Trabalhadores começam a sentir impactos da reforma
Foto: Igor Sperotto
Os sindicatos precisam se reinventar ou serão engolidos pelas transformações que já começaram a acontecer no sistema produtivo e no mundo do trabalho – com o aval da reforma trabalhista. O alerta é do sociólogo Clemente Ganz Lúcio, diretor técnico do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese). Na quinta-feira, 7, enquanto petroleiras estrangeiras arrematavam três blocos do pré-sal por R$ 3,15 bilhões no leilão de partilha das reservas de petróleo do país, Clemente falava a sindicalistas na sede da Central Única dos Trabalhadores (CUTRS) sobre a transferência de riquezas, apropriação das empresas nacionais pelo capital internacional e as alterações que estão ocorrendo no mundo do trabalho. Para o sociólogo, está em curso uma mudança tecnológica que substitui o emprego e atua na base dos sistemas de transportes, de energia e de comunicação, alterando o que se conhece hoje como organização do sistema produtivo. “Isso tudo impacta simultaneamente o mundo do trabalho. A mudança na Legislação trabalhista visa criar um ambiente institucional para que essas mudanças ocorram com o menor nível de resistência dos trabalhadores e de proteção por parte do estado. As empresas querem segurança para fazer as mudanças sem serem pressionadas. Esse é o jogo que está sendo jogado”, constata. Segundo o técnico do Dieese, a reforma trabalhista já está provocando o travamento das negociações e reduz à metade às demandas na Justiça do Trabalho. “Os direitos trabalhistas passam a ser desmontados dia após dia. Os dez principais motivos de queixa na Justiça do Trabalho são fraudes na homologação e a homologação agora pode ser feita sem assistência do sindicato”, alerta nesta entrevista concedida ao Extra Classe antes do encontro com sindicalistas.
Extra Classe – Como a reforma trabalhista atua nesse contexto de reorganização do sistema produtivo?
Clemente Ganz Lúcio – Ao impactar o acesso dos trabalhadores à Justiça, a formação das convenções e acordo coletivos e a vida sindical, a reforma trabalhista altera o direito do trabalho e o sistema de proteção aos trabalhadores. Tudo está sendo impactado simultaneamente. É muito difícil isolar o que afeta o quê. Ao mesmo tempo, temos uma grave recessão econômica de efeito brutal sobre o mercado de trabalho e que gera desemprego. Em paralelo a tudo isso, ocorrem mudanças muito profundas na estrutura produtiva. Está claro que a mudança na legislação trabalhista visa criar uma condição de máxima flexibilidade para que o capital se reorganize para uma mudança que ele está promovendo e que é profunda. O capital quer ter a máxima segurança jurídica nessas transformações, menor pressão sindical e menor passivo trabalhista. É para isso que a legislação trabalhista foi alterada. E ela já começa a produzir seus efeitos.
EC – Quais efeitos?
Clemente – Os dados começam a mostrar que os trabalhadores têm uma intensidade menor de acesso à Justiça do Trabalho pelos motivos que a Legislação criou. Os sindicatos têm observado que os patrões vêm para as negociações com uma pauta de desmobilização de direitos. Isso tem um efeito importante sobre as negociações coletivas. De outro lado, as negociações coletivas passam a absorver essa pauta de desmobilização de direitos e intransigência patronal para ter o financiamento sindical regulado na negociação. Isso tem travado as negociações. O patrão quer reduzir direitos e não quer permitir por meio da convenção que os trabalhadores decidam sobre o financiamento sindical. Os sindicatos não querem aceitar a redução de direitos e lutam por uma regra que viabilize o seu financiamento. Então é uma situação de travamento das negociações. E os direitos trabalhistas passam a ser desmontados dia após dia. Os dez principais motivos de queixa na Justiça do Trabalho são fraudes na homologação e a homologação agora pode ser feita sem assistência do sindicato. Quanto de problemas está sendo acumulado nessas homologações ninguém sabe. Saberemos um dia? Se o trabalhador não entra na Justiça, não temos como saber. Como a lei está dizendo que se ele fez a homologação e assinou ele não pode entrar na justiça, está criado o ambiente para que a gente não tenha a dimensão das fraudes nas homologações.
EC – E quanto à precarização dos contratos e das relações de trabalho?
