22,83. A hora-aula das parceirizadas é a mais baixa: R$ 11,10.
Base do Sinpro/RS: valorização profissional e redução da jornada
Após um longo período de negociações e assembleias iniciado em meados de 2023, o Sinpro/RS passou a representar a categoria das profissionais das escolas parceirizadas. Em fevereiro de 2024, o Sindicato firmou a primeira Convenção Coletiva de Trabalho (CCT) das professoras que atuam em escolas comunitárias de educação infantil no Rio Grande do Sul com o Sindicato Interestadual das Instituições Beneficentes, Religiosas e Filantrópicas (Sinibref).
“Os docentes que atuam nesses estabelecimentos passaram a contar com uma série de direitos e benefícios que até então não tinham, como a contratação como professor para o exercício da docência, piso salarial, cláusulas sociais e a obrigatoriedade de acompanhamento do Sindicato nas homologações das rescisões contratuais”, destaca Marcos Tonial, diretor do Sinpro/RS.
O dirigente afirma que, além do reajuste do valor da hora-aula pelo INPC (4,87% retroativos a 1º de janeiro, data-base da categoria), a CCT 2025 estabelece a carga horária máxima de 40 horas semanais para todas as instituições.
“A educação infantil é uma etapa fundamental na formação das crianças, pois é o momento de socialização e interação com o mundo fora da família. É uma etapa de desenvolvimento de habilidades sociais e cognitivas e carece, portanto, de um profissional valorizado financeiramente para acompanhar esse processo”, frisa Tonial.
Para Elaine Clemente, presidente do Sinibref, o acordo com o Sinpro/RS representa o resgate da valorização profissional diante “do equívoco que algumas instituições cometiam, e algumas ainda cometem, de achar que a educação infantil pode acontecer sem a figura do professor”.
Ela ressalta que as instituições têm limitações, pois, por força de lei, não podem ter contrapartida dos alunos e dependem dos recursos repassados pelo poder público, que recebe os valores do Fundeb.
“O processo de melhoria da carreira, não só dos professores, mas de todos os profissionais das instituições passa por uma compreensão do gestor público em relação à importância do trabalho que as instituições exercem e da valorização que precisa acontecer com todos os empregados”, reforça.
“Aqui me sinto professora”

Foto: Igor Sperotto
Analia: “Na escola privada, o professor adoece porque não tem apoio, não consegue dividir as angústias que são próprias do fazer docente”
Foto: Igor Sperotto
Analia Isabel Serrano, 52 anos, é professora da educação infantil há 12 anos e acredita que as melhores condições de trabalho na rede comunitária compensam os baixos salários. Por isso, pediu demissão de uma escola privada para se dedicar à docência na Instituição de Educação Lupicínio Rodrigues, parceirizada da prefeitura de Porto Alegre. “Minha escolha foi trabalhar em conveniada por toda a estrutura pedagógica e de materiais e o respaldo que a escola privada não oferece em sala de aula”, justifica.
As condições de trabalho nas conveniadas, que têm uma estrutura e uma concepção de escola pública, são muito melhores, enfatiza. “E, de fato, são melhores, ainda que a realidade na educação infantil privada seja muito ruim. Já lecionei meio turno em escola privada e meio turno em instituição conveniada. Posso afirmar que o ensino privado não evoluiu, está desatualizado, não investe em qualificação e formação continuada”, enumera.
São concepções diferentes sobre o papel do professor, constata Analia. “Na escola privada, o professor adoece porque não tem apoio, não consegue dividir as angústias que são próprias do fazer docente. O professor é apenas um número, assim como o aluno, e quem expõe que está com algum problema em sala de aula é demitido antes de ser ouvido. O que mais tem é auxiliar pedagógico dando aula, poucos contratados com qualificação e alta rotatividade.”
Por tudo isso, explica, não se sentia professora. “Já no contexto de uma educação pública que rege a rede conveniada, me sinto mais valorizada e respeitada, com a autoridade de ser professora. Ali eu sei que não vou precisar comprar materiais com meu salário para viabilizar uma aula.”
Elas estão desistindo da educação infantil
Nas rescisões de contratos homologadas pelo Sinpro/RS nos útimos três anos, chama a atenção o crescente número de pedidos de demissão na educação infantil. Das 1.033 rescisões de 2022, 457 foram demissões por iniciativa da instituição de ensino e 576 foram pedidos de demissão. Em 2003, das 1.148 rescisões, ocorreram 491 desligamentos pelas escolas e 657 por iniciativa dos profissionais. No ano passado, o Sinpro/RS homologou 1.146 rescisões, das quais 627 foram pedidos de demissão.
Cíntia Mattos identifica uma migração para outros níveis de ensino e afirma que já está havendo um apagão docente na educação infantil. Para ela, ser professora de educação infantil “é escolher uma profissão que vem sendo depredada nas últimas décadas” e atuar nesse nível de ensino exige preparação, educação contínua e dedicação. “Difícil conseguir profissionais com formação acadêmica, que queiram aceitar um salário inferior e não ter seus registros na área. Está havendo uma migração para áreas totalmente fora da educação, o apagão de professores é real e não está longe”, alerta.