GERAL

Já estamos com os bárbaros dentro de casa

Valéria Ochôa / Publicado em 7 de outubro de 1997

Coronel do Exército na Reserva, administrador de empresas, Altino Berthier Brasil passou mais de dez anos de sua vida estudando e descobrindo a Amazônia. Nesta entrevista, o ex-docente do magistério militar em Porto Alegre fala desta experiência, relata os desastres que presenciou e faz uma avaliação da situação da maior floresta do mundo.

Em 1972, o coronel-professor Altino Berthier Brasil recebeu a incumbência de fundar o Colégio Militar de Manaus. Saiu da capital gaúcha com a idéia de retornar o quanto antes e a qualquer custo. Afinal, este paranaense, nascido na cidade de Palmas, estava “enraizado” em Porto Alegre e já no final da carreira militar. Sem falar que, como ele mesmo diz, a “Amazônia era o fim do mundo”. Os planos mudaram. Logo apaixonou-se pelo “mundo verde”, seus índios e seu povo. Cumprida a tarefa, pediu passagem para a Reserva e passou aos estudos da Amazônia, que lhe renderam vários títulos de reconhecimento. Caso do Diploma de Honra ao Mérito do Instituto Nacional de Pesquisa da Amazônia – por sua dedicação ao desenvolvimento científico da área pan-amazônica.Também, sete livros. O pajé da beira da estrada (EST,1986), por exemplo, conta a história de seu contato com os índios Waimiri-Atroari, hoje quase extintos, e Desbravadores do rio Amazonas (Posenato Arte e Cultura, 1996), no qual relata sua experiência de reconstituir a histórica epopéia de Pizarro/Orellana, que redundou com a descoberta do rio Amazonas, em fevereiro de 1542. De volta ao Rio Grande do Sul, dez anos depois, Berthier desdobra-se em palestras, seminários e cursos para contar o que viu e viveu na Amazônia. “Que um dia tive o atrevimento de chamar de fim de mundo”, reconsidera. “Ela é uma herança e uma responsabilidade. Ela é um ato de amor. Mais do que projetos, mais do que Ciência, a Amazônia precisa da consciência dos brasileiros”, convoca em suas obras.

Extra Classe – Como foi o seu primeiro contato com a Amazônia?
Altino Berthier Brasil – Até certo modo foi despreocupado, porque eu não tinha uma noção do que era. Para mim, a Amazônia era uma realidade como a África, a Índia. Quando cheguei, constatei que os estrangeiros conheciam tudo sobre a Amazônia. Estavam estudando, inseridos nas pesquisas, na exploração. Me achei na obrigação de estudar também, de captar aquilo que significava a Amazônia para nós. No mesmo ano, depois de cumprida minha tarefa de organizar o Colégio Militar de Manaus, pedi passagem para a Reserva e passei a me debruçar sobre as questões da Amazônia.

EC – O que mais lhe chamou a atenção?
Brasil – Fiquei emocionado com tudo que encontrei na Amazônia. Entrei na universidade e também em diversos institutos que existem lá – que são os melhores do mundo em matéria de florestas equatoriais, doenças tropicais. Fui procurando as linhas geográficas, históricas, políticas, mas o que mais me interessou foi o substrato humano, a alma do cabloco, do povo, do índio. Era um tema não muito desenvolvido.

EC – O senhor teve auxílio financeiro para os estudos?
Brasil – Foi iniciativa minha. Tinha minha família em Porto Alegre, três filhos na universidade. Fiquei ligado à Amazônia mas todo o mês vinha a Porto Alegre, em ponte aérea. Cumpria isso apenas com os recursos de minha aposentadoria. Arquitetei um projeto que me permitisse permanecer por lá. Comprei uma fábrica de guaraná e uma fazenda, mas logo tive de me desfazer da fábrica porque não tinha tecnologia sofisticada para o trabalho e minhas condições financeiras eram modestas. Eram tantas dificuldades que, entre outras coisas, aceitei o emprego para dirigir uma empresa de ônibus. Tudo com o objetivo de ter recursos para poder viajar e estudar.