Clemente – Nas contratações que estão sendo feitas pelo novo regime começa a aparecer o contrato intermitente, jornada parcial com prazo determinado, já com as novas regras, na margem, mas começa a aparecer. Os empregadores têm manifestado que eles estão se organizando para fazer o uso mais intensivo disso. Não fizeram antes porque tinha uma Medida Provisória que criava certa insegurança. A MP caducou e agora eles estão com mais segurança. A assessoria do mundo empresarial está orientando para que não façam a coisa de qualquer jeito, porque podem criar uma animosidade contra a legislação. Por isso devem fazer gradualmente, mas a verdade é que estão autorizados pela legislação a fazer o que bem entendem. Há, de fato, uma estratégia patronal que eu diria mais cuidadosa da parte deles para que a maldade seja feita em doses homeopáticas. Mas estão implementando e os efeitos nós vamos começar a sentir. Um dos efeitos mais estruturais que percebemos é a ampliação do subemprego, da subocupação. A tendência é que o desemprego diminua e aumente a subocupação. A taxa de subocupação que o Dieese divulga de desemprego pelo trabalho precário e pelo desalento, e que o IBGE trata como subocupação, agora passam a ser taxas fundamentais, porque a tendência é que as pessoas passem a ter subocupações precárias que não vão ser classificadas como desemprego aberto clássico, mas como formas precárias de ocupação. A subocupação é quando o trabalhador é contratado para trabalhar quatro horas por dia e recebe meio salário. Ele pode e precisa trabalhar 8 horas, mas entre nada e R$ 450,00 reais ele faz a opção. O trabalhador intermitente se cadastra em diversas empresas e espera. Pode trabalhar 100, 200 horas, mas só se for chamado por alguma empresa. Se não me chamarem nenhuma hora no mês eu não recebo nada. Isso é de um nível de insegurança… Do ponto de vista formal essa pessoa está ocupada no limite com contrato de zero horas. Isso é a subocupação, é o trabalho precário. E tem ainda o autônomo, o pejotizado.
EC – O senhor fala em mudanças profundas que estão ocorrendo em nível global na organização do trabalho. Qual a relação?
Clemente – Tem uma mudança de organização de patrimônio das empresas. Cada vez mais as médias e grandes corporações mudam de propriedade: o dono tradicional familiar transfere essa propriedade para fundos de pensão, que têm uma outra lógica na organização da empresa. Eles a estruturam para dar um retorno rápido e grande para o acionista e não para fazer o investimento produtivo na própria empresa. Isso muda a lógica empresarial. Há uma mudança no investimento da modernização tecnológica, que agora se expande para o setor de serviços, especialmente comércio, serviços e a própria esfera pública, ou seja há uma mudança no padrão tecnológico que passa a substituir força de trabalho em áreas que no passado a gente não imaginava que iria substituir: advogado, jornalista, o caixa do supermercado, o entregador… vai começar a substituir várias ocupações, não só as de baixa qualificação, mas as de média e alta qualificação. É o programa que faz uma melhor ação na Justiça que o advogado, faz um melhor diagnóstico que o médico.
EC – Como isso impacta a estrutura do sistema produtivo?
Clemente – Por isso há uma mudança tecnológica que substitui emprego e há também uma mudança grande na base dos sistemas de transportes, de energia e de comunicação na sociedade que altera a estrutura do sistema produtivo. Um novo tipo de energia, com novas formas de transporte e novas formas de comunicação fazem com que você compre uma roupa em Porto Alegre, sendo que o projeto é produzido na Alemanha e impresso no Cariri. E não precisa transportar nada a não ser comunicação. Tem uma impressora 3D que imprime a roupa lá, você compra aqui e manda entregar o presente lá, talvez por um drone… É uma outra lógica. Altera aquilo que a gente conhece hoje de organização do sistema produtivo. Isso tudo impacta simultaneamente o mundo do trabalho em que você tem gente produzindo na pré-revolução industrial, mas dada a magnitude e a globalização é um processo que aparece no mundo todo.
Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil
EC – A reforma trabalhista prepara o terreno?
Clemente – A mudança na Legislação trabalhista visa criar um ambiente institucional para que essas mudanças ocorram com o menor nível de resistência dos trabalhadores, com o menor nível de proteção por parte do estado, ou seja, as empresas têm que ter segurança de que vão fazer as mudanças sem sofrer pressão e nem vão constituir passivo trabalhista. Esse é o jogo que está sendo jogado. A mudança na base patrimonial no caso brasileiro é agravada ainda pela pressão que a busca pelo capital para se apropriar do que é parte do estado e do que é parte dos recursos naturais que o estado protege. Há uma transferência patrimonial de riqueza natural e de ativos produtivos do setor público. A ideia é ocupar o espaço do setor público com o setor privado. Transferir saúde, educação, as empresas estatais, tudo para a atividade do mercado com a ideia de substituir o direito pelo serviço: todos terão direito ao serviço desde que possam comprar. A quem não puder comprar, o estado entrega o que é possível entregar. Primeiro você acessa, faz a previdência complementar, contrata o plano de saúde, paga tua escola privada e nós te damos isenção no imposto de renda, ou seja, paga menos impostos porque você compra e quem não puder comprar aí o estado vê o mínimo que ele pode entregar. Essa é a lógica. Portanto, o mercado ocupa todos os espaços. A riqueza natural é a mesma coisa. Em vez de ter a Petrobras, as empresas privadas operam o petróleo; em vez de ter a Eletrobras, as empresas operam o sistema elétrico, que vira um negócio.
