Quem sabe enxergar um pouco além dos fatos percebe que a Reforma Administrativa vem recheada de armadilhas. A pior delas atenda diretamente contra a democracia. Se aprovadas as pretensões do reformador, estará aberto o caminho para a ditadura civil, há horas pavimentado com medidas provisórias. Com a dominação do Congresso, subjugado pelos conchavos e negociações, e com a desmoralização do Judiciário, vítima de insidiosa campanha do Executivo, poderão se consumar os dispositivos totalitários da Reforma Administrativa.
Os países civilizados abrigam hoje sociedades de natureza pluralista. Estas definem-se como espaços de convivência, onde os indivíduos se movem guiados por interesses distintos. O único regime político ajustável a esta realidade contemporânea é a democracia. Em toda democracia existe um corpo de funcionários organizados com base na lei, encarregados dos serviços públicos, que dão garantia e consistência ao próprio Estado Democrático de Direito. A autoridade, neste caso, está muito mais na lei do que nos indivíduos. É impessoal. Tem a ver com as competências, os estatutos, a hierarquia de funções, depende de concurso público, supõe remuneração regular, aposentadoria, carreira, distinção clara entre as pessoas e as funções que ocupam.
Sempre que se atenta contra o Estado Democrático de Direito, investe-se primeiro contra a organização do serviço público. Pede-se, então, a cabeça do funcionalismo. Assim se fez na Alemanha de 1934, abrindo caminho para o apogeu da escalada nazista. A Reforma Administrativa está pretendendo exatamente isto. Quer deixar o servidor à mercê da ditadura civil. Ela detesta o serviço público regido pelo Direito, que é impessoal. Ela prefere serviços de terceiros, que podem ser negociados discricionariamente. Confira-se o exemplo do DETRAN no Rio Grande do Sul. Compare-se com a privatização da CRT e a extinção da Caixa Econômica Estadual.
Com o pretexto de ter em mãos instrumentos de gestão, a Reforma fulmina a estabilidade dos funcionários públicos, quebra a paridade entre ativos e inativos, retira-lhes qualquer garantia de reajuste de vencimentos, terceiriza (ou mercenariza) suas funções. Tal deformação se estenderia a todas as esferas do Estado, atingindo os servidores dos três Poderes na União, nos Estados e nos Municípios. Os serviços públicos perderiam o caráter de continuidade, seriam confiados a agentes eventuais e refletiriam os humores do ditador civil.
Nas últimas administrações tem sido moda, quando o governo se sente incompetente diante dos problemas de gestão do Estado, reagir contra a Constituição. O ministério do senhor Bresser Pereira só sabe imaginar o país como um grande estabelecimento de secos e molhados. Daí que pretenda derrubar importantes preceitos constitucionais, pois assim poderá levar a cabo a perseguição que move aos servidores públicos.
É preciso que a opinião pública saiba que o funcionalismo brasileiro nem é caro, nem tão numeroso como propaga o dito ministro. O que o Brasil gasta com os funcionários equivale a 20 reais mês por habitante, contra 41 no caso dos Estados Unidos e 160 no caso da França. Para cada 157 brasileiros existe um servidor público. Na França para cada 22 e nos Estados Unidos para cada 86. É claro que os serviços públicos aqui deixam a desejar. Por problemas de gerência, de administração. O atual governo nada fez até agora no sentido de melhorá-los. Em vez de promover e estimular os funcionários, só fala em cortar, proibir, demitir. A falta de reajuste em mais de dois anos de governo é a prova final do descaso com que se trata o setor. Dá uma idéia da insensibilidade para fazer justiça tanto em relação ao servidor quanto ao povo, o verdadeiro beneficiário de todo o serviço público.
Há outras questões fundamentais a serem enfrentadas. Entre elas destaco a sonegação, a corrupção e o abandono em que se encontra a educação. As duas primeiras são as grandes culpadas diretas da evasão de recursos dos cofres públicos. Irmãs gêmeas, agem sempre no escuro, e seus beneficiários procuram desviar a atenção para outros problemas, muitas vezes falsos ou menos importantes. Quanto à educação, aí está o maior problema. Se solucionado, todo o resto se resolve. Principal fator de mobilidade social, principal elemento na qualificação das pessoas para o emprego, principal causa da produção de riquezas, a educação tem de estar à frente de todas as prioridades. Como se falar em país justo, se há professores no Nordeste ganhando 15 reais por mês. Como entender justo o Estado que deixa o magistério público na situação de penúria em que chegaram os professores do Rio Grande?
Nossos desafios são bem maiores e variados do que as reformas apregoadas. Existe, além disso, a mania oficial de criar problemas falsos e vender a idéia de que tudo vai mal por causa deles. A estabilidade do servidor público não é problema, é solução. É opção daqueles que defendem a democracia e o Estado de Direito.
* Jarbas Lima, 57 anos, advogado, deputado estadual por 20 anos, é deputado federal pelo PPB.