EC – E sua atuação na esfera política?
Brasil – Em 1975, fui designado para a Secretaria da Indústria e Comércio do Estado. A Zona Franca estava explodindo. Procurei desenvolver a incipiente indústria local ante a fúria eletroeletrônica que se expandia. O estado da Amazônia tinha uma indústria muito precária de farinha, botões, guaraná, sucos. Meu papel foi inserir as indústrias nativas dentro da Zona Franca. Além disso, tive o privilégio de criar o primeiro instrumento disciplinador da pesca no Rio Amazonas.

EC – Em O pajé da beira da estrada, o senhor relata a experiência com os índios Waimiri-Atroari. De que forma o homem branco chegou a esta tribo?
Brasil – Durante a construção da BR 174, que liga Amazônia a Roraima. A estrada passava por dentro da região dos Waimiri-Atroari. Era uma grande família indígena ao Norte de Manaus.

EC – Como foram as negociações com a tribo?
Brasil – A Funai recebeu o encargo de fazer contato com os índios. Em vez de seus técnicos recorreu a um padre italiano chamado Calleri que, com mais oito pessoas começou o trabalho. Mas o padre não tinha muita habilidade. Chegou lá dando tiros de espingarda para espantar os índios. Queria manter autoridade à força.

EC – Como os índios reagiram?
Brasil – O padre tinha levado uns pratos de alumínio para distribuir para eles. À noite, os índios foram lá e pegaram aqueles objetos. Para os indígenas não existe furto. No dia seguinte, o padre deu uma chamada neles. Os índios não gostaram e, quando chegou a noite, disimaram o padre e toda a equipe.

EC – Como foi a repercussão?
Brasil – Foi um assunto contundente. Jornais como o Times, de Londres, publicaram matérias chamando os índios de cruéis, de sanguinários. Era uma época pioneira em que mais valia a nossa vontade de civilizar do que os interesses humanos dos índios. Então, foi um massacre.

EC – Como isso foi resolvido?
Brasil – Foi resolvido meio a ferro. Era uma luta desigual. O batalhão que estava trabalhando lá não tinha interesse nenhum de fazer morticínio. Mas levava muitos assaltos dos índios. Os índios tinham pavor do barulho das máquinas, atacavam mesmo. Tenho em minha casa flechas que caiam em frente da casa, do carro. Aqueles índios eram muito aguerridos. Até diziam que andavam insuflados por cubanos, estrangeiros. Na verdade, eles estavam muito machucados com aquele negócio da estrada. Naquela época, a Funai não tinha as preocupações, digamos, científicas, antropológicas, que tem hoje.

EC – Como foi seu contato com esta realidade?
Brasil – Na medida em que o batalhão ia liberando os quilômetros da rodovia, iam vendendo as terras sobre o eixo da estrada, muito baratas, para quem quisesse montar uma fazenda. Quando liberaram o quilômetro 200, onde tinha um foco muito grande de índios, eu comprei uma área de 500 hectares. Era uma floresta imensa. Parecia uma muralha por volta da estrada. Eu fui entrando e construi uma casa.

EC – O que restou dos índios Waimiri-Atroari?
Brasil – A estrada passou e os índios que sobraram foram embora assustados, apavorados. Num canto de minha fazenda ficou um índio velhinho. Convivi com ele sem falarmos. Nos respeitávamos, trocávamos amabilidades. Eu temia que ele fosse um sanguinário e ele temia também que eu pudesse prejudicá-lo. Um dia, ele me convidou para ir até lá. Então, me deu lições fantásticas do que é a sabedoria indígena e eu fiquei profundamente impressionado com a altivez, os brios, a visão e a premonição dele.

EC – Mas o governo não concedeu outra área para os índios?
Brasil – Não. Simplesmente traçou a estrada e deu uma missão curta para o 6? Batalhão de Engenharia e Construções (6? BEC), que por sua vez cumpriu a tarefa. Foi no governo do presidente Médici.