EC – Mas não faltam experiências que mostram que o caos está onde a regulação é feita pelo mercado…
Clemente – A greve dos caminhoneiros explicitou o que é o mercado. A Petrobras hoje é uma boa empresa de mercado, ela está fazendo um bom negócio para os acionistas. Se você for acionista da Petrobras deve estar feliz. Ela está entregando o que se propôs a entregar, o lucro. Uma empresa recuperada pela lógica do lucro, operando no preço de mercado e tendo uma rentabilidade fantástica. A sociedade que se exploda. O objetivo é fazer o que ela está fazendo. Isso é o mercado. E ainda mais o mercado num setor oligopolizado como é o caso dos recursos naturais. Essas mudanças trazem uma alteração no paradigma que organiza nossa forma de ver o mundo e de tentar criar as proteções e que vai precisar ser profundamente alterado. Mesmo que a gente resista ao desmonte da democracia, na democracia regular essas transformações não são uma coisa fácil, porque nem eles sabem exatamente para onde isso vai e no que vai dar e nós muito menos.
Foto: Igor Sperotto
EC – O que essa nova ordem exige do movimento sindical?
Clemente – O movimento sindical no mundo está começando a tomar iniciativas pra tentar gerar respostas coerentes. Há iniciativas pra reorganizar os sindicatos, fusões, articulações, mudança na estrutura sindical, simplificação, tentativa de ramificar o sindicato para a base, por local de trabalho e para o bairro, compreendendo que o setor de serviços fracionado como é torna muito difícil encontrar o local de trabalho. Esse trabalhador, atua em casa, na rua, por meio de celular, não tem mais local de trabalho. O bairro passa a ser uma referência. Ainda, a possibilidade de estruturar a atividade sindical pelo celular, que deixa de ser apenas um meio de comunicação e passa a ser um banco de dados. Enfim, buscar outras formas de organização. Há uma tendência de o sindicato ganhar compreensão de que a sua atuação exigirá a construção de um sistema de proteção mais universal, na medida em que se tem grandes massas de trabalhadores desprotegidos, altamente flexibilizados e trabalhando em várias situações ocupacionais instáveis e precárias em diversos setores e isso passa a ser uma dinâmica estrutural. Uma atuação do sindicato pode ser justamente de lutar por macrorregulações, política de regulação do salário mínimo, porque vai ter uma incidência salarial monumental; política de proteção à saúde do trabalhador prevista em lei e regulada por um sistema público e não mais necessariamente pelo sindicato; política associada ao custo do transporte coletivo; garantia de habitação de interesse social; coisas que permitem reduzir o custo de vida diante de uma remuneração menor, e complementada pela transferência, pelo Estado, de impostos, bens e serviços de interesse público. Talvez seja necessário criar uma outra lógica, formas de complementação de renda como ocorre nos EUA com o segundo cheque, ou renda mínima, ou a renda básica de cidadania, subsídios do Estado. Na Alemanha, o trabalhador que ganha menos de um salário mínimo tem um complemento. A ideia é garantir proteção a uma renda básica. Pra quê? Um dos motivos é garantir mercado de consumo, porque se as pessoas não consumirem, as empresas produzem para vender a quem?
EC – A reforma trabalhista pode ser revertida?
Clemente – Se elegermos o Lula, vamos ter que engolir a reforma trabalhista. Agora, se o eleito for o Bolsonaro, teremos que engolir a reforma trabalhista e a da Previdência também. Se o candidato eleito em outubro for de centro-esquerda, terá que fazer alguma mudança na legislação trabalhista para corrigir distorções básicas, muitas delas que estavam já na Medida Provisória, ou seja, aquilo lá até os alucinados acham que foi um exagero. Outros candidatos talvez topem fazer uma correção um pouco mais profunda no sentido de corrigir outras distorções menos graves do ponto de vista da exposição, a exemplo de permitir grávida trabalhar em local insalubre. Um escândalo, né? Mas há outras coisas não tão escandalosas aparentemente, mas que são tão graves e precisam de correção, seja no direito em si, seja no acesso à Justiça ou na organização sindical. É possível, dependendo de quem for eleito e da força que tenha, fazer uma revisão mais profunda. Promover alterações que possam suscitar alguns avanços ou até a recuperação de uma agenda de redemocratização do sistema de relações de trabalho e de modernização efetiva, portanto, fazer uma nova revisão profunda, mas com outro sentido, de valorizar a negociação, de dar maior poder às negociações, acho que tudo isso o movimento sindical topa, mas com um sindicato forte, com um equilíbrio de poder, com uma proteção sindical efetiva e não uma exposição do trabalhador à coerção da empresa, essas coisas que uma mudança legislativa deveria promover para frente. Isso é uma disputa que o processo eleitoral, espero, vai promover e consolidar. Evidente que se tiver um candidato eleito à direita que concorda com o que está posto na legislação, aí é um outro mundo, o voto estará legitimando essa maluquice toda. A experiência não nos permite garantir que uma coisa absurda dessa não aconteça. Há casos e mais casos em que a sociedade faz escolhas que são contra o seu próprio interesse e vai descobrir bem depois o que fez de errado. Isso às vezes tem um custo alto. Por isso é importante o processo eleitoral nesse ano. É fundamental para que as pessoas saibam as escolhas que estão fazendo. E não esquecer que esses candidatos vão promover o debate sobre a reforma da Previdência, talvez a reforma tributária, uma nova geração de reforma política.