Mundialização é exclusividade do capital
Inquieta e crítica, a educadora argentina radicada na França diz que o discurso da integração global e da sedução da rede mundial, a Internet, produz a ilusão de que todos os homens têm as mesmas oportunidades.
Diante de tantas desigualdades sociais gritantes no mundo, a filósofa, psicóloga e educadora argentina Sara Paim, 64 anos, considera impossível falar-se de globalização. Radicada na França desde a década de 70, quando foi obrigada a abandonar seu país por questões políticas, ela não perdeu seus vínculos com a produção intelectual do “Terceiro Mundo”. Frequentemente é convidada a dar palestras em países como Brasil, Argentina e México. Em visita ao Brasil, concedeu entrevista ao Extra Classe. A autora de A função da ignorância, obra que consagrou seu trabalho na questão da aprendizagem, falou de sua trajetória, ideias e últimas pesquisas. Vem se dedicando ao estudo da ignorância em Filosofia e confessa que este trabalho a tem a obrigado a “desaprender” certas condutas, para evitar uma perspectiva de explicar tudo pelo viés da Psicologia. Ela acredita que a discrepância entre conteúdo e conceito é um defeito de todas as escolas, mas reconhece que as crianças de classe média contam com uma educação mais adequada, de acordo com suas expectativas sociais. Ao contrário, para ela, as classes populares se ressentem de um processo de aprendizagem apropriado, capaz de garantir a autonomia indispensável à criatividade e à construção do conhecimento. Sara Paim concorda que a escola é o lugar específico da aprendizagem, onde as crianças desempenham o papel de estudantes, mas sublinha que, aquelas que trazem hábitos de disciplina de casa, têm maior facilidade de incorporar hábitos mentais e aprendem mais rapidamente.
Extra Classe – Como é caminhar por esses saberes da Filosofia, Psicologia e Educação?
Sara Paim – É um caminho natural porque de uma coisa veio a outra. Sou formada e fiz doutorado em Filosofia e me interessei por epistemologia do conhecimento que, por sua vez, me levou à Psicologia. Primeiro estudei uma Psicologia mais condutista, mais reflexiológica e logo optei por uma Psicologia mais construtivista, mais piagetiana. Depois comecei a utilizar este instrumental para tratar dos problemas de aprendizagem. Então, como este conhecimento não bastasse para um trabalho clínico, busquei a psicanálise na linha de Lacan. Por meio dele, foi possível fazer uma interação com Piaget. Nesta altura, cheguei a uma reflexão mais educativa, a uma preocupação com os problemas gerais de educação.
A Argentina está em decadência intelectual muito grande. Ela perdeu uma geração por causa da repressão e não conseguiu substituí-la. A Argentina não encontra lugar para ter um pensamento próprio. De tudo que conheço da história de meu país, este é seu pior momento.
EC – Sua formação começou na Argentina e continuou na França. Esta mudança de ambiente, em um primeiro momento, foi em razão de um caráter intelectual, mas, por questões políticas de seu país, passou a ser um refúgio para toda sua família.
Sara – Toda minha vida de estudante se deu na Argentina, apenas minha tese de doutorado foi na França. Saí de meu país em 1976 por problemas políticos. Escolhemos a França por já termos amigos que lá fizemos durante o doutorado. Nossos dois filhos adolescentes fizeram boas carreiras em temas que são difíceis na Argentina, Arqueologia e Física Nuclear, e meu marido trabalha em educação permanente. Com a volta da democracia na Argentina, retorno uma vez por ano ao meu país, onde deixei discípulos. Quando me exilei na França, era professora da Universidade de Buenos Aires e atendia um serviço para problemas de aprendizagem em um grande hospital, além de ser diretora da extensão universitária de Mar del Plata. Mas tudo foi interrompido e partimos para a França.
EC – A partir dos olhos de quem mora na Europa, como percebe a produção intelectual latino-americana na atualidade?
Sara – Acredito que o Brasil está encontrando vias próprias, embora sempre mirando Paris, Estados Unidos, etc., mas tudo passa por sua sensibilidade pessoal e tem intelectuais de consciência política. Por outro lado, a Argentina está em decadência intelectual muito grande. Ela perdeu uma geração por causa da repressão e não conseguiu substituí-la. A Argentina não encontra lugar para ter um pensamento próprio. De tudo que conheço da história de meu país, este é seu pior momento.
EC – E quanto à pedagogia adotada nas escolas argentinas?
Sara – A escola não é má para todos. Ela dá conta pelo menos da classe média. Depois da guerra, os programas não mudaram muito, servem para beneficiar os mesmos, os da classe média. O que ocorre é que, desta maneira, a escola conta já com uma cultura, com uma linguagem, conta com uma ambição de uma instrução que permita aos filhos chegar à escola secundária e à universidade. Para este tipo de população, o acesso à escola popular, com a abertura à massificação se deu em meio a um conflito onde nem a escola se adapta à criança, nem a criança se adapta à escola. Porque a linguagem que falam é diferente e nestas condições promover educação custa muito porque teria que prover tudo o que falta para a comunicação. Teriam que ser frases pequenas, muito mais professores para que pudesse haver muito mais atenção.