EC – Quais foram os outros contatos que o senhor teve na Amazônia?
Brasil – Um deles foi com o acadêmico da Academia Brasileira de Letras, Mário Palmério. Ele era reitor da Universidade de Uberlândia, em Minas Gerais. Um dia vendeu tudo que tinha e foi para a Amazônia, construiu um barco e ficou cui-dando de todos aqueles rios. Era um estudioso. Quando eu estava no governo da Amazônia, inúmeras vezes era designado para ficar de anfitrião de pessoas nobres que chegavam: o príncipe Akihito, o príncipe Charles, muitos indianos, Jacques Costeau.

EC – Qual era o interesse destas pessoas na Amazônia?
Brasil – A princípio, uma busca do homem supercivilizado pelas páginas anteriores da natureza humana. Vêem na Amazônica a última floresta virgem do mundo, um recanto ainda com uma certa salubridade, famosa por suas riquezas, originalidades equatoriais.

EC – Como a princípio?
Brasil – Sempre têm aqueles com outras intenções: interesse mineralógico, econômico, político, religioso também. Eles não tiram os olhos do Norte da Amazônia. É uma região muito estratégica e o interesse da Europa é enorme. Isso sem falar dos Estados Unidos, que consideram a Amazônia dentro da sua própria zona de influência.

EC – Como o Brasil está se manifestando frente a isso?
Brasil – Só existe um fator que mantém a nossa soberania e o nosso território atualmente. São cerca de 12 pequenos pelotões de fronteira do Exército, colocados como contas de um colar em toda a orla fronteiriça. É muito pouco. Como um em Porto Alegre, outro em Tramandaí, outro em Florianópolis… Longe um do outro, com ligação apenas através do rádio. Estes pelotões estão lá com sacrifício. É uma zona em que as fronteiras são de terra comum, que ninguém sabe onde começa e onde termina. Nos países hispânicos, a região está próxima de seus centros políticos. Fica mais fácil para eles do que para nós alcançar a Amazônia.

EC – Além destes pelotões, o que o Brasil está fazendo para proteger a Amazônia?
Brasil – No campo administrativo e político está se fazendo muito pouco. As prefeituras da região não têm dinheiro, nem policiais, não têm nada.

EC – E em nível federal?
Brasil – O governo federal, que poderia alcançar mais recursos, vem se omitindo e não está entendendo o problema. A Funai não tem tido muitos recursos. É muito grande a tarefa para a Funai. A saúde vai lá para combater a malária, mas o turbilhão da doença é muito maior do que se faz. O “progresso” desencadeou um processo de malária incontrolável. Os brancos chegam, desmatam, espantam a caça e poluem as águas, aí a reação é em cadeia. Se não fosse isso, não haveria epidemia.

EC – E a poluição dos rios?
Brasil – A poluição dos rios é muito grande. Em primeiro lugar, não existe saneamento básico. São 18 milhões de habitantes espalhados nas cabeceiras dos rios. O esgoto acaba caindo todo na calha do rio Amazonas. Diferente do sul, lá as nascentes estão nas altitudes, no Peru, na Venezuela. A poluição provocada pelas refinarias de petróleo e garimpos destes países também afeta o rio Amazonas. No Brasil, também tem muitos garimpos irregulares e extremamente poluentes. O rio Tapajós não existe mais. Era o rio mais bonito da Amazônia, de águas verdes. Quando cheguei lá bebia-se água do rio. Hoje, nem pensar.

EC – Ou seja, a Amazônia sempre foi vista como um território a ser colonizado…
Brasil – Poeticamente ela foi vista como o celeiro do mundo, como produtor de alimentos. Mas isso foi um equívoco muito grande. Ela foi vista durante muitos anos como um jardim botânico, um recanto exótico da humanidade. A partir de 1950, começou a desencadear a cobiça. A mineralogia, os produtos farmacêuticos, os produtos regionais atraiam para a área. Isso perdura. Muitas investidas foram frustadas. Muitos erros foram cometidos na Amazônia, como a opção pelas rodovias. A transamazônica foi uma intervenção violenta, contrária às leis naturais. A bovinocultura foi um erro trágico.

EC – Todos estes erros foram praticados durante a ditadura militar, por governos militares…
Brasil – Sim, da década de 70 para cá. Mas, passados 20 anos, a gente até pode absolver quem fez uma bobagem lá porque talvez não soubesse o que estava fazendo. Só que hoje conhecemos as leis básicas das relações do progresso com a Amazônia.

EC – Quais são estas leis?
Brasil – A Amazônia é contrária à megatecnologia. O Henry Ford investiu bilhões de dólares no início da década de 30 para fabricar pneus, borracha, no rio Tapajós. Perdeu tudo. Hoje só tem o cemitério do pro-jeto faraônico. Depois foi o grande projeto da construção Madeira-Maboré. A Bolívia almejava uma saída para o mar através do rio Amazonas. Lá tem uma região encachoeirada do rio Maboré até o rio Madeira embaixo – neste trecho foi construída a ferrovia Madeira-Mamoré – cerca de 100 quilômetros. Foi impressionante o que custou esta ferrovia em dinheiro e em vidas humanas.

EC – E o projeto Jari, do empresário norte-americano Daniel Ludwig, implantado com incentivo do próprio governo, é outro exemplo do que os megaprojetos podem provocar na Amazônia?
Brasil – Sim. Foi um dos primeiros e foi didático. Mostrou tudo o que não deveria ser feito e, em escala menor, alguns pontos positivos. No primeiro caso conquistou a repulsa popular pelo desmatamento, a poluição e a introdução de espécimes vegetais exóticas, sem se falar nos problemas sociais e urbanos que provocou na área, como a maior favela do Brasil na época, em Monte Dourado. Como ponto positivo, a agricultura de várzeas, a criação de búfalos e o aproveitamento do caulim. Foi um alerta contra a importação de tecnologias externas. Também comprovou o preceito de que, na região equatorial, o trinômio água-floresta-solo não pode ser negligenciado, sob pena de comprometer toda a área. Quanto as autoridades nacionais, é bom que se precavenham com as promessas ilusórias de empregos, impostos, assistência social e atos de generosidade. Devem se cuidar com lobbies, corrupção, suborno, incentivo e qualquer tipo de “assanhamento”. Antes de tudo, devem cuidar dos interesses da comunidade. Sempre é perigoso um cavalo de tróia.

EC – O que sobrou do projeto?
Brasil – Temos a fábrica de celulose e pequena produção de caulim – um tipo de minério.

EC – Como devem ser os projetos na Amazônia?
Brasil – Devem ser modulados, experimentais, que comece e vá crescendo naturalmente. Esta é uma lei: a Amazônia rejeita megatecnologia. Outra lei: a Amazônia rejeita a homogeneidade. Toda plantação homogênea lá tende ao fracasso. As bactérias se desenvolvem com tal rapidez, quando é apenas um tipo de planta, que numa noite destroem centenas de hectares. É uma lei que está escrita como se fosse na tábua de Moisés. Outra: a opção de transporte para a Amazônia é o hidroviário. Ela tem 50 mil quilômetros de rios. Por que fazer então rodovias? E aí seguem os postulados que hoje estabelecem as verdades amazônicas e que, lamentavelmente, muitos políticos e empresários desconhecem e acabam cometendo estes ecocídios.

EC – É o caso das madeireiras?
Brasil – Este é um capítulo trágico. Já havia madeireiras nossas lá, que eram como cupins. Mas agora está havendo uma coisa que a gente não pode aceitar. Os orientais, principalmente da Malásia, da Tailândia, acabaram com suas madeiras, passaram para a África e acabaram com as madeiras de lei africanas. Agora, estão adquirindo glebas imensas na Amazônia. E contam com o subsídio de governadores e autoridades locais obcecadas com a ilusão de novos empregos e outras vantagens. Mancomunados com estas autoridades, os malaios estão devastando nossa floresta e montando uma estrutura política, inclusive policial, à margem da lei. É crime inafiançável se você estiver com um passarinho numa gaiola na free-way. Se você desmata uma área de 200, 500 hectares não é crime, é contravenção penal. O cidadão paga uma pequena multa e fica por isso mesmo.