EC – Mas esta própria escola feita para a classe média subestima a criança e não aproveita o que ela já tem.
Sara – Não é uma escola ideal, mas, para a classe média, é uma escola bastante adaptada. Ela não aproveita tudo aquilo que a criança tem mas dá os instrumentos para que ela desempenhe e chegue a uma vida profissional.
EC – Em suas falas, tem se referido à diferença existente entre o conteúdo e o conceito trabalhados na escola.
Sara – Isto é um defeito de todas as escolas. Tenho a impressão de que o instrumental que se dá ao aluno é muito comprometido com um currículo rígido, onde não há criatividade. Desta falta resulta crianças sem uma personalidade definida escolarmente. Não se despertam vocações, não há esta preocupação em despertar vocações ou de fazer cientistas, pessoas que pensem. E este é um deficit geral.
EC – Nesta perspectiva, a educação seria uma possibilidade do indivíduo, cada vez mais, apropriar-se de si mesmo?
Sara – Não há progresso sem autonomia nas diversas dimensões. Um país sem autonomia não chega a ter uma personalidade. A escola primária tem de fazer autodidatas. Assim, pelo menos, caso não possam seguir estudando na escola, podem continuar participando da elaboração do conhecimento social e da compreensão da realidade.
EC – A escola não é a extensão do lar, é uma instituição onde as crianças têm o papel de estudantes, e é o lugar onde aprendem atitudes de estudantes. Neste sentido, se enquadra o autodidata?
Sara – Sem dúvida, isto é uma disciplina de pensamento. A escola não é o lugar onde se dá hábitos de disciplina. Uma criança que já venha com hábitos de disciplina de casa é mais fácil de trabalhar hábitos mentais. Ou seja, uma disciplina mental, uma ordem naquilo que faz. Uma criança que, por muitas razões, quer de espaço ou de tempo, não tem nenhuma ordem e vive em uma casa onde, umas vezes, os pais estão outras não estão, não há ambiente de disciplina, o que faz com que a vida seja mais econômica e mais fácil. Esta criança não tem, tampouco, idéia de que deve haver uma economia de pensamento, e a matemática e as ciências são economias de pensamento. E is to tem de estar muito pronto na vida da criança, do contrário o aprender se fará mais lento. Penso que o processo para que todos tenham a mesma igualdade e oportunidade, que é o ideal da democracia, vai levar algum tempo justamente por este déficit na base.
É surpreendente que, contra todas as evidências das desigualdades sociais, segue-se dizendo que há globalização. Há muita gente que está mal com esta mundialização. Estamos vivendo um ano de Internet mas quem tem condições de entrar em contato com ela ou mesmo tem perguntas a lhe fazer?
EC – Falando em déficit, como a senhora percebe a mundialização neste mundo de desigualdades?
Sara – É surpreendente que, contra todas as evidências das desigualdades sociais, segue-se dizendo que há globalização. Há muita gente que está mal com esta mundialização. Estamos vivendo um ano de Internet mas quem tem condições de entrar em contato com ela ou mesmo tem perguntas a lhe fazer? Sabemos que 60% da Internet está dedicada ou à pornografia ou ao fabrico de armas. Ou seja, tudo aquilo que não pode ser publicado de outra maneira é veiculado via Internet, uma vez que ainda não há controle.
Dentro do que é o conjunto dos homens, quando se fala em mundialização, estamos falando de uma porção relativamente pequena e privilegiada. Comentários do tipo que dentro em pouco todos os homens estarão produzindo em suas próprias casas são fantasias que me parecem nos distrair de todos estes milhões de homens – África, Ásia e muitos de nossos países da América do Sul – que estão tão longe disto. Estamos com os cavalos à frente e a carreta vem lá atrás, em meio a um pântano, tão longe que a perdemos de vista, e seguimos pensamos que ela vem logo ali.
EC – Problemas como o desemprego e outros tantos que acabam por afetar aqueles que a senhora diz à margem da mundialização, não estariam, por isto mesmo, inseridos na lógica desta globalização?
Sara – Penso que o que temos de, o que precisamos fazer é não nos alienarmos na idéia de que se mundializa tudo, que todos somos iguais, todos temos as mesmas chances, que não há mais fronteiras. Isto não é verdade. A única coisa que se mundializou foi o capital. Os capitais agora são apátrias. O capital trabalha para o capital. Por isso digo que o mundo está mais dividido do que nunca. Só não está mais dividido por países, mas em grandes forças de capital.
EC – E a sua produção atual está indo em que direção: psicologia, educação ou filosofia?
Sara – Estou aposentada e passo a maior parte do tempo na França ou dando conferências no Peru, México, Argentina e Brasil. Quanto aos estudos, venho me dedicando ao tema da ignorância em Filosofia, tema que sempre estudei na Psicologia. Agora o revejo na Filosofia, onde aparece mais amplo. Embora ainda tenha pouco, já percebi que preciso desaprender muitas das coisas que aprendi a fim de não fazer psicologismo, uma vez que tenho tendência a explicar tudo através da psicologia. É necessário reeducar-me para fazer Filosofia e pensar tudo em outra dimensão, com outros conceitos. E isto não é fácil. Mas devo gostar destas dificuldades porque nunca fico quieta.