EC – Estamos presenciando a destruição total da floresta?
Brasil – Estamos entregando a alma ao diabo, fazendo como o inca: entregando ao conquistador o ouro e o punhal para o nosso próprio martírio. É doloroso vermos um rio coalhado de toras de madeiras nobres, levadas sem sequer passarem pela alfândega. Como as águas do meio do rio são consideradas internacionais, os navios param ali, carregam e vão embora sem dar satisfação a ninguém. É trágico, fere a alma assistir isso.

EC – Como reage a comunidade local diante disso?
Brasil – A comunidade local, com este nosso sistema de mídia direcionado, e com a inspiração dos políticos corruptos, se ilude com a promessa de empregos e fica anestesiada. Com o exemplo das autoridades, acaba se submetendo a isso tudo porque desconhece o que seja trabalho assalariado.

EC – Mas existe um movimento contra?
Brasil – Sim. Há muitos cidadãos honestos. Há patriotas. Os universitários, por exemplo, não se conformam. O ambiente universitário e mais esclarecido está revoltado com isso.

EC – Qual é o maior problema da Amazônia hoje?
Brasil – É difícil eleger entre tantos. Destaco o cultural e o cívico. Nós mesmos, brasileiros de outras regiões, nos defrontamos com eles. Só agora começamos a entender alguns preceitos científicos e biológicos aplicáveis à região. Como os nortistas, precisamos consolidar o entendimento de que a Amazônia é de transcendental importância para nós. Ela é o argumento maior para garantir o Brasil-potência do próximo século. Sem a Amazônia, o Brasil seria uma Argentina ou um Peru. Além disso, ela representa uma reserva de contingência para garantir nosso crescimento. É interessante constatarmos que o índio e o caboclo, dentro de seus parcos recursos culturais e materiais, sempre souberam preservar e defender a Amazônia. O seu algoz é o homem branco, dito civilizado, que só faz contaminar, poluir e degradar tudo o que encontra pela frente. A mensagem que eu venho dando é de que o Brasil fique alerta.Os romanos se referiram, certa vez, que deveriam levantar suas pontes levadiças e assestar as armas, de vez que os bárbaros se aproximavam. Nós, aqui no Brasil, já estamos com os bárbaros dentro de casa. Não é provável uma guerra na Amazônia. Mas, ela está muito sujeita às guerras políticas, diplomáticas, intervenções, como temos visto em diversos países – por razões alegadas, criadas.

EC – Mas tem muito estrangeiro envolvido com garimpos, com a extração de vegetais…
Brasil – Garimpo é um dos problemas magnos da Amazônia porque envolve a área social. Promove grandes deslocamentos populacionais que desestruturam as cidades. Também favorece a prostituição, o contrabando, o consumo de tóxicos e promove uma mineração de rapina, inutiliza as jazidas e compromete o meio ambiente, especialmente com o mercúrio. Estão matando os rios. Praticamente todos os garimpos estão irregulares.

EC – Ninguém controla isso?
Brasil – Não há uma política específica. Basicamente, deveria haver proibição de garimpos predatórios. Seria conveniente também a instituição de uma mineração industrial disciplinada, através de empresas idôneas, com a presença do Ministério da Fazenda e da Caixa Econômica Federal para evitar sonegação fiscal. Os maiores beneficiados com os garimpos irregulares são estrangeiros, anônimos que mobilizam os garimpeiros, fornecem equipamentos. Eles dirigem um trabalho escravo. São milhões de dólares saindo do país sem o menor controle. E o pior é que na maioria são minérios estratégicos, que quase não existem em nenhum outro lugar do mundo, como o bauxita e o nióbio. Este último – 100% mais resistente à temperatura do que o alumínio – é usado para o revestimento de foguetes aero-espaciais.

EC – O mesmo acontece com a extração de vegetais?
Brasil – A rapina de vegetais ocorre há muito tempo. Tanto a exploração das plantas medicinais como as aromáticas. Grandes empresas levam essa matéria-prima, fabricam produtos e medicamentos que voltam para o nosso mercado sem sequer uma reversão em royalties. O governo não tem disciplinado isso, o Ibama deveria fiscalizar e não o faz e a Amazônia fica exposta a essa pilhagem.

EC – O narcotráfico já é uma realidade na Amazônia?
Brasil – Pois é, agora passou para lá. E, segundo os americanos e europeus, o maior culpado do narcotráfico do mundo é a Amazônia.

EC – Maior culpado por que?
Brasil – Porque existe uma mácula, alguém no mundo tem de ser culpado. Neste caso, os mafiosos dizem que é a Amazônia. Mas a Amazônia herdou o narcotráfico colombiano, boliviano. As leis lá são mais severas e eles passaram para cá. As nossas leis não garantem nada. Temos a Amazônia aberta como terra de ninguém.

EC – Com envolvimento de brasileiros?
Brasil – Como são grandes interesses financeiros em jogo, envolveu alguns políticos, autoridades, empresários, policiais e até pequenos agricultores. Para se ter uma idéia, nenhum lucro agrícola é igual ou superior ao da produção da coca (planta). Por isso aumenta cada vez mais a plantação de coca na Amazônia. Mas a coca lá faz parte da tradição do povo, é uma coca ritual. Já no mundo civilizado, a inofensiva coca se transforma na cocaína, um dos mais poderosos agentes de crime e de desgraça humana. Os Estados Unidos deveriam se preocupar não só com a produção, mas com o consumo em seu próprio território, que é o mercado maior do mundo.

EC – Por que o projeto Calha Norte, criado no governo Sarney, não deu certo?
Brasil – Foi um projeto muito infeliz. Saiu dando a impressão de ser um projeto militar. Como o Brasil estava saindo daquele período dos governos militares, foi combatido por uma espécie de rejeição. Mas era um projeto multiministerial, bem intencionado, visando a saúde, a educação. Visava a estabelecer um anel de proteção em toda a orla fronteiriça, com escola, núcleos urbanos, saúde. Os pelotões do Exército permaneceram no local, o que não aconteceu com os funcionários civis. Fracassou. Foi investido muito dinheiro por nada. Mas era um instrumento de capital importância para os interesses nacionais.

EC – Como o senhor avalia o projeto Sivam?
Brasil – Não sei se estou enganado, mas tenho restrições. Em primeiro lugar, ele objetiva identificar problemas na Amazônia, como as queimadas, os garimpos predatórios, o narcotráfico. Também é feito para o controle aéreo. Isso é até razoável. Mas a pauta é maior. E eu pergunto: por que identificar? Nós já identificamos hoje 200, 300 queimadas clandestinas na Amazônia e não fazemos nada. Temos, por exemplo, as queimadas provocadas pelas madeireiras do Oriente. O problema está identificado. A questão é: agir com energia para conter estes problemas. O projeto Sivam foi um megaprojeto que já nasceu mal, criado meio atabalhoadamente. Houve corrupção já nas concorrências, pressão pessoal do próprio presidente americano. O pessoal da Aeronáutica está satisfeito pela promessa de segurança de vôo. Isso não se pode negar. Outro ponto é que o projeto já está obsoleto. Parece consultar prioritariamente os interesses subalternos do pentágano e de outros países. Acho que o dinheiro seria muito mais útil se tivesse sido empregado à reforma dos portos ribeirinhos, por exemplo. R$ 1,4 bilhão é um dinheiro temerário porque é um dinheiro de empréstimo, que nossas gerações futuras terão de resgatar.